Valor Econômico
Existe uma forte rede de proteção informal
entre os trabalhadores menos qualificados, uma espécie de seguro informal
Dados do IBGE divulgados na semana passada
mostraram uma grande queda na renda dos brasileiros em 2021. Além disto, outra
pesquisa mostrou que a insegurança alimentar e a fome aumentaram bastante.
Quais as razões para este rápido empobrecimento da população brasileira? Por
que a rede de proteção social não está dando mais conta de proteger os mais
pobres da fome?
A figura mostra a evolução da renda per
capita média e dos seus componentes (renda do trabalho e de outras fontes) nos
últimos 30 anos no Brasil. Várias informações nela merecem destaque. Podemos
ver, em primeiro lugar, que a renda aumentou 84% entre 1992 e 2019 (3,6% ao
ano), principalmente entre 2004 e 2014. A renda do trabalho foi a principal
responsável por este processo, mas as outras fontes de renda também
contribuíram bastante.
O mais interessante é que a renda de outras fontes aumentou continuamente no período, tendo passado de R$ 150 para R$ 390 per capita, um aumento de 160%. As principais fontes desta categoria são as aposentadorias, programas de transferências de renda, doações, aluguéis e rendimentos do mercado financeiro. Como essas rendas foram ganhando importância crescente, a renda total foi ficando cada vez menos dependente da renda do trabalho. Se antigamente o desemprego tinha um efeito brutal sobre a renda, hoje em dia as rendas de outras fontes funcionam como um amortecedor, como deve acontecer em um Estado de bem-estar social.
Por exemplo, em 2015 tivemos uma forte
queda no PIB per capita, que não se recuperou até hoje. Entretanto, o efeito
sobre a renda média foi limitado. A renda média declinou apenas 4% entre 2014 e
2018 e já em 2019 havia recuperado seu valor de antes da crise. Isto ocorreu
não só porque a queda do PIB não parece ter afetado fortemente a renda de
trabalho, mas também porque as outras fontes de renda continuaram aumentando
durante o período, principalmente as que estão vinculadas ao salário mínimo,
como as aposentadorias e o Benefício de Prestação Continuada.
Mas o que ocorreu entre 2019 e 2021? Este
foi o período da pandemia, que afetou bem mais fortemente o mercado de
trabalho. A renda média do trabalho caiu 10% em média neste período, sendo que
os trabalhadores mais pobres foram os mais afetados. Entre eles, a renda do
trabalho caiu 40% em dois anos, pois o isolamento social diminuiu bastante as
oportunidades de trabalho informal e por conta-própria, que são as principais
fontes de renda para os trabalhadores sem muitas qualificações. Além disso, o
recrudescimento do processo inflacionário pode ter contribuído para a queda de
renda real do trabalho, especialmente entre os mais pobres que ganham abaixo do
salário mínimo.
A renda de outras fontes caiu 14% entre
2019 e 2021, ao contrário do que estava ocorrendo desde 1992. Por que desta vez
foi diferente? Isso é ainda mais intrigante porque o valor das transferências
de renda aumentou entre 2019 e 2021, já que o programa bolsa-família, que
pagava R$ 200 em média, foi substituído pelo auxílio emergencial, que pagou em
torno de R$ 250 em 2021. Assim, o valor médio real efetivamente recebido pelas
famílias mais pobres de transferências aumentou 22% em 2021, apesar de ter
declinado com relação a 2020, quando os valores transferidos eram de R$ 600 ou
R$ 1200.
O principal responsável pela queda das
outras fontes de renda entre os mais pobres neste período parece ter sido as
doações. Existe uma forte rede de proteção informal entre os trabalhadores
menos qualificados, em que os que passam por períodos melhores transferem renda
para os que estão passando por dificuldades. É uma espécie de seguro informal.
Mas, durante a pandemia, como todos os trabalhadores menos qualificados foram
afetados simultaneamente, este sistema de seguro parou de funcionar. Assim, o
declínio da renda do trabalho entre os mais pobres não foi compensado pelas
outras rendas e a renda média caiu ainda mais, provocando a volta da fome. Sem
o auxílio emergencial a situação seria ainda pior. O que deve acontecer agora?
Como a pandemia foi um evento único e a
economia está voltando ao normal em 2022, deveremos observar um aumento das
outras rendas e retomada do processo de seguro informal que ocorre entre os
trabalhadores menos qualificados, desde que a inflação seja controlada. Além
disto, a diminuição do desemprego deverá estabilizar as perdas do mercado de
trabalho. Assim, não deveremos observar outra queda de renda nesta magnitude em
2022.
No longo prazo, agora que já temos um
Estado de proteção social montado, aumentos de renda terão que vir
principalmente da renda do trabalho, pois não será possível aumentar muito mais
os rendimentos de outras fontes sem que haja forte aumento da carga tributária
ou da inflação. Além disto, devemos aperfeiçoar e recuperar os programas
sociais que foram desmantelados nos últimos quatro anos.
Para aumentar os rendimentos do trabalho é
necessário aumentar a sua produtividade, melhorando a qualificação do
trabalhador e os investimentos. Para isso, temos que melhorar a qualidade da
educação, aumentar a parcela de trabalhadores com ensino superior e igualar as
oportunidades entre as pessoas e entre as empresas, tornando o ambiente de
negócios mais previsível e democrático.
*Naercio Menezes Filho é professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, professor associado da FEA-USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e diretor do CPAP.
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