sexta-feira, 19 de agosto de 2022

José de Souza Martins* - O Brasil subjacente

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Em nosso subdesenvolvimento econômico do mero crescimento e das grandes taxas de lucro perece o Brasil industrial do verdadeiro desenvolvimento econômico com desenvolvimento social

Um conjunto de fatos e fatores da conjuntura política atual expõe de maneira singular as contradições da sociedade brasileira, sua perda de identidade, a inversão das realidades, o protagonismo do avesso que somos de nós mesmos. Somos um país politicamente duplo.

De certo modo, vai chegando a hora da verdade do Brasil, a do enfrentamento dessa duplicidade, sem que seja ela, propriamente, a hora de sua certeza, de sua emancipação e, finalmente, do encontro do país consigo mesmo. Do país capaz ou não de sair do atoleiro dos oportunismos que transformaram a nação em propriedade privada. Neste centenário da Semana de Arte Moderna, Macunaíma tornou-se real, o herói sem nenhum caráter, que é e não é ao mesmo tempo.

Um país que já foi industrializado e se tornou meio industrializado para atender, pela força, à ditadura de uma geopolítica do subdesenvolvimento econômico com grave e crescente atraso social. Um atraso, aliás, nunca dantes visto nem vivido, pois é o de um país que “evoluiu” para o atraso modernizado do desenvolvimento desigual. Um país sem futuro. Quase só nos repetimos.

Nossa hora da verdade é a daqueles momentos da história em que os impasses, aparentemente, já não podem ser resolvidos pela repetição do que tem sido inovação da forma econômica sem transformação social. A do caminhar para não andar, sem propriamente sair do lugar. História que é um rodopio para encompridar a ida ao lá adiante com nostalgia do lá atrás.

Os momentos que pedem transformação e inovação social, cujos protagonistas acreditam piamente que o amanhã é ontem de um país que nunca existiu. O imaginário político brasileiro é um imaginário curupira.

Mas, neste agora, parece esgotada a falsa alternativa do repetitivo. Num país dominado por alguém que desde o primeiro dia do mandato a ele renunciou tacitamente, a história se romperá nas insuficiências e degradações sociais, nas irracionalidades da economia, na falta de horizontes da política. Mas de onde nos virá o socorro, se o próprio Estado, no desgoverno atual, bloqueou a criatividade política, criminalizando-a?

As ciências humanas e as ciências sociais têm pela frente esse desafio, o de produzir conhecimento em perspectiva crítica, ao alcance dos protagonistas decisivos da realidade social, educativo e ressocializador dos dirigentes. Um conhecimento libertador dos efeitos complexos de um fardo histórico que também nos tolhe. Um passado que se disfarça na modernização fingida da economia, da educação, das relações sociais, do sistema político mutilado por fragmentação e privilégios que o paralisam.

A atualização do clamor por direitos sociais se dá por meio de novas identidades de sujeitos sociais de características claramente estamentais, o novo disfarçado no velho.

Há um Brasil subjacente ao Brasil de nossas ilusões, das nossas fantasias, das mentiras que nos contam e da alienação que nos permite ver o supérfluo e não enxergar o essencial. Em nosso subdesenvolvimento econômico do mero crescimento e das grandes taxas de lucro perece o Brasil industrial do verdadeiro desenvolvimento econômico com desenvolvimento social. Um país que inventou o capitalismo suicida para não ser o que poderia ter sido. O capitalismo retrógrado, reacionário e pobre de espírito, que vitima em primeiro lugar o próprio empresário.

Um país cuja concepção de desenvolvimento social retrocedeu à melancolia da esmola estatizada para encher meio estômago dos famintos cada vez mais numerosos. Um país que jogou no lixo do oportunismo político receitas promissoras de inclusão social dos desvalidos como sujeitos da história e do progresso.

Lembro do Bolsa Escola, do professor Cristovam Buarque, reitor da Universidade de Brasília, um subsídio para que as famílias pobres não tirassem seus filhos da escola e evitassem que a educação fosse engolida pelo trabalho barato de crianças imaturas.

A bela proposta foi transformada no equívoco de bolsas que, na prática, subsidiam o desemprego e barateiam a reprodução da força de trabalho. Como as formas degradadas de morar nas cidades, em cortiços e favelas que tornam baratos e vulneráveis os que do trabalho dependem para sobreviver. No tempo da escravidão, o senhor de escravos, ao menos, assegurava moradia e alimentação aos seus cativos.

O Brasil de hoje é o do pacto do atraso de 1º de abril de 1964, quando as Forças Armadas fizeram sua aliança tenebrosa com o latifúndio retrógrado e a redefinição do país industrialista como país da associação entre capital e renda da terra contra o capital propriamente capitalista e produtivo, em vez de fazer uma reforma agrária distributivista, criadora de emprego e renda e de mercado para a indústria.

*José de Souza Martins foi professor titular de sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).

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