sexta-feira, 17 de junho de 2022

José de Souza Martins*: Ameaça à universidade pública

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O projeto de emenda constitucional que busca instituir o ensino pago nas universidades públicas e gratuitas é equivocado porque indiretamente privatiza o ensino universitário público

A recente iniciativa de um deputado no sentido de, através de uma emenda constitucional, instituir o ensino pago nas universidades públicas e gratuitas é preocupante porque representa uma ameaça à destinação histórica dessas universidades no Brasil.

O autor e os que o acompanham incluem no projeto um complicado conjunto de “atenuantes” para peneirar os que terão direito à isenção de pagamento da universidade pública. Ficará comprometida a premissa constitucional do acesso universal, regulado apenas pela competência nos exames de seleção.

Depois da aprovação no vestibular, haverá o peneiramento econômico para decidir quem será obrigado a pagar pela vaga conseguida. O cérebro pode passar, mas o bolso não. Como se decide quem é tecnicamente carente para ficar dispensado de pagar pela vaga legitimamente conseguida? Um pai abonado não quer dizer um filho abonado.

Para um jovem que está apenas chegando ao mundo das responsabilidades de adulto, num cenário quase sempre marcado pela crise de gerações, a eventual reinstituição da dependência em relação aos pais é de fato um ato de menorização de quem está tentando ser adulto. Isso cercará de incertezas o aluno nessas condições. E certamente afetará seu desempenho escolar. A PEC é antipedagógica.

O projeto de emenda constitucional é equivocado porque indiretamente privatiza o ensino universitário público. Não pagar por ele passa a ser a exceção e deixa de ser a regra. Transforma o aluno que não paga em devedor de caridade e o que paga em inquilino de vaga universitária.

O direito à universidade pública e gratuita é um direito da nação que nos alunos investe para ter os profissionais de que carece, não raro em funções públicas, funções de Estado. Ela escolhe os que têm vocação para nela ingressar e por meio da formação nela recebida servir ao país nas áreas conspícuas do conhecimento, mesmo que seja em funções da empresa privada. Pobres e ricos que tenham a vocação da produção e distribuição de conhecimento devem ser recrutados pelas universidades públicas e gratuitas para que tenham eles ao seu alcance toda a estrutura de desenvolvimento dessas vocações.

O autor do projeto e os que o apoiam mostram que não têm clareza sobre o que é uma universidade pública. Confundem universidade com escola de terceiro grau, que tem funções basicamente escolares. Para ter a compreender o que ela é depende de ter-se em conta qual é a função de uma universidade pública, num país ainda atrasado como o nosso.

As verdadeiras universidades são instituições de pesquisa, especialmente pesquisa científica em todos os campos de conhecimento. O ensino é decorrência desse primado. A pluralidade e a complexidade da pesquisa, aqui, só é possível com recursos do Estado e, portanto, na universidade pública. Cobrar mensalidades está longe de cobrir os custos dessas instituições de ensino e pesquisa. Elas se dedicam à formação de cientistas, técnicos e educadores para distribuir o conhecimento nelas produzido, reproduzido e aperfeiçoado.

A característica principal e decisiva da universidade pública é a da pesquisa desinteressada, da pesquisa pela pesquisa. A de resolver as questões e indagações propostas pelo conhecimento já acumulado, as pendências da história da ciência, as necessidades do conhecimento. É assim que o conhecimento progride e é assim que por meio dele concretos problemas da condição humana são resolvidos ou atenuados.

Além do que, a verdadeira universidade é a instituição pública de pesquisa e ensino que atrai vocações, é um chamamento de gente capaz, independente de classe social, sexo, cor, crença e o que mais seja. Nesse sentido, ela não faz caridade. É o aluno recrutado, independentemente de suas condições sociais, que se doa à universidade para a missão do progresso do conhecimento como condição do desenvolvimento humano e da afirmação do primado da vida e do direito de todos à vida verdadeira.

A PEC do ensino pago na universidade pública laica e gratuita é a negação dessas premissas e nisso revela o seu sentido oculto, que é o de minimizar a qualidade criativa do ensino e mesmo destruí-la ao conformá-la à ideologia do balcão de negócios.

A educação pública, laica e gratuita é uma conquista da civilização no Brasil, não só dos educadores, mas também dos setores lúcidos, patriotas e responsáveis das elites. Os dos cidadãos que se propuseram a completar a Lei Áurea com a libertação de todos os brasileiros da escravidão da ignorância e do atraso social e político. Sobretudo a universidade pública, ainda que tardia, tem tido aqui a missão civilizadora de dar o salto histórico compensatório que trouxesse o Brasil para o século de hoje.

*José de Souza Martins foi professor titular de sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

O difícil é um pobre chegar nessas universidades.