sexta-feira, 18 de março de 2022

Pedro Doria: Na Ucrânia, mas sem celular

O Globo / O Estado de S. Paulo

Durante a primeira semana após a invasão russa da Ucrânia, a vida de Bobuubi e sua família só não foi pesadelo maior porque sua comunidade, no Twitch, o salvou. Ele é um streamer. Seu trabalho, sua profissão, é jogar videogames ao vivo. Seu rosto aparece pequenino num canto da tela, o jogo preenche o resto. Bobuubi é polonês, mas vivia na Ucrânia, próximo à fronteira russa. Streamers costumam ter games preferenciais — no caso dele, é “Escape from Tarkov”, um detalhado simulador de guerra baseado no conflito entre Rússia e Chechênia. O público de Bobuubi estava assistindo ao vivo quando as primeiras bombas reais começaram a cair perto de onde ele estava. Ele se despediu emocionado. Precisava encontrar a família e fugir.

Bobuubi, por formação, entende de tecnologia e de guerra. Por isso mesmo, quando entrou em seu carro com a família, sabia que precisaria manter o celular desconectado. Celulares ligados à rede são guias para a localização de quem os carrega. Isso quer dizer, também, que ele precisava atravessar um país em guerra sem usar Waze. Contou com a ajuda de seu público, gente que ficou on-line por dias acompanhando a viagem pelo Google Maps e pelo noticiário, simultaneamente. A cada vez que o streamer ligava o celular para se conectar com o mundo por um tempo curto, mandava sua localização para os amigos virtuais. Eles retornavam com capturas de tela dos mapas com rotas possíveis desenhadas, todas contornando os lugares onde, segundo a imprensa, existiam tropas russas. Bobuubi atravessou a Ucrânia com mapas estáticos e o celular no modo avião.

Essa compreensão, de que celulares em guerra são delicados, escapa aos brasileiros. O exibicionismo de Instagram dos voluntários que saíram daqui é um dos suspeitos de ter ajudado os russos a localizar uma base da Legião Estrangeira em Lviv, cidade próxima à Polônia. A base foi dizimada. Posar com uniforme camuflado e arminha não está entre os hábitos de outros voluntários. Talvez porque a estética do bolsonarismo seja só nossa.

Tristan Harris, o ativista pela humanização dos algoritmos das redes, fala muito sobre como nosso ego é acarinhado pelo código. Os diversos filtros de fotografias se popularizaram tornando a pele mais lisa, os traços mais suaves, afinando rostos. Nossa versão na rede é parecida o suficiente conosco, mas é aquela versão aperfeiçoada. Quanto mais fragilizada está a pessoa a respeito da autoimagem, mais quer se ver na rede. A submetralhadora e o uniforme representam o mesmo mecanismo.

Há outra forma como as redes alimentam o ego — é pelas ideias. Elas vão forçando pessoas a pensar de forma cada vez mais parecida, vão pasteurizando o debate. Quanto menos novidade alguém trouxer, quanto mais parecido for seu discurso com o da tribo, maior o número de likes. Ninguém muda de ideia.

Há uns dias, Bernardo Mello Franco, meu vizinho cá nesta página, fez uma pergunta fundamental. O presidente chileno Gabriel Boric seria eleito no Brasil? Não é difícil responder. Que parlamentar de esquerda, no Brasil, tem coragem de ir ao Twitter escrever que o PT fez um governo corrupto, que Venezuela, Cuba e Nicarágua são ditaduras, ou de denunciar sem condicionantes a bárbara invasão russa de um país soberano? Receberia o tratamento que a militância de esquerda concedeu à deputada Tabata Amaral (PSB-SP).

Os líderes jovens da esquerda brasileira têm as mesmas ideias que septuagenários. No Brasil, Boric seria chamado de neoliberal em dois tempos.

 

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