O Estado de S. Paulo.
A singela afirmação segundo a qual a
democracia é o regime em que se vencem e se perdem eleições é desmentida de
modo desabrido
Desde há algumas semanas, tornamo-nos
comentadores geopolíticos de nascença, encarnando uma figura parecida com
outras delineadas humoristicamente por um poeta maior há quase cem anos.
Tomando carona na bela Canção do Exílio, Murilo Mendes falava dos tipos
excêntricos da distante terra nativa, enxergando – lá, do seu exílio surreal –
nossos poetas como pretos em torres de ametista, os sargentos como pintores cubistas,
os filósofos como polacos traficantes de bugigangas. Pois agora poderia
acrescentar que há uma pequena multidão de doutores em geopolítica, capazes de
dissertar horas a fio sobre blocos, esferas de influência e alianças militares.
Nunca se terá falado tanto de Otan, da sua marcha para o leste, encurralando a Rússia e provocando a única reação possível, a de devastar a Ucrânia. A lógica que assim se expressa é sempre a dos Estados-nação, sem fazer caso do que querem e, principalmente, sofrem as populações. Para Putin, um autocrata de manual, a Ucrânia nem sequer existe, dividindo com a Rússia, desde o princípio dos tempos, um só e mesmo “espaço espiritual”. E seu programa de ação brota do reiterado lamento decorrente do “maior desastre geopolítico” – a palavra inevitável... – do século passado, a saber, a dissolução da União Soviética.
Impossível registrar os meandros de acordos
e rascunhos de acordo firmados ou por firmar. Negociações diplomáticas, que
tardam, é que tratarão disso, encaminhando as soluções melhores. Impossível,
também, discutir a “filosofia da história” putiniana, apoiada numa visão
essencialista da realidade nacional, que os bolcheviques – ultimamente tão mal
avaliados, como jacobinos de vocação ditatorial que efetivamente eram – costumavam
chamar, até eles, de “chauvinismo grão-russo”. Mais pertinente avaliar a
percepção de Putin por parte de alguns atores do lado de cá da nova cortina de
ferro.
Faz sentido – continua a fazer – falar em
Ocidente democrático, só que não como termo geográfico. Ocidentais são todas as
sociedades em que democracia e liberalismo se articulam de variados modos, em
que há sólidas instituições intermediárias capazes de garantir as liberdades
até contra o poder de turno. O desastre das intervenções norte-americanas – e
da Otan – no Afeganistão e no Iraque, por exemplo, não passou inteiramente
impune. Elas entraram na História pelo que foram: ações ilegais, que, ao fim e
ao cabo, terminaram repudiadas, embora suas consequências ainda perdurem. Hoje,
a sociedade civil global e as organizações multilaterais estão chamadas a
descobrir meios e modos de mitigar a grande fome que ronda o Afeganistão, assim
como lidar com a brutalidade do domínio talibã. Passou o tempo de cerco aos
rogue States e da sua substituição por governos-títeres, simulando uma
reconstrução nacional.
O presidente Biden convida-nos a entender o
quadro atual como um embate global entre democracia e autocracia (russa e
chinesa). Uma meiaverdade, como ele mesmo sabe talvez mais do que ninguém.
Assediadas pelo fenômeno insidioso do nacional-populismo, a linha de separação
cruza o interior das nossas próprias sociedades, nas quais, por motivos que
ainda nos custa decifrar, milhões de cidadãos parecem ansiar por um homem
forte. A singela afirmação segundo a qual a democracia é o regime em que se
vencem e se perdem eleições – e os eventuais perdedores se reorganizam
legitimamente na oposição – é desmentida de modo desabrido. Trump é o autor
político do ataque ao Capitólio e uma das suas inspirações terá sido Putin, que
se programou para presidir a Rússia até 2036.
É natural que a extrema-direita global, que
hoje configura o risco maior, se entusiasme com tais exemplos. Putin assegura
que o Ocidente é só um império de mentiras – ele, que é o patrocinador das maiores
redes contemporâneas de falsificação, em benefício dos seus amigos da direita
autocrática. Assemelham-se, Putin e os nacional-populistas, na defesa de
valores ultraconservadores, que seriam a última barreira contra a degradação
dos costumes ocidentais. O desafio aumenta mais ainda quando o autocrata
arrebanha admiradores na extrema-esquerda (e setores da esquerda
latino-americana...), o que só se pode explicar tanto por uma comum aversão à
democracia política quanto por uma espécie de “anti-imperialismo dos idiotas”.
Este último, segundo Leila Al-Shami, ativista síria espantada, entre outras
coisas, com a destruição de Alepo, só vê imperialismo quando ações criminosas,
como no Iraque, provêm da parte norte-americana.
Autocratas, por definição, têm da política
uma concepção baseada nas razões da força e, em última análise, na destruição
física do oponente. Há um “desejo de morte ou de dor” no que dizem e fazem, um
desejo que aflora quando aludem até à hipótese suicida de uso das armas
nucleares. Democratas erram, e erram feio. Como democratas, porém, tendem a
estar sempre entre as forças de uma razão histórica que se constrói
contraditoriamente e que, além dos determinismos geopolíticos, concede espaço –
algum espaço, ao menos – à afirmação autônoma de indivíduos e povos.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil
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