sexta-feira, 18 de março de 2022

Reinaldo Azevedo: Terceira via é uma quimera da negação

Folha de S. Paulo

Na ordem democrática, Lula e Bolsonaro são mesmo equivalentes?

A direita democrática ainda não conseguiu encontrar o seu lugar na eleição presidencial deste ano. Sei que muitos, à esquerda, acabaram de dar um risinho de canto de boca: "Direita democrática? Isso é como cabeça de bacalhau. Dizem que existe, mas ninguém vê".

Pois é. Cá nas minhas considerações, não se trata de uma fantasia. Mas ela não pode ser refém dos próprios equívocos. Se a prosa não mudar de rumo —e tenho dúvidas sinceras se haverá tempo—, o segundo turno entre Lula e Bolsonaro está contratado. Hoje, Lula é franco favorito e poderia vencer no primeiro turno. Mas a eleição não é hoje.

Há vários fatores concorrendo para tal quadro, que não chamo "polarização" —outra bobagem. Uma das causas determinantes está na tentativa de se criar uma quimera da negação: a "terceira via". Tratar-se-ia de um ser híbrido que, a um só tempo, carregasse virtudes de Bolsonaro (havendo alguma...) e de Lula, mas destinada a não ser nem uma coisa nem outra.

Fui o primeiro a chamar essa criatura imaginária, gestada no mundo como ideia, de candidato "nem-nem". Se não faço atribuição indevida, tomei a expressão emprestada a Roland Barthes.

Era uma ironia. Dia desses, vi Luciano Bivar, presidente do União Brasil, a defender o "candidato nem-nem". Bolsonaro é a soma de sortilégios, burrice, truculência e desgoverno que conhecemos. Nota à margem: virou boneco de mamulengo da própria gestão e animador de reacionarismos.

Arthur Lira, Ciro Nogueira e seus sócios (des)governam o país, mantendo o Orçamento sequestrado. Não fosse assim, o biltre teria sido defenestrado. Nós pagamos o resgate. De volta ao fio.

O homem é tudo isso, mas tem uma base fiel, resiliente, que precisa da dose cotidiana de sandices para se manter unida. Há risco de falta de fertilizantes? A resposta é tentar acelerar, com a conivência de Lira, a mineração em terras indígenas, para indignação até das empresas legais do setor.

Ocorre que esses eleitores existem, são muitos milhões, habilmente mobilizáveis pelos miasmas de estupidez que emanam das redes sociais.

Vejam o caso de "Como se tornar o pior... filme do mundo". Trata-se de um monturo de piadas politicamente incorretas e de agressão a valores comezinhos da civilidade. A extrema direita tinha adorado as diatribes de um então ídolo seu, não é pastor Feliciano? Mas o protagonista virou desafeto. E as milícias bolsonarianas, afinadas com o espírito mafioso, são mais cruéis com "traidores" do que com inimigos.

O troço é pavoroso, mas não faz a apologia da pedofilia. Isso é mentira, e a censura é inconstitucional. Eis uma cama de gato. E muitas outras haverá. Defenda a Constituição, mesmo quando o objeto em disputa é ruim —e a lei também tem de proteger os idiotas— e leve na testa a pecha de "defensor da pedofilia".

Assim como, no passado, os que atacaram os desmandos da Lava Jato foram classificados de "amigos da corrupção" —espírito que ajudou a eleger Bolsonaro, note-se.

Essa gente veio para ficar. Será muito difícil entrar nesse universo sem aderir a seu cabedal de monstruosidades morais. Vinte e tantos por cento dizem "não" a um dos "nens". Bolsonaro é o que desejam. Sergio Moro tentou fornecer doses mais dissimuladas de reacionarismo, mas esse público não quer. O presidente toma de volta percentuais que eram seus e que o ex-juiz suspeito havia conquistado.

O segundo "nem", o que se refere a Lula, ignora a história do país da redemocratização a esta data e tenta reduzir a história do PT às peças judiciais criadas pelo lava-jatismo. O partido está fora do poder há seis anos.

Que tratamento o Estado brasileiro —incluindo a direita democrática lá do primeiro parágrafo— dispensou nesse tempo às demandas dos que têm renda de dois salários mínimos? São 70% dos brasileiros.

Inexiste legitimação política pela negação. De resto, cabe indagar: no que respeita à preservação da ordem democrática, Lula e Bolsonaro são mesmo equivalentes, são "nem-nem"? Ela não é o pressuposto a partir do qual as divergências devem ser exercitadas? Pergunta final: há tempo para corrigir o rumo?

 

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