Folha de S. Paulo
Ele encarna um sonho de Brasil que nos cabe
resgatar, realimentando esperanças
Neste momento em que cartas e manifestos em
defesa da democracia mostram a capacidade de resistência do Brasil ao
autoritarismo, trago a "Carta à República", canção de Milton Nascimento e
Fernando Brant, de 1987.
"Sim é verdade, a vida é mais livre/ O medo já não convive nas casas, nos bares, nas ruas/ Com o povo daqui/ E até dá pra pensar no futuro/ E ver nossos filhos crescendo e sorrindo/ Mas eu não posso esconder a amargura/ Ao ver que o sonho anda pra trás/E a mentira voltou/ Ou será mesmo que não nos deixara?/ A esperança que a gente carrega/ É um sorvete em pleno sol/ O que fizeram da nossa fé?/ Eu briguei, apanhei, eu sofri, aprendi/ Eu cantei, eu berrei, eu chorei, eu sorri/ Eu saí pra sonhar meu país/E foi tão bom, não estava sozinho/ A praça era alegria sadia/ O povo era senhor/ E só uma voz, numa só canção/ E foi por ter posto a mão no futuro/ Que no presente preciso ser duro/ E eu não posso me acomodar/ Quero um país melhor".
A canção fala do fim da ditadura, mas
também da frustração de esperanças que se esvaíam naqueles primeiros tempos de
respiro democrático. Mais de 30 anos depois, a carta de Milton e Fernando
permanece atualíssima. Fui buscá-la na memória depois de assistir ao
espetáculo "A
Última Sessão de Música", que marca a despedida de Milton dos
palcos.
Prestes a completar 80 anos, Milton ainda
tem um diamante na voz, que reverbera os quilombos, as aldeias, as beiras de
rio, morros e favelas, onde quer que tenha gente "que ri quando deve
chorar, e não vive, apenas aguenta". Milton é o menino Miguel, de Santa
Luzia, que ligou para a polícia pedindo comida para seus cinco irmãos e para
sua mãe, Célia, uma das tantas Marias com a "estranha mania de ter fé na
vida".
Milton encerrou o show com um "Viva a democracia!". O artista encarna um sonho de Brasil que nos cabe resgatar, realimentando esperanças, reconstruindo caminhos. Feliz do país que tem a voz soberana de Milton Nascimento.
Um comentário:
"Ficar de frente para o mar, de costas pro Brasil, não vai fazer desse lugar um bom país."
À memória do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, vítimas das ações e omissões de Jair Bolsonaro na Amazônia brasileira!
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