O Globo
Não é aceitável tratar como fake news ou
marketing político a estratégia espúria de atrair votos via perseguição
religiosa ou sacralização de candidaturas
Quatro décadas atrás, quando comecei a percorrer grandes distâncias da cidade de ônibus, faria diferença saber que importunação sexual batizava o constrangimento a que meninas e mulheres eram submetidas silenciosamente no transporte público. Seria encorajador nominar como assédio sexual as cantadas indesejáveis nos ambientes acadêmicos e corporativos. E libertador tratar como estupradores os que sequestravam infâncias e adolescências com abusos cometidos em igreja, escola, família, vizinhança. Ou apontar o racismo de quem não perdia a chance de chamar de macacos pessoas negras de todas as idades, dolosamente desumanizando-as. São todos termos ora enquadrados como crimes para coibir violações de direitos, ainda persistentes.
Um mês atrás, os pesquisadores Helena
Salgueiro Lermen e Martinho Braga Batista e Silva, do Instituto de Medicina
Social da Uerj, e Adriana Kelly Santos, do Instituto Oswaldo Cruz, publicaram
artigo sobre a dimensão política de expressões usadas para identificar
indivíduos em confinamento e instituições que os abrigam. Substituir a palavra
lepra por hanseníase ajudou a reduzir o estigma da doença. Trocar superlotação
por superencarceramento guarda a intenção de, em vez de construir novas
unidades para receber mais detentos, reduzir a aplicação de penas de privação
da liberdade ou oferecer sanções alternativas. “Materiais educativos podem
colaborar para que mudanças na terminologia governamental sejam incorporadas
pelo público leigo. Essas mudanças podem legitimar discursos e procedimentos
médico-sanitários, como também jurídico-penais”, defende o estudo.
Há algum tempo, Brasil e mundo debatem o
uso da linguagem neutra para incluir pessoas e grupos, caso de não binários
intersexo, que não se veem representados pelos gêneros feminino e masculino. Em
vez de ela e ele, elu; de amiga e amigo, amigue; de todas e todos, todes. Ainda
que não tenha sido incorporado formalmente pela norma- padrão da língua
portuguesa, o gênero neutro sinaliza, nas relações pessoais, sociais,
institucionais, o respeito à identidade e o enfrentamento à exclusão. Desde
2018, pessoas transgênero, travestis e transexuais podem incluir o nome social
no título de eleitor. O Tribunal Superior Eleitoral informou que, no pleito
deste ano, 37.646 brasileiros e brasileiras se habilitaram a votar com nome
social. Entre os 28 mil candidatos, 34 exibirão nas urnas identificação
diferente dos registros de nascimento.
Chamar pelo nome importa, porque empodera,
coíbe violações, promove respeito. Por isso não é aceitável tratar como fake
news ou marketing político a estratégia espúria de atrair votos via perseguição
religiosa ou sacralização de candidaturas. Distribuir em rede social conteúdo
que demoniza cultos e rituais afro-brasileiros, como fizeram a vereadora
Sonaira Fernandes (Republicanos-SP) e a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, é
intolerância religiosa. E, com viés racista, uma vez que ratifica a perseguição
às tradições legadas por ancestrais africanos a seus descendentes. Está certa a
candomblecista Jairã Andrade dos Santos, que apresentou queixa-crime pela
divulgação depreciativa do vídeo em que aparece dando no ex-presidente Luiz
Inácio Lula da Silva um banho de pipoca, ritual de Obaluaê, orixá da doença e
da cura.
Fazer da disputa presidencial guerra santa
ou luta do bem contra o mal é mentira deslavada. Os adversários de Jair
Bolsonaro não são demônios, o presidente não é a encarnação do bem. Não há
bondade na indiferença a 682 mil mortes por Covid-19, quando boa parte desses
brasileiros e brasileiras estaria viva se não houvesse sabotagem oficial ao
isolamento, às máscaras, às vacinas. Não existe bondade no líder máximo de um
país em que um litro de leite custar mais do que um de gasolina. Falta bondade
a quem ignora 33 milhões de famintos, minimiza recorde de desmatamento na
Amazônia, nega território aos povos tradicionais, autoriza (tácita ou
explicitamente) crimes de ódio, violência política, ataques à democracia e ao sistema
eleitoral.
O presidente da República também não é a
materialização do mal. É um líder inapto e autoritário, cercado de aduladores
oportunistas, que tenta permanecer no poder. Não é escolhido de Deus, como
tampouco são seus concorrentes. É somente um candidato à reeleição reprovado
por 57% do eleitorado, como aponta pesquisa Ipec. Alguém que, para 54% dos
ouvidos na aferição da Genial/Quaest, não merece uma segunda chance de governar
o país. E o homem em quem 51% dos entrevistados pelo Datafolha não votariam de
jeito nenhum.
Um comentário:
Muito bem comentado, vc. é uma pessoa justa.
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