Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Em nosso subdesenvolvimento econômico do
mero crescimento e das grandes taxas de lucro perece o Brasil industrial do
verdadeiro desenvolvimento econômico com desenvolvimento social
Um conjunto de fatos e fatores da
conjuntura política atual expõe de maneira singular as contradições da
sociedade brasileira, sua perda de identidade, a inversão das realidades, o
protagonismo do avesso que somos de nós mesmos. Somos um país politicamente
duplo.
De certo modo, vai chegando a hora da
verdade do Brasil, a do enfrentamento dessa duplicidade, sem que seja ela,
propriamente, a hora de sua certeza, de sua emancipação e, finalmente, do
encontro do país consigo mesmo. Do país capaz ou não de sair do atoleiro dos
oportunismos que transformaram a nação em propriedade privada. Neste centenário
da Semana de Arte Moderna, Macunaíma tornou-se real, o herói sem nenhum
caráter, que é e não é ao mesmo tempo.
Um país que já foi industrializado e se tornou meio industrializado para atender, pela força, à ditadura de uma geopolítica do subdesenvolvimento econômico com grave e crescente atraso social. Um atraso, aliás, nunca dantes visto nem vivido, pois é o de um país que “evoluiu” para o atraso modernizado do desenvolvimento desigual. Um país sem futuro. Quase só nos repetimos.
Nossa hora da verdade é a daqueles momentos
da história em que os impasses, aparentemente, já não podem ser resolvidos pela
repetição do que tem sido inovação da forma econômica sem transformação social.
A do caminhar para não andar, sem propriamente sair do lugar. História que é um
rodopio para encompridar a ida ao lá adiante com nostalgia do lá atrás.
Os momentos que pedem transformação e inovação social, cujos protagonistas acreditam piamente que o amanhã é ontem de um país que nunca existiu. O imaginário político brasileiro é um imaginário curupira.
Mas, neste agora, parece esgotada a falsa
alternativa do repetitivo. Num país dominado por alguém que desde o primeiro
dia do mandato a ele renunciou tacitamente, a história se romperá nas
insuficiências e degradações sociais, nas irracionalidades da economia, na
falta de horizontes da política. Mas de onde nos virá o socorro, se o próprio
Estado, no desgoverno atual, bloqueou a criatividade política,
criminalizando-a?
As ciências humanas e as ciências sociais
têm pela frente esse desafio, o de produzir conhecimento em perspectiva
crítica, ao alcance dos protagonistas decisivos da realidade social, educativo
e ressocializador dos dirigentes. Um conhecimento libertador dos efeitos
complexos de um fardo histórico que também nos tolhe. Um passado que se
disfarça na modernização fingida da economia, da educação, das relações
sociais, do sistema político mutilado por fragmentação e privilégios que o
paralisam.
A atualização do clamor por direitos
sociais se dá por meio de novas identidades de sujeitos sociais de
características claramente estamentais, o novo disfarçado no velho.
Há um Brasil subjacente ao Brasil de nossas
ilusões, das nossas fantasias, das mentiras que nos contam e da alienação que
nos permite ver o supérfluo e não enxergar o essencial. Em nosso
subdesenvolvimento econômico do mero crescimento e das grandes taxas de lucro
perece o Brasil industrial do verdadeiro desenvolvimento econômico com
desenvolvimento social. Um país que inventou o capitalismo suicida para não ser
o que poderia ter sido. O capitalismo retrógrado, reacionário e pobre de
espírito, que vitima em primeiro lugar o próprio empresário.
Um país cuja concepção de desenvolvimento
social retrocedeu à melancolia da esmola estatizada para encher meio estômago
dos famintos cada vez mais numerosos. Um país que jogou no lixo do oportunismo
político receitas promissoras de inclusão social dos desvalidos como sujeitos
da história e do progresso.
Lembro do Bolsa Escola, do professor
Cristovam Buarque, reitor da Universidade de Brasília, um subsídio para que as
famílias pobres não tirassem seus filhos da escola e evitassem que a educação
fosse engolida pelo trabalho barato de crianças imaturas.
A bela proposta foi transformada no
equívoco de bolsas que, na prática, subsidiam o desemprego e barateiam a
reprodução da força de trabalho. Como as formas degradadas de morar nas
cidades, em cortiços e favelas que tornam baratos e vulneráveis os que do trabalho
dependem para sobreviver. No tempo da escravidão, o senhor de escravos, ao
menos, assegurava moradia e alimentação aos seus cativos.
O Brasil de hoje é o do pacto do atraso de
1º de abril de 1964, quando as Forças Armadas fizeram sua aliança tenebrosa com
o latifúndio retrógrado e a redefinição do país industrialista como país da
associação entre capital e renda da terra contra o capital propriamente
capitalista e produtivo, em vez de fazer uma reforma agrária distributivista,
criadora de emprego e renda e de mercado para a indústria.
*José de Souza Martins foi professor titular de sociologia na Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante" (Editora Unesp, 2021).
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