sexta-feira, 18 de março de 2022

Flávia Oliveira: Inflação, a vida pela hora da morte

O Globo

A tempestade perfeita no ambiente global — alta nas cotações de petróleo e gás, valorização recorde das commodities agrícolas, aumento de preço e risco de escassez de fertilizantes químicos — já fez o Ministério da Economia revisar de 4,7% (dentro da meta) para 6,55% (bem acima do teto, de 5%) a estimativa do IPCA para o Brasil em 2022. O Banco Central, para conter a escalada dos preços, elevou a taxa básica de juros para o maior nível em meia década (11,75% ao ano) e prometeu adicionar mais um ponto percentual na próxima reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), em maio. Se o petróleo chegar a dezembro em US$ 100 por barril — ontem voltou ao patamar de US$ 106 —, o IPCA terminará o ano em 6,3%. É o governo Jair Bolsonaro reconhecendo oficialmente o que toda família brasileira já sabe: a vida está pela hora da morte.

Faz um semestre que a inflação acumulada em 12 meses se mantém acima de 10%. Em fevereiro, três de cada quatro itens pesquisados pelo IBGE, quase 400 ao todo, subiram de preço, sinal de espalhamento das remarcações. Pesaram no IPCA do mês mensalidades escolares, alimentação no domicílio, carros e motos, tarifas de transporte. Para o bimestre março-abril, está contratado novo aumento no custo de vida, em razão do tarifaço que a Petrobras aplicou nos preços da gasolina, do diesel e do gás de cozinha nas refinarias. Combustíveis têm efeitos diretos e indiretos no orçamento das famílias. Levam dinheiro na hora de encher o tanque, repor o botijão de gás, pagar passagens; encarecem o frete, pressionam os custos de produção das empresas, que os repassam a mercadorias e serviços.

As famílias brasileiras estão convivendo com a escalada inflacionária desde o início da pandemia de Covid-19. A tragédia sanitária global teve como efeito imediato o aumento da demanda e, consequentemente, do preço dos alimentos. Em 2020, o grupo Alimentação e Bebidas registrou alta de 14,09%, mais que o triplo da inflação oficial (4,52%). Naquele ano, o arroz ficou 76% mais caro; o feijão-preto, 45%; as carnes, 18%; o leite, 27%. Em 2021, foram combustíveis e a energia elétrica que não deram trégua. No IPCA de 10,06%, recorde desde 2015, a gasolina encareceu 47%; o etanol, 62%; o óleo diesel, 42%; a conta de luz, com adicional de risco hídrico, 21%. Neste ano haverá pressão dupla, tanto dos produtos agrícolas quanto dos derivados de petróleo.

O Brasil tem previsão de safra recorde de grãos em 2022. A Conab, subordinada ao Ministério da Agricultura, estima 265,7 milhões de toneladas; o IBGE calculou 261,6 milhões de toneladas, das quais 92,7% serão colheitas de soja, milho e arroz. O agronegócio exportador vai vender e faturar mais, os brasileiros pagarão mais caro. Sergio De Zen, diretor da Conab, diz que não há risco de desabastecimento, mas os preços subirão. “Há um choque de oferta brutal, e os alimentos ficarão mais caros, não só no Brasil. O mundo inteiro vai passar por isso.”

Soja, milho e trigo, bem como açúcar e óleos vegetais, aceleraram a valorização no mercado internacional com a guerra na Europa. Rússia e Ucrânia produzem 30% do trigo e 55% do óleo de girassol consumidos no planeta, informou a FAO, agência da ONU para agricultura e alimentação. Países que dependem dos fertilizantes químicos russos, Brasil incluído, temem interrupções no fornecimento, o que reduziria a produtividade das lavouras. Vinte e cinco nações importam de lá ao menos 30% dos adubos que consomem. A Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia) e a Confederação Nacional da Indústria (CNI) alertaram em notas públicas sobre a pressão inflacionária decorrente da conjuntura internacional.

O lado mais dramático da crise que ronda custo e produção de alimentos é micro, não macro. Relaciona-se com a dieta de crianças, adultos e idosos, vítimas da escalada de preços numa economia sem vigor, que não gera emprego nem renda. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar, da Rede Penssan, apurou que, no primeiro ano da pandemia, 116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno a alimentos. São famílias que reduziram compras, substituíram comida cara por opções mais baratas ou cortaram refeições. Do total, 19,1 milhões de pessoas estavam passando fome. Nova edição da pesquisa deverá ser divulgada entre abril e maio, desta vez com informações por unidades da Federação.

Anteontem, Leo Dias, colunista do site Metrópoles, publicou o rol de iguarias brasileiras que o casal A$ap Rocky e Rihanna, ela no último trimestre de gravidez, quer experimentar na viagem ao país. No mês que vem, o rapper se apresentará no festival Lollapalooza, em São Paulo. A lista tem de cuscuz e pamonha (milho subiu 21% em 12 meses) a pão de queijo (queijo, +14%). Inclui bobó de camarão e mandioca frita (+46%); feijoada completa (carne de porco salgada, +8%) e churrasco (picanha, +11%); acarajé (feijão-fradinho, +10%), suco de laranja (+29%) e banana (+18%). O melhor da culinária nacional, na era Bolsonaro, só cabe no bolso dolarizado das estrelas internacionais. Para o povo, ossos.

 

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