Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Em meio à guerra na Ucrânia, Caracas recebe
primeira delegação americana desde o fim das relações diplomáticas há três anos
A guerra na Ucrânia tinha explodido havia
dez dias quando Juan Sebastian González desembarcou em Caracas para encontrar o
presidente Nicolás Maduro. Colombiano de Cartagena, filho de um executivo de
empresa petrolífera, González deixou seu país aos 6 anos. Cresceu em Nova York,
graduou-se na Universidade de Georgetown, em Washington, fez carreira na
diplomacia e tornou-se assessor do então vice-presidente Joe Biden.
Desde o ano passado, é o diretor para as
Américas do Conselho de Segurança Nacional e principal assessor de Biden para a
América Latina. Ao tomar posse, aos 44 anos, González disse que sua política
para a Venezuela teria dois pilares, direitos humanos e combate à corrupção:
“Vamos atrás de cada dólar que tenha sido roubado do povo venezuelano”.
Passados 14 meses de sua posse, González encabeçou a primeira missão oficial americana à Venezuela desde o rompimento das relações diplomáticas entre os dois países, em 2019. Naquele ano, Washington negou reconhecimento à reeleição de Maduro, proclamou o líder da oposição, Juan Gaidó, como o presidente legítimo e impôs sanções ao petróleo venezuelano.
A ofensiva do governo Donald Trump inspirou
seu clone tupiniquim. O presidente Jair Bolsonaro não apenas se elegeu dizendo
ser o único capaz de evitar a “venezuelização” do Brasil como cedeu palanque em
Roraima ao ex-vice presidente americano, em plena campanha à reeleição. Na
ocasião, Mike Pompeo chamou Maduro de traficante de drogas e lembrou a
recompensa de US$ 15 milhões oferecida pelo governo americano por informações
que levem à sua prisão.
Quando González desembarcou em Caracas, no
início de março, o barril do petróleo chegava a US$ 138, mas o enviado especial
disse que a viagem já estava planejada havia meses e a justificou dizendo que
os EUA precisavam dialogar com a discórdia.
O resultado mais imediato da viagem foi a
soltura de dois americanos detidos na Venezuela, ambos funcionários da Citgo,
subsidiária da estatal venezuelana PDVSA com sede no Texas. Ainda restam outros
quatro ex-militares americanos envolvidos em incursão armada para a deposição
de Maduro.
O gesto unilateral do governo venezuelano
sinalizou a ansiedade por um acordo que vise à suspensão das sanções impostas
ao país há três anos. Com a guerra na Ucrânia, somaram-se às sanções o
congelamento da conta mantida pelo país na Rússia por meio da qual a Venezuela,
numa tentativa de driblar o veto americano, recebia pelas vendas de petróleo.
O fim do embargo ainda não foi
concretizado, mas a visita sinalizou a maior mudança para a política externa no
continente nos últimos anos. Depois de anunciar uma política de tolerância zero
com o desrespeito aos direitos humanos e convocar uma cúpula pela democracia
para conter regimes autoritários, Washington se deixa guiar pelo pragmatismo e
reabre as negociações com a mais vocal das ditaduras latino-americanas.
A reação de dois senadores mostrou o risco
que Biden resolveu correr. Robert Menendez, representante de New Jersey,
democrata e presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, disse que
a atitude ameaçava “perpetuar a crise humanitária que havia desestabilizado a
América Latina e o Caribe”. Definiu Maduro como “um câncer para o hemisfério e
a quem não deveria ser permitido respirar em seu reinado de tortura e
assassinato”.
Já Marco Rubio, da Flórida, que perdeu as
primárias republicanas para Trump, em 2020, acusou Biden de “abandonar a busca
da liberdade na Venezuela por um punhado insignificante de petróleo”. Ambos os
senadores têm diante de si um governo que, frente ao impacto do combustível
sobre uma inflação já pressionada pela pandemia, resolveu tergiversar com a
ideologia.
É uma postura que não deixará imune a
política latino-americana - do novo ícone da esquerda no continente, Gabriel
Boric, presidente do Chile, que não abre mão da crítica à deterioração da
democracia na Venezuela, ao ex-chanceler brasileiro Celso Amorim, que citou o
país de Nicolás Maduro em suas primeiras reações ao ataque da Ucrânia pela
Rússia - “O risco de relativizar esta invasão é ter que fazer o mesmo se um dia
os Estados Unidos invadirem a Venezuela”.
O cerco aos representantes das comunidades
latinas começou pela imprensa. Três dias depois da viagem de González a
Caracas, o “Washington Post”, em editorial, defendeu o reatamento não apenas
com a Venezuela, mas com o Irã, cujo estremecimento foi provocado pelo embate
nuclear, e a Arábia Saudita, país contra o qual as sanções foram anunciadas já
no governo Biden depois da morte do jornalista Jamal Khashoggi. “Em tempos de
guerra, Biden terá que fazer escolhas difíceis”, disse o jornal ao concluir pela
necessidade de garantir o abastecimento de petróleo.
Venezuelano que está há mais de 30 anos no
Brasil, onde trabalha como pesquisador e professor da Universidade de São
Paulo, Rafael Villa diz que ainda é cedo para considerar suspensas as sanções.
Atribui a relevância da viagem ao fato de o governo americano não ter
consultado Guaidó ou os oposicionistas venezuelanos e à reabertura da mesa de
negociações sediada no México.
O diálogo foi interrompido em outubro,
quando o empresário colombiano Alex Saab, que se beneficiou de grandes
contratos com o chavismo, foi preso numa escala de um jato particular em Cabo
Verde e extraditado para os Estados Unidos. Ele era investigado por corrupção e
lavagem de dinheiro.
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A guerra pela Petrobras
Em fevereiro deste ano, documentos que
tiveram seu sigilo levantado na Flórida pela justiça revelaram que Saab não
apenas confessou propinas pagas à cúpula venezuelana como também sua condição
de informante da agência antidrogas americana, DEA, desde 2018.
Se Maduro foi traído por quem considerava
aliado, a oposição venezuelana também parece ter sido alvo de traição pelo
governo americano, que agia como um fiador da mesa de negociação no México. A
presidente do partido de oposição Pro, Patricia Bullrich, reconheceu o golpe à
rádio La Red, de Buenos Aires. “É duro para nós que isso tenha acontecido, que
a ‘realpolitik’ seja tão explícita.”
A visita de González a Caracas também
sucede à ameaça de recrudescimento da guerra fria no continente. Ainda que
tenha sido tratado como um blefe, o vice-chanceler russo, Sergei Ryabkov, em
meados de janeiro, em meio à aproximação da Ucrânia com a Otan, sugeriu que o
Kremlin poderia enviar um destacamento militar para Venezuela e Cuba numa
entrevista ao canal RTVi, de Moscou - “Não quero confirmar nada e não vou
descartar nada. Depende das ações de nossos colegas americanos”.
O petróleo, de fato, não explica tudo.
Villa não vê como a Venezuela, no caso de ser suspenso o embargo, possa vir a
substituir a Rússia como fornecedora americana de petróleo. Os 20 anos sem
investimentos fizeram com que o país, que chegou a produzir 3 milhões de barris
diários, tenha caído para 400 mil em março de 2021. Foi a queda mais drástica
já observada num país produtor de petróleo, garante.
Com a recuperação da economia venezuelana,
que precede a guerra da Ucrânia, a produção começou a ser retomada. No fim do
ano passado, a Venezuela chegou a produzir 760 mil barris por dia. É uma
quantidade superior à exportação russa para os EUA de antes da invasão da
Ucrânia, mas que hoje tem uma demanda mais acirrada por causa da guerra. A
Venezuela conta com a ajuda do governo iraniano para lhe fornecer um óleo mais
leve que é misturado àquele produzido na bacia do rio Orinoco, no norte do
país, onde estão as maiores reservas mundiais de petróleo.
Se a guerra ofereceu à Venezuela a
oportunidade de desanuviar as relações com os americanos, também tem o
potencial de aumentar as tensões com a Rússia. Villa vê uma disputa crescente
entre os dois países, que, boicotados pelos EUA, passaram a disputar a China
como destino do seu petróleo.
A dolarização do país, iniciada em 2015, se
consolidou três anos depois. O bolívar ainda circula, mas o dólar virou a moeda
corrente. “Muita gente acreditou que Maduro fosse se enfraquecer com isso, mas
o efeito foi contrário”, explica Villa. O acesso à moeda americana se ampliou e
a entrada da moeda no país também aumentou com as receitas crescentes da exportação
de um petróleo que, em dois anos, quadruplicou de preço.
A inflação de 2% registrada em fevereiro,
que não se via desde 2014, vai na contramão da escalada observada no Brasil, no
Chile e na Argentina. Os salários permanecem baixos. Um professor universitário
ganha de US$ 4 a US$ 5 por mês. O que segura é a cesta de alimentos distribuída
pelo governo (e que tinha em Alex Saab um dos fornecedores).
Ainda que lenta, a melhora na economia já
deu início a uma “operação retorno” de parte dos 6 milhões da diáspora
venezuelana. O próprio Maduro tornou-se garoto propaganda da campanha “Volte
para casa”, que inclui a oferta de passagens de avião ou navio para a
repatriação.
O retorno dos venezuelanos e a provável
retomada da mesa de negociações no México colocarão à prova a disposição de
Maduro de prosseguir com a abertura do país. Em novembro do ano passado, a
oposição teve sua vitória mais expressiva com a eleição em Barinas, estado
natal de Hugo Chávez que era governado desde 1999 por familiares ou aliados do presidente
morto em 2013.
É um dos quatro estados, de um total de 23,
que passaram a ser governados pela oposição. O resultado ainda denota a timidez
da oposição depois de duas décadas de ditadura chavista, mas é um sinal de que
o voto, aliado ao novo pragmatismo da política externa americana, podem começar
a sacudir a Venezuela.
Maria Cristina Fernandes
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