Horizontes Democráticos
Antes de
iniciar gostaria de esclarecer os enfoques que norteiam essa exposição. O
primeiro é a análise comparativa, entendida como
um artifício que em nenhum sentido deve ser visto
como arbitrário, tanto mais em se tratando da América Latina, esse construto
simbólico sempre ressignificado conforme variáveis ideológicas, acadêmicas ou
políticas.
O que se
busca é iluminar um objeto de estudo frente a outro, estabelecer analogias,
semelhanças e diferenças entre duas realidades históricas. Pela comparação é
possível observar realidades dinâmicas e verificar como elas variam. O
artificio da comparação contribui para uma melhor interpretação das sociedades
latino-americanas, de suas contradições, seus paradoxos, seus impasses e seus
limites.
O segundo
enfoque é o potencial interpretativo da história política. É
preciso reconhecer que a história política acabou se fixando, nos últimos
tempos, como parte da história cultural, que passa a ser vista como o
território totalizante da produção historiográfica. Estuda-se mais as relações
e práticas de poder, entendidas como “fenômenos”, do que as complexas dinâmicas
e vicissitudes da política, que dão expressão aos atores em suas contradições,
orientando ou reorientando os processos históricos.
Exemplificando, o conceito de cultura política foi, muitas vezes, tomado como manifestação cultural e menos como expressão da dinâmica política no campo das ideias e do pensamento. Neste caso, a cultura política ao invés de ser uma dimensão articuladora do político, como sugere Pierre Rosanvallon (2010), passou a ser abordada pela descrição dos seus componentes, dispensando-se a necessária interpretação dos processos e mecanismos de reorganização dos embates da disputa política. Nesse caso, faz-se uma história política abdicando dos problemas históricos que ela engendra; em síntese, “uma historiografia sem problema histórico” (VACCA, 2009, 120).
Mobilizamos
aqui a análise comparativa para que ela possa nos ajudar a construir uma
interpretação dos acontecimentos e processos políticos vivenciados tanto no
Brasil quanto no Chile desde as décadas de 1960 e 1970, e que tiveram a questão
democrática como seu “problema histórico” essencial. Assumimos uma perspectiva
metodológica que entende a “comparação como vital”, como indicava Gramsci
(1999, 426), “contanto que não seja feita com base em esquemas sociológicos
abstratos”. Busca-se examinar o problema histórico da democracia na América
Latina no interior de uma análise diferenciada,
como sugere Giuseppe Vacca (2009, 120), capaz de “explicar diferenças que
caracterizam experiências históricas diversas em relação a um quadro comum de problemas”,
levando em consideração “suas diferenciações internas e conexões”.
Brasil
e Chile: alguns pontos de comparação
O Brasil
vivenciou o golpe de Estado de 1964 nove anos antes do Chile (1973) e os
regimes autoritários nos dois países foram simultâneos apenas em parte: no
Brasil de 1964 a 1988 e, no Chile, 1973 a 1990. Há consenso a respeito da
presença norte-americana nos dois golpes de Estado bem como o reconhecimento de
que essa presença não se configurou como determinante diante dos conflitos
internos. Há também reconhecimento quanto ao fato de que ambos os golpes
poderiam ter sido evitados, caso os atores políticos tivessem outro
comportamento.
Embora
tenha durado um pouco mais, o regime autoritário brasileiro não carrega
simbolicamente a marca de repressão e violência continuada que o regime
autoritário impôs à sociedade chilena. No Chile, a memória da repressão tem uma
forte dimensão pública e, por isso, a presença do passado autoritário no
imaginário social é mais vigorosa do que no Brasil.
O ponto em
comum é que ambos regimes autoritários promoveram transformações estruturais
profundas. Comum foram também os processos de transição, catalogados como “transições pactadas”, resultando, no caso chileno, uma
grande influência do regime anterior. A sombra do autoritarismo no Chile foi
mais densa do que no Brasil. Mesmo assim, em ambos os países é inquestionável a
mudança promovida pelos processos de transição, o que não significa deixar de
colocar em discussão a qualidade da democracia existente tanto no Brasil quanto
no Chile.
O
golpe militar de 1964 e o regime autoritário brasileiro
O
presidente João Goulart foi deposto por uma coalizão de forças militares e
civis que dizia querer restaurar a democracia no país. Mas isso não ocorreu e o
regime se impôs por 20 anos. Dentre as justificativas do golpe, o principal
argumento era que Goulart abria passagem para os comunistas “tomarem o poder”.
O problema se concentrou nas “reformas de base”, especialmente na reforma
agrária, ponto de discórdia das elites política.
A
conjuntura política antes do golpe revelou a grande dificuldade de
compatibilizar reformas econômico-sociais com a democracia política. Com o
descontrole econômico, agravaram-se as tensões sociais, o radicalismo e a
polarização. Neste cenário, tanto a direita quanto a esquerda passaram a
defender uma solução de exceção: o recurso às armas colocava-se como saída para
ambos os lados.
Para a
direita, a democracia interessava se fosse útil na defesa de seus privilégios,
e inútil se estes estivessem ameaçados; para a esquerda, além de pressionar
para que o governo acelerasse a implementação das reformas, os qualificativos
substantivos que elas carregavam eram mais importantes do que as formalidades
democráticas. Como observou Argelina C. Figueiredo, no Brasil daqueles
anos, “tornou-se impossível a construção de um compromisso
que combinasse reformas e democracia em um projeto político consistente, porque
democracia e reformas eram percebidas como objetivos políticos conflitantes”
(1993, 48).
O golpe de
1964 não pode ser visto como uma fatalidade, atribuída apenas aos aspectos
estruturais da economia, como o esgotamento da estratégia de substituição de
exportações, nem como uma ação exclusiva da coalizão de direita, eximindo-se os
setores nacionalistas e de esquerda de quaisquer responsabilidades por seus
posicionamentos cada vez mais rupturais.
No fundo,
direita e esquerda compartilhavam uma baixa convicção a respeito da democracia
existente no país. Ambos os lados conspiravam contra a democracia
representativa e preparavam um golpe contra suas instituições: a direita para
impedir o avanço e a consolidação das reformas; a esquerda para eliminar os
obstáculos que se antepunham a esse processo e ao que ela imaginava que poderia
vir em seguida, em favor de seus projetos revolucionários. Conforme José Murilo
da Carvalho, “o golpismo, concepção e prática já arraigada na direita, iria se
combinar dramaticamente com a ausência de tradição democrática da esquerda,
levando a uma confrontação que seria fatal para a democracia” (2001, 150).
Os
primeiros anos do “regime de 1964” deram a entender que iria se afirmar no país
o ideário do liberalismo econômico. Contudo, depois de dois anos, os militares
mudaram a orientação, retornando ao ideário do nacional-desenvolvimentismo que havia
dado suporte à modernização das décadas anteriores. Conforme anotou Luiz
Werneck Vianna (1994a), a partir desta redefinição, o regime autoritário de
1964 deslocaria para a dimensão do mundo privado o tema do “liberalismo puro”,
ao mesmo tempo em que intensificaria a intervenção do Estado na economia
objetivando acelerar o desenvolvimento como forma de superação do atraso
econômico.
A partir
do “regime de 1964”, a novidade viria dos processos societários que a mudança
econômica haveria de ensejar. Em termos sintéticos: a dimensão pública, que no
Estado Novo de Vargas incorporava a dimensão privada no interior da ordem
corporativa, passa a ser instrumentalizada. Rompe-se com a situação anterior,
redefinindo-se a dimensão pública como monopólio do Estado e liberando a
dimensão privada para que esta pudesse se adensar e se afirmar como a base de
uma nova sociabilidade fundada em empreendedores particulares.
Se, de um
lado, liberou-se a racionalidade instrumental dos interesses econômicos, o que
correspondia à lógica da aceleração da acumulação capitalista, de outro, se
promoveu
uma
verdadeira hecatombe política, ético-moral e no tecido social, aprofundando a
tradicional atitude na população de indiferença à política, dificultando, pela
perversão individualista, a passagem do indivíduo ao cidadão, e agravando em
escala inédita a exclusão social, ao mobilizar setores subalternos do campo para
os polos urbano-industriais, onde chegavam destituídos de direitos e de
proteção das políticas públicas (VIANNA, 1994a).
A
magnitude das transformações que se operaram foi sem precedentes na história do
Brasil, a ponto de um investigador brasileiro qualificar o que se processou
como uma verdadeira “revolução” (Santos, 1985), a despeito da retórica dos
militares.
Para
Werneck Vianna (1994b), o regime militar conseguiu realizar esta estratégia
pela via do pragmatismo, mantendo intacto o bloco agrário-industrial, induzindo
a conversão dos latifúndios em empresas capitalistas e consagrando “o processo
de criação de uma sociedade industrial de massas à americana”, sem realizar
alterações significativas na forma do Estado. Mas, a mudança fundamental
resultou da liberação dos instintos egoísticos da sociedade civil. Através
dela, atualizou-se o “processo transformista da democratização, universalizando
os direitos sociais e erodindo as bases tradicionais de controle,
principalmente no campo, mas sem estimular a emergência do cidadão e sem
compromisso com as práticas e ideais da democracia política” (Vianna, 1994b).
O regime
autoritário aparece, portanto, em linha de continuidade com a modalidade de
modernização conservadora anterior, acelerando este processo. Foi uma “fuga
para frente” em termos de transformações econômicas e sociais que garantiu o
sucesso do regime bem como sua legitimidade e longevidade.
Chile:
o golpe militar de 1973 e o regime autoritário
O
presidente Salvador Allende foi deposto em setembro de 1973 e, no discurso dos
golpistas, era claro o propósito de “salvar o Chile do comunismo” e instituir
uma nova ordem política e social. O governo que foi derrubado era
declaradamente socialista e realizava reformas nesse sentido, mantendo a
legalidade democrática, como estava previsto no projeto da “via chilena ao
socialismo”. Contudo, por essas reformas serem implementadas via decretos do
Executivo e não por meio de acordos no Parlamento, as contradições foram se
acirrando e a polarização acabou por se sobrepor a qualquer outra racionalidade
política, culminando tanto na desestabilização quanto na desinstitucionalização
que levaram ao golpe (AGGIO, 2002).
O notável
é que o discurso dos golpistas assumiu o mesmo tom do discurso revolucionário
que fazia a Unidade Popular (UP), instituindo, entretanto, um vetor contrário.
Não se objetivava o retorno à democracia, mas a imposição de uma ditadura que
reconstruísse o país. Como observou Tomás Moulian, “o regime militar é a
negação da Unidade Popular e também uma realização invertida da sua ideia
matriz. Apropria-se de elementos que se haviam instalado no imaginário social
pela ação cultural dela própria: a ideia de uma crise, da necessidade de uma
‘grande transformação’ e a valorização de uma ditadura enquanto instrumento do
bem” (1993, 288).
O golpe de
1973 foi um ato cirúrgico de cancelamento da política, o que significava dizer
que foi a supressão da forma pela qual a sociedade chilena compreendia-se a si
mesma. A ditadura procurou encarnar o inverso dos anseios revolucionários da UP
e, paradoxalmente, como afirma Tomás Moulian (1993) foi a partir de sua negação
que os chilenos vieram a conhecer, de fato, o significado da palavra revolução. Tratava-se de uma contrarrevolução por meios
revolucionários: havia metas de transformação radical a serem alcançadas, e não
prazos para impor um capitalismo quase sem regulações, apoiado num Estado
autoritário sustentado por mecanismos institucionais conservadores.
De acordo com
Carlos Huneeus (2000), com a personalização do poder em Augusto Pinochet,
estabeleceu-se um regime autoritário com baixo nível de institucionalização,
com o sistema decisório e de produção de leis, bem como as instâncias formais
de deliberação, resolução e implementação das políticas de Estado e de governo
fortemente submetidas à centralização.
Visando
recriar a sociedade, o regime autoritário estruturou sua perspectiva fundacional e se propuseram a dar início a uma
nova fase na história do país, para o qual estabeleceram metas muito
ambiciosas: eliminar a pobreza, criar as bases do crescimento econômico e
implantar uma ordem política distinta da democracia ocidental porque a
consideravam frágil diante do marxismo. Esta [nova ordem] seria uma democracia protegida
e autoritária, com pluralismo limitado e submetida à tutela das Forças Armadas,
que a deixariam funcionando quando voltassem para os seus quartéis (HUNEEUS,
2000, 624).
Essas
foram as bases políticas para a imposição de reformas neoliberais, dentre elas,
a privatização de empresas públicas, dos serviços de saúde e previdência
social, além de medidas relativas à abertura comercial, ao estímulo às
exportações e à supressão do controle de preços, etc.
O regime
de Pinochet transformou-se então no show case dos
neoliberais de todo o mundo, antes da Inglaterra de Margareth Thatcher e dos
EUA de Ronald Reagan. Para os ideólogos do regime, tratou-se de uma “revolução
silenciosa”, cujo resultado mudaria os valores da sociedade, tornando-a mais
individualista, consumista e despolitizada, anulando traços distintivos da
cultura política anterior, mais solidária e democrática.
Foi
somente quando sentiu que o empreendimento político do regime estava
consolidado que Pinochet abriu a possibilidade de que um plebiscito sancionasse
a nova Constituição do país, em 1980. É a partir desse momento que a ditadura
se institucionaliza, sustentada numa mudança histórica sem precedentes.
A
transição democrática: interpretações
A
superação dos regimes autoritários do Brasil e Chile se deu por meio de
transições democráticas. Não era fácil compreender que aquelas ditaduras não
seriam derrubadas pela via das armas ou de insurreições populares, mas sim por
meio de processos políticos transacionados que adquiririam força, extensão e
profundidade conforme a participação popular na sua dinâmica. A democracia que
viria estaria, assim, condicionada ao problema e ao percurso político da
transição.
A
expectativa era de que a transição assumisse uma estratégia de reformas que
rompesse com a modernização conservadora, no caso brasileiro, e com o
neoliberalismo, no caso chileno. Em ambos os países se havia liberado o mundo
dos interesses de cima à baixo do tecido social e isso precisaria ser bem
entendido e enfrentado.
No Brasil,
desde 1974, a oposição transformou cada eleição parlamentar em um “plebiscito”
contra o regime autoritário. Essa estratégia vitoriosa levou o processo de transição a ultrapassar o projeto de abertura ou autorreforma do regime
(VIANNA, 1984), até a campanha das Diretas Já, entre
1983 e 1984. A vitória posterior da oposição no Colégio Eleitoral traduziu-se
como chancela formal para a conquista de um governo de transição,
em 1985. Como se comprovou em seguida, esse governo de transição seria
fundamental para a conclusão institucional da transição, o que se deu com a
elaboração e promulgação da Constituição de 1988,
considerada a mais democrática da história política brasileira.
Entretanto,
a divisão que se estabeleceu entre as forças oposicionistas acabou por ter um
efeito negativo fazendo com que as tarefas mais amplas e profundas da transição
ficassem à deriva e se estabelecesse uma sensação de inconclusividade. Como
afirmou Luiz Werneck Vianna (1989), a partir da divisão das forças da oposição,
a transição passou a ser um processo conduzido pelos fatos e desprovido da ação
intencional do ator. Neste cenário, a partir dos anos 1990, os governos
empreenderam ajustes de caráter econômico apartados de pactos sociais, e não
foram capazes de estabelecer, no Estado e na sociedade civil, os elementos
essenciais de uma “hegemonia civil”. O “transformismo positivo” conduzido pela
oposição democrática desde a década de 1970, que havia sido a operação política
possível de ultrapassagem do autoritarismo, foi substituído pelo antagonismo
político de polos, muitas vezes artificiais, exaurindo as esperanças da jovem
democracia brasileira. Esse desfecho é o maior déficit da transição à
democracia no Brasil.
No Chile,
todas as tentativas de derrubada da ditadura por via armada fracassaram. As
ações armadas, inclusive contra o próprio Pinochet, e as rebeliões populares (protestas), que eclodiram entre 1983 e 1986,
revelaram-se impotentes. A batalha decisiva contra a ditadura viria de onde
menos se cogitava. A Constituição de 1980, outorgada por Pinochet por meio de
um referendo inteiramente controlado, previa a realização, em 1988, de um
plebiscito para estabelecer mais um mandato de oito anos para o ditador. Foi em
torno da ideia de politizar o plebiscito, negando esse novo mandato, que se
vislumbrou a possibilidade de derrotar a ditadura.
A
surpreendente vitória eleitoral do Comando por el No (56%
a 44%), em outubro de 1988, abriu o processo de transição à democracia. A
partir de então, os partidos políticos puderam se reorganizar e a oposição a
Pinochet, com exceção do Partido Comunista, criou a Concertación de los Partidos por la Democracia, numa
tentativa de manter-se unida para a eleição presidencial prevista para o ano
seguinte.
Mas
Pinochet, presidente da República e chefe das Forças Armadas, forçou um pacto
com a oposição em torno de reformas constitucionais. Este pacto redundou em um
referendo, realizado em julho de 1989, para sancionar as reformas da Constituição
de 1980 acordadas entre Pinochet e os principais atores políticos legalizados.
Nesse ponto, de acordo com Carlos Huneeus (2000), a submissão da transição
democrática à “política do autoritarismo” ficou evidente. O referendo sancionou
o que ficou conhecido como enclaves autoritarios:
normas concebidas para bloquear, sem transgredir a legalidade, qualquer
iniciativa reformista que se propusesse desmontar a arquitetura básica do
ordenamento jurídico-constitucional do autoritarismo chileno.
Como
afirmou Tomás Moulian, a derrota eleitoral sofrida por Pinochet em 1988
converteu-se numa vitória estratégica em 1989, uma vez que se aprovaram apenas
reformas superficiais na Constituição de 1980. Este parece ter sido um lance
decisivo no processo pelo qual o pinochetismo articulou sua sobrevivência no
Chile pós-ditatorial. A passagem do autoritarismo para a democracia, a despeito
da vitória no plebiscito de 1988, engendraria um “transformismo negativo” que
Tomás Moulian definiu nos seguintes termos:
“Chamo
de ‘transformismo’ o longo processo de preparação, durante a ditadura, de uma
saída destinada a permitir a continuidade de suas estruturas básicas sob outras
roupagens políticas, as vestimentas democráticas. (…) O ‘transformismo’
consiste numa alucinante operação de perpetuação que se realizou através da
mudança do Estado. Este se modificou em vários sentidos muito importantes, mas
mantendo inalterado um aspecto substancial. Muda o regime de poder, se passa de
uma ditadura a uma certa forma de democracia e muda o pessoal político nos
postos de comando do Estado. Mas não há uma mudança do bloco dominante ainda
que se modifique o modelo de dominação” (MOULIAN,
1977, 145).
Constrangida
pelos efeitos do “transformismo negativo”, mesmo assim, a transição seguiria
sua marcha. Diferentemente do Brasil, a transição chilena apresenta dois
aspectos peculiares: (1) não herdou nenhuma crise econômica do regime anterior
e (2) conseguiu eleger sucessivamente quatro presidentes pertencentes a Concertación – a coalizão política que havia
derrotado a ditadura.
Os
governos da Concertación conduziram com
êxito a integração do Chile ao processo de globalização, o que fez avançar os
traços de modernidade do país, como a melhoria do setor de serviços, a
especialização da produção agroindustrial para a exportação, a despoluição, a
inovação e a diversificação empresariais. O crescimento contínuo da economia
nesses anos (5% de média anual), até a crise econômica mundial de 2008, foi
notável. As temáticas sociais sufocadas durante a ditadura foram reconduzidas
como tarefas do Estado, ampliando a coesão social, ainda que as políticas
públicas dos governos da Concertación tenham
se revelado insuficientes.
A
manutenção dos enclaves autoritários, até
2005, acabou por gerar um paradoxo: o regime democrático se consolidava, mas a
presença de Pinochet na cena política deixava a sensação de que a transição
permanecia inconclusa. A imagem que acabou ficando do Chile pós-Pinochet é a de
uma “democracia de má qualidade”, resultante de uma transição muito
condicionada aos ditames do regime anterior, que impôs um “transformismo
negativo” ao andamento político, atrasando em demasia reformas democratizantes.
Em síntese,
a comparação que fizemos aqui pode ser resumida em quatro pontos:
(1) em relação aos golpes de Estado de 1964 e 1973, o que sobressai é a diferença. Eles são distintos na operação, nas justificativas e nos resultados imediatos.
(2) Além de repressivos, conforme modulações
específicas, os regimes autoritários de Brasil e Chile promoveram resultados
semelhantes no que se refere às transformações sociais orientadas no sentido da
liberação do mundo dos interesses, da afirmação do individualismo e do
consumismo. Com uma diferenciação: no Brasil se impôs um aggiornamento da modernização enquanto no Chile
houve uma ruptura. Os regimes autoritários de Brasil e Chile foram
fundacionais, mas no Brasil não houve a imposição normativa de uma “nova
sociedade”. No Brasil, o liberalismo econômico não foi, como o neoliberalismo
no Chile, um programa ideológico implementado no contexto de uma
contrarrevolução exitosa.
(3) No Brasil, há “transformismo” no regime e depois na
oposição a ele. Para o regime, o “transformismo” foi um elemento operativo
adotado pragmaticamente e levado ao paroxismo, visando controlar as
transformações sociais induzidas pelo êxito econômico; para a oposição foi uma
estratégia positiva que definiu o andamento da transição a seu favor. No Chile,
essa categoria somente iria aparecer como qualificativo convincente, mas
negativo, depois de superado o regime autoritário.
(4) o pioneirismo e a longa transição do Brasil
contrastam com o encurtamento e a presença militar na transição chilena.
Enquanto o Brasil conseguiu aprovar uma nova Constituição (1988), esse ainda é
um tema pendente no Chile. O “transformismo positivo” no Brasil, que permitiu o
estabelecimento de uma nova ordem constitucional, inaugurando uma nova fase,
contrasta com a aparente ruptura provocada pela vitória da oposição no
plebiscito de 1988 e com a vitória da estratégia do “transformismo negativo” no
Chile, que redundaria numa situação democrática eivada de condicionantes e
constrangimentos. Mas, no Brasil, conforme Werneck Vianna (2019) o “trágico desencontro
entre o ator e os fatos” (Vianna, 2019) redundou na perda de consenso em
relação à ordem democrática, acarretando um recorrente antagonismo político,
polarizações sucessivas e diversas, que perigosamente comprometem a unidade da
Nação e suas perspectivas democráticas. [1]
*Alberto
Aggio, historiador, professor titular da Unesp
*****************
[1] Poucos
meses depois do evento que deu origem à exposição e ao artigo acima,
precisamente em outubro, os acontecimentos se precipitaram no Chile. Por essa
razão indicamos aqui o artigo publicado à época, que na revista Caracol aparece como post-scritum. Na sequência,
um ano mais tarde, aproximadamente, realizou-se um plebiscito, com
comparecimento recorde da população chilena, no qual de decidiu que uma nova
Constituição deverá ser elaborada por uma Assembleia Constituinte com
representantes eleitos especificamente para este fim, além da paridade de
gênero. Confira o artigo em https://horizontesdemocraticos.com.br/a-historia-volta-a-pulsar-no-chile/.
Referências
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(Publicado
em Caracol, São Paulo, n. 23, Jan./Jun. 2022, Dossiê
“Cultura e Política nas relações Brasil-Chile/Chile-Brasil”;
https://www.revistas.usp.br/caracol/article/view/182014/180535)
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