O Estado de S. Paulo.
A ação de Putin rompe inequivocamente com o
padrão do aceitável. Inseriu a insegurança do imprevisível na dinâmica mundial
No mundo contemporâneo, unificado pelas
interações planetárias, a guerra não se circunscreve ao âmbito dos Estados
entre os quais ela se abre. Diz respeito a toda a comunidade internacional,
pois a paz é indivisível. A comoção, estragos e misérias da guerra têm
repercussão global.
A guerra na Ucrânia é uma guerra de escolha
de Putin, e não de necessidade, como foi a da Grã-Bretanha ao reagir à agressão
armada da Alemanha nazista. Contrapõe-se frontalmente à Carta da ONU, concebida
e criada para evitar a repetição dos flagelos da Segunda Guerra Mundial.
A Carta consagrou como um dos princípios
básicos do Direito Internacional o respeito à soberania territorial dos
Estados, grandes ou pequenos, que na sua pluralidade e heterogeneidade compõem
o sistema internacional. Identificou neste princípio um ingrediente-chave da
convivência equilibradora entre as nações, favorecedora de suas relações
amistosas e da ação construtiva da diplomacia.
A função do Direito Internacional e o seu papel na diplomacia são informar o padrão de conduta aceitável dos Estados e inserir componentes de previsibilidade na vida internacional. A ação de Putin, ao desencadear a guerra na Ucrânia para atender a seus autocentrados fins políticos, objetiva a fulminar a sua independência política e integridade territorial. Rompe inequivocamente com o padrão do aceitável. Inseriu a insegurança do imprevisível na dinâmica mundial. Magnificou a tensão, os riscos e as incertezas com a generalizada repercussão, que alcança todas as instâncias das relações internacionais. Afronta a opinião pública mundial com uma ação bélica caracterizada pela desproporção de forças que vem massacrando os ucranianos, devastando o país, transgredindo o direito humanitário e levando a uma massa de refugiados.
A agressão da Rússia à Ucrânia ecoa, no
mundo contemporâneo, a soberba da intransitividade narrada na História da Guerra
do Peloponeso por Tucídides: o forte faz o que lhe convém e o fraco sofre o que
lhe cabe. A subversão das normas por uma guerra de hegemonia corrói um padrão
de previsibilidade que cria as condições de ação de uma política externa dotada
de racionalidade deliberativa. É a lição de Tucídides sobre a Grécia clássica,
aplicável ao que se passa atualmente.
Nesta moldura, a Assembleia-Geral da ONU,
em resolução de 2 de março, expressou a abrangente condenação da comunidade
internacional à ilícita agressão da Rússia, como Lucas Carlos Lima bem analisou
neste espaço.
O Brasil seguiu sua tradição diplomática ao
votar a favor da resolução. A defesa da integridade territorial e a condenação
da guerra de conquista são parte integrante do soft power, do capital diplomático
da nossa nação.
A guerra na Ucrânia escapa da racionalidade
do aceitável no plano internacional. A materialidade do seu horror crescente é
mundialmente presenciada pelos recursos da era digital. Suas finalidades
políticas expressam o solipsismo intransitivo protagonizado por Putin, que
objetiva pôr termo à Ucrânia como país independente para alcançar uma expressão
eslava da Rússia no mundo.
É uma ascensão aos extremos que tem como
antecedentes o fato consumado da anexação, em 2014, da Crimeia e o patrocínio
da secessão territorial da Ucrânia pela atribuição de um status próprio às
áreas de Donetsk e Luhansk.
É uma denegação dos próprios compromissos
assumidos pela Rússia em relação à independência e à integridade territorial da
Ucrânia no Memorando de Budapeste, de 1994, quando os arsenais nucleares da
antiga URSS, lá sediados, foram transferidos para a Rússia.
Uma palavra sobre as alegadas preocupações
de segurança da Rússia, provenientes do alargamento da União Europeia e da
ampliação da Otan.
Elas expressam o receio do declínio do
poder relativo da Rússia e o medo de um cerco potencial. É algo que comporta
negociações que estão ao alcance do locus standi da Rússia. Não uma guerra
impelida pela obtenção de uma segurança absoluta que induz à insegurança
regional, com implicações para a ordem mundial. Manifestam uma inconformidade
imperial com a autonomia dos países do Leste Europeu.
Vale a pena registrar que estes países
encontraram na sua incorporação à União Europeia inéditas possibilidades de
desenvolvimento econômico e progresso e na adesão à Otan, um manto de segurança
protetor do prévio arbítrio soviético. Não querem o restabelecimento de uma
onipresente esfera de influência russa. Por isso, veem na agressão à Ucrânia um
precedente ameaçador do espaço de sua permissibilidade internacional. Penso na
política externa da Lituânia, pequeno país báltico do qual tenho melhor
conhecimento, e dos demais que não almejam ser nações presas da prepotência de
uma dominação russa.
A agressão russa é uma marcha da
insensatez. “Quem semeia ventos colhe tempestades.” É o que o mundo vem
suportando e a própria Rússia vem padecendo com as sanções plurilaterais
econômicas que a alcançam e que são uma reação voltada para conter o injusto
ilícito da sua desenfreada ação militar.
*Professor Emérito da Faculdade de Direito
da USP, foi ministro de Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Nenhum comentário:
Postar um comentário