Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
O que está em jogo hoje é muito mais do que
aprimorar a recondução e criar medidas para evitar o uso da máquina pública
Bolsonaro e seus aliados estão desmontando
e/ou colocando em risco as instituições brasileiras em nome do projeto de
reeleição. É bem verdade que outros presidentes já cometeram populismos para
manter-se no poder. Como exemplos, Fernando Henrique adiou a desvalorização
cambial em 1998, Dilma fez uma campanha sórdida contra Marina em 2014 e haveria
muitos outros casos semelhantes nos níveis estadual e municipal. Mas há uma
importante diferença agora: o bolsonarismo atua contra as próprias bases da
democracia.
A crítica ao instituto da reeleição vem
desde a sua criação no primeiro mandato de FHC. O próprio ex-presidente disse
recentemente que se arrepende da maneira como esse processo se deu,
especialmente porque a regra foi aprovada, em 1997, valendo já para o então
incumbente. O uso dessa regra nos últimos 25 anos gerou muitas acusações sobre
o uso da máquina a favor do governante de plantão, algumas com muitas
evidências de favorecimento e outras com pouca comprovação. De todo modo,
quando se vê a pirataria institucional cometida por Bolsonaro para continuar no
poder, fica a pergunta se não valeria a pena proibir a recondução.
É preciso lembrar que a máquina governamental era usada para a manutenção de grupos no poder nas três esferas federativas também quando não havia a reeleição. Um dos casos mais famosos é o da eleição de Luiz Antônio Fleury Filho para o governo paulista em 1990. Seu padrinho político e então governador, Orestes Quércia, teria dito no dia seguinte do pleito: “Quebrei o estado, mas elegi meu sucessor”. Em eleições municipais pelo país afora, prefeitos plantavam laranjas para voltar depois, e por vezes colocavam parentes apenas para esquentar a cadeira.
Estudos acadêmicos já mostraram, contudo,
que há efeitos benéficos da reeleição, como a continuidade de políticas
públicas de Estado, ou mesmo a redução da corrupção local, tal qual têm mostrado
os excelentes trabalhos de Claudio Ferraz. Ademais, é possível melhorar as
instituições para evitar o abuso do poder às vésperas da eleição. Um exemplo
neste sentido seria proibir alterações tributárias pelo menos nove meses antes
do pleito. O governo Bolsonaro está fazendo, com o apoio do Congresso e do
orçamento secreto, uma festa com o dinheiro público, podendo inviabilizar
gestões futuras, não só no nível federal, mas principalmente nos planos
estadual e municipal. A Federação poderá amanhecer quebrada em 2023 e quem vai
pagar o pato serão os mesmos de sempre, com maior impacto sobre os mais pobres.
O bolsonarismo está montando, de improviso,
uma série de medidas desesperadas para garantir a reeleição, que no conjunto
conformam um novo Plano Cruzado, aquele que durou o tempo necessário para o
PMDB conquistar o maior número de votos e postos de poder em 1986, morrendo no
dia seguinte da eleição e estourando a inflação nos anos seguintes. É
engraçado, se não fosse trágico, que Paulo Guedes foi muito crítico daquele
plano econômico, mas agora ele está montando uma farsa ainda maior.
Mas há uma diferença entre os dois
momentos: Sarney fez seu congelamento sem atacar a democracia, ao passo que
Bolsonaro tem confrontado as instituições em meio à criação de seu Plano
Cruzado, visando ganhar a eleição junto com seus parceiros congressistas e nas
governadorias, para com eles desfrutar de um projeto político certamente
autocrático. Sua demagogia terá não só enormes custos econômicos e sociais a
partir do ano que vem, como ainda poderá reduzir a qualidade institucional do
país.
Dessa maneira, o que está em jogo hoje é
algo muito maior do que o aperfeiçoamento do instituto da reeleição e da
criação de medidas para evitar o uso da máquina pública. O projeto reeleitoral
de Bolsonaro contra a democracia pode ocorrer em três cenários: para evitar a
derrota, impedindo a sucessão; para inviabilizar a governabilidade do próximo
governante; ou vencendo o pleito, mas gerando o enfraquecimento econômico e
institucional do país, o que exigirá maior concentração do poder nas mãos do
presidente para que ele se coloque como o “salvador da pátria”, o verdadeiro
sonho do bolsonarismo.
O problema é que não bastam reformas
institucionais para evitar esse modelo populista e autoritário de campanha
reeleitoral. Muitos grupos políticos e sociais estão apoiando o projeto
autocrático de Bolsonaro. São congressistas, políticos locais, grupos de
militares, atores sociais e econômicos. Isso revela que a defesa da democracia
passa pelo reforço das instituições, mas vai além disso: precisa de apoio ativo
da sociedade. Enquanto houver setores que apoiem um modelo de reeleição que se
fortalece às custas das instituições, o risco colocado ao país é muito sério -
e muitos líderes políticos e investidores internacionais já perceberam esse
perigo.
O projeto autoritário da reeleição não é
somente um discurso vazio, pois há ações estratégicas em cinco dimensões. A
primeira é a dominação do Congresso Nacional. Pela via do orçamento secreto,
grande parte dos parlamentares aceitou atropelar os ritos processuais básicos e
correr para aprovar qualquer coisa que salve a eleição de Bolsonaro. O
comandante desse front é o presidente da Câmara, Arthur Lira, que tem a força
de distribuir bilhões de reais e definir o processo decisório dos deputados.
Coadjuvante nesse processo é o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Embora
tente demonstrar maior independência do bolsonarismo nos momentos de maior
crise, não consegue reduzir o apelo de projetos governistas que estejam
ancorados na alocação de recursos, especialmente os do orçamento secreto, que
também chegaram à maioria dos senadores.
A segunda dimensão da estratégia de
destruição institucional em prol da reeleição está na Federação. A redução de
alíquotas do ICMS tem um efeito muito maior do que diminuir preços de
combustíveis e energia. Essa mudança enfraquece os governos estaduais e
municipais, que perderão receitas sem que suas despesas efetivamente caiam - ao
contrário, com a crise social, terão de gastar mais, até porque as políticas
sociais federais estão mais frágeis e desestruturadas hoje. A promessa de
recompensar estados e municípios é um engodo, visto que tal medida será
detonada pela Câmara e/ou pelo veto presidencial.
Ao final, o presidente do Senado e os
senadores, em vez de defenderem a Federação, enfraqueceram aqueles que
representam, um verdadeiro escândalo em relação à Constituição, cometendo um
crime contra o federalismo que deveriam proteger.
As políticas sociais estruturantes,
especialmente educação, ciência e tecnologia, assistência social, saúde e meio
ambiente, também estão na mira do projeto reeleitoral - eis aqui a terceira
dimensão da estratégia eleitoral do bolsonarismo. Reduzir o orçamento dessas
áreas é uma vingança contra os que votam contra o presidente - pois são
defensores do Estado de Bem-Estar Social - e uma sinalização das prioridades
bolsonaristas: garimpeiros ilegais, homeschooling, enfraquecimento do SUS,
destruição do Fundeb, fortalecimento dos picaretas negacionistas da internet
contra os argumentos científicos e, como síntese, o apoio àqueles que não
querem criar oportunidades e condições dignas de vida aos mais pobres, mas,
sim, explorá-los, como os milicianos da base política de Bolsonaro ou os que
hoje dominam ilegalmente a Amazônia.
A destruição institucional tem um elemento
central no ataque ao Judiciário, em especial ao STF e ao TSE. Quase todos os
dias o presidente e seus aliados ameaçam ministros do Supremo. Além das falas
cotidianas do presidente, o último bolsonarista a fazê-lo foi o ex-senador
Magno Malta, num ataque ao ministro Barroso que não seria feito em nenhum país
democrático, uma vez que disse uma mentira destinada a desmoralizar os
guardiões da Constituição. Para garantir a reeleição ou evitar a derrota, é fundamental
deixar sob suspeita o processo eleitoral e as decisões judiciais, de modo a
tentar diminuir a capacidade de os controles institucionais atuarem como freios
aos populismos autoritários de Bolsonaro e companhia.
O ataque sistemático ao Judiciário é, dessa
maneira, a quarta dimensão do projeto reeleitoral e tem como pior instrumento o
uso das Forças Armadas na luta contra o TSE. Somente uma República de bananas,
daquelas execradas por figuras como Castelo Branco ou Geisel, aceitaria que
militares emparedassem os juízes que comandam a eleição. Foi ultrapassada uma
linha básica da democracia, e as consequências disso ainda são incertas.
Para terminar, o modelo bolsonarista de
reeleição sustenta-se em alimentar cotidianamente o medo da população e de
vários setores sociais em relação à alternância do poder. Esse processo vai
ganhar mais força nos próximos meses e consiste em dizer que qualquer mudança
no comando do país é algo que não pode ser admitido. Primeiro, serão execradas
pessoas, com histórias geralmente distorcidas. Depois, temáticas polêmicas ou
falsas serão espalhadas pelas redes sociais, com foco em grupos mais sensíveis,
como os evangélicos. Se tudo isso não der certo, ainda há o não final. O que
Bolsonaro quis dizer para Biden quando afirmou que a volta de Lula seria
contrária aos interesses dos EUA resume-se na frase famosa dos antifranquistas
na Espanha: não passarão. É sob este lema que o bolsonarismo vai conduzir o
projeto reeleitoral, colocando em risco a democracia brasileira.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
Um comentário:
FHC sempre foi contra o instituto da reeleição,ele disse que corria o risco de criar pequenos feudos nos rincões do País,apesar do projeto ser dele.
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