O Globo / O Estado de S. Paulo
Durante a primeira semana após a invasão russa da Ucrânia, a vida de Bobuubi e sua família só não foi pesadelo maior porque sua comunidade, no Twitch, o salvou. Ele é um streamer. Seu trabalho, sua profissão, é jogar videogames ao vivo. Seu rosto aparece pequenino num canto da tela, o jogo preenche o resto. Bobuubi é polonês, mas vivia na Ucrânia, próximo à fronteira russa. Streamers costumam ter games preferenciais — no caso dele, é “Escape from Tarkov”, um detalhado simulador de guerra baseado no conflito entre Rússia e Chechênia. O público de Bobuubi estava assistindo ao vivo quando as primeiras bombas reais começaram a cair perto de onde ele estava. Ele se despediu emocionado. Precisava encontrar a família e fugir.
Bobuubi, por formação, entende de
tecnologia e de guerra. Por isso mesmo, quando entrou em seu carro com a
família, sabia que precisaria manter o celular desconectado. Celulares ligados
à rede são guias para a localização de quem os carrega. Isso quer dizer,
também, que ele precisava atravessar um país em guerra sem usar Waze. Contou
com a ajuda de seu público, gente que ficou on-line por dias acompanhando a
viagem pelo Google Maps e pelo noticiário, simultaneamente. A cada vez que o
streamer ligava o celular para se conectar com o mundo por um tempo curto,
mandava sua localização para os amigos virtuais. Eles retornavam com capturas
de tela dos mapas com rotas possíveis desenhadas, todas contornando os lugares
onde, segundo a imprensa, existiam tropas russas. Bobuubi atravessou a Ucrânia
com mapas estáticos e o celular no modo avião.
Essa compreensão, de que celulares em
guerra são delicados, escapa aos brasileiros. O exibicionismo de Instagram dos
voluntários que saíram daqui é um dos suspeitos de ter ajudado os russos a
localizar uma base da Legião Estrangeira em Lviv, cidade próxima à Polônia. A
base foi dizimada. Posar com uniforme camuflado e arminha não está entre os
hábitos de outros voluntários. Talvez porque a estética do bolsonarismo seja só
nossa.
Tristan Harris, o ativista pela humanização
dos algoritmos das redes, fala muito sobre como nosso ego é acarinhado pelo
código. Os diversos filtros de fotografias se popularizaram tornando a pele
mais lisa, os traços mais suaves, afinando rostos. Nossa versão na rede é
parecida o suficiente conosco, mas é aquela versão aperfeiçoada. Quanto mais
fragilizada está a pessoa a respeito da autoimagem, mais quer se ver na rede. A
submetralhadora e o uniforme representam o mesmo mecanismo.
Há outra forma como as redes alimentam o
ego — é pelas ideias. Elas vão forçando pessoas a pensar de forma cada vez mais
parecida, vão pasteurizando o debate. Quanto menos novidade alguém trouxer,
quanto mais parecido for seu discurso com o da tribo, maior o número de likes.
Ninguém muda de ideia.
Há uns dias, Bernardo Mello Franco, meu vizinho cá nesta página, fez uma
pergunta fundamental. O presidente chileno Gabriel Boric seria eleito no
Brasil? Não é difícil responder. Que parlamentar de esquerda, no Brasil, tem
coragem de ir ao Twitter escrever que o PT fez um governo corrupto, que
Venezuela, Cuba e Nicarágua são ditaduras, ou de denunciar sem condicionantes a
bárbara invasão russa de um país soberano? Receberia o tratamento que a
militância de esquerda concedeu à deputada Tabata Amaral (PSB-SP).
Os líderes jovens da esquerda brasileira
têm as mesmas ideias que septuagenários. No Brasil, Boric seria chamado de
neoliberal em dois tempos.
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