Câmara tem de rever texto da PEC da Transição
O Globo
Barbaridade aprovada no Senado implode
arcabouço fiscal e grava o orçamento secreto na Constituição
O PT e o presidente eleito, Luiz Inácio
Lula da Silva, na certa celebraram a primeira vitória do novo governo, com a
aprovação no Senado da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Transição,
que abre espaço orçamentário para gastos adicionais estimados em R$ 205 bilhões
no ano que vem, além de mais R$ 181 bilhões em 2024. O novo governo petista
será, contudo, o primeiro a sofrer consequências nefastas se a PEC passar
intacta pela Câmara. Não será nada agradável para um presidente sem maioria
sólida no Congresso, que governa um país dividido.
O texto aprovado estabelece o prazo de 31 de agosto de 2023 para o presidente da República encaminhar ao Congresso um “projeto de lei complementar com objetivo de instituir regime fiscal sustentável para garantir a estabilidade macroeconômica”. Até lá, nenhuma das regras outrora em vigor será confiável. Ao estabelecer que as despesas adicionais não estarão sujeitas ao teto de gastos nem aos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal, a PEC da Transição termina de implodir o que resta do arcabouço fiscal brasileiro. Antes mesmo da posse, Lula — com a contribuição inestimável dos parlamentares — concluirá o serviço iniciado pelo presidente Jair Bolsonaro.
A consequência imediata é descrita sem
rodeios no comunicado do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central,
emitido horas antes da aprovação da PEC: “Entre os riscos de alta para o
cenário inflacionário e as expectativas de inflação, destacam-se (i) uma maior
persistência das pressões inflacionárias globais; (ii) a elevada incerteza
sobre o futuro do arcabouço fiscal do país e estímulos fiscais adicionais”.
Tradução: haverá mais inflação.
Os juros, por ora mantidos pelo Copom em
13,75% ao ano, sofrerão maior pressão, contribuindo para a escalada da dívida
pública. Ao mesmo tempo, o crescimento, que já arrefece, tende a ser pífio
diante da perspectiva de recessão global e da incerteza dos investidores. Todos
— Lula e os parlamentares — tinham perfeita noção dessa realidade. Em vez
disso, justificaram a PEC com base em teorias econômicas delirantes que jamais
pararam de pé.
O pretexto alegado para tamanha falta de
responsabilidade foi a necessidade de ampliar gastos sociais e recompor
investimentos. Isso teria sido possível com autorização excepcional para gastos
bem menores, ao redor de R$ 80 bilhões, sem implodir as regras fiscais que
mantêm a confiança do investidor na solidez da economia brasileira.
A preocupação real dos parlamentares,
contudo, é outra — e nada tem a ver com qualquer crise social, real ou
imaginária. No artigo mais pusilânime da PEC, é atribuída ao relator do
Orçamento a prerrogativa de apresentar emendas para alocar os gastos adicionais
autorizados acima do teto. Descontado o aumento previsto para o programa de
transferência de renda, sobrariam R$ 150 bilhões em dois anos, cujo destino
estaria sujeito a um mecanismo tão opaco quanto as famigeradas emendas do
relator (RP9).
Uma vez aprovada a PEC, o orçamento secreto
ficaria gravado na Constituição, na forma de uma parceria entre Legislativo e
Executivo sujeita a regras ocultas do público. A Câmara tem o dever de rever as
barbaridades aprovadas pelos senadores. Do contrário, a eleição de Lula,
celebrada dentro e fora do Brasil como “salvação da democracia”, cobrará como
preço a institucionalização da corrupção.
Golpe frustrado no Peru mostra que
democracia precisa de defesa constante
O Globo
Diante de ameaças até maiores, as
instituições brasileiras têm demonstrado ser mais sólidas
A queda de Pedro Castillo da Presidência do
Peru na quarta-feira traz uma lição aos países da região. Removido após
tentativa de golpe, Castillo foi substituído no mesmo dia pela vice, Dina
Boluarte. Anunciada a decisão, não demorou para que muitos celebrassem a
demonstração de força do sistema democrático. Nada poderia estar mais longe da
realidade. A democracia peruana está doente há anos, e as causas são tão
concretas hoje como eram no passado.
O esquerdista Castillo estava desde o
início fadado ao fracasso. Nunca ocupara cargo político. Antes de se candidatar
à Presidência, concorrera apenas à prefeitura de Anguía, cidade de menos de 5
mil habitantes. Chegou ao poder sem saber governar e não quis aprender. Teve
mais de 80 ministros em menos de um ano e meio, a maioria inexperiente e
incompetente.
A vitória e a queda de Castillo não foram
acidentais. O Peru teve seis presidentes em seis anos. Renúncias e impeachments
em série são sintomas da fragmentação política extrema. Há polarização, como na
maior parte dos países da região, mas a crise peruana é resultado sobretudo do
declínio dos partidos tradicionais e da classe política.
No primeiro turno da última eleição
presidencial, os votos brancos e nulos ficaram em primeiro lugar, bem à frente
de Castillo e Keiko Fujimori, filha do ex-ditador Alberto Fujimori. Depois da
derrota no segundo turno, Keiko não aceitou o resultado e fez acusações
infundadas de fraude.
O golpe frustrado na quarta-feira em nada
muda o descrédito na política. Atacar esse problema deveria ser o principal
objetivo de Dina Boluarte. Serão insuficientes discursos vazios sobre o futuro
do país. Ela deveria investir em reformas para blindar o Estado, com a redução
drástica de nomeações políticas e a exigência de qualidades mínimas para ocupar
cargos na máquina. Isso melhoraria os serviços públicos e ajudaria no combate à
corrupção.
Dado seu histórico no mesmo partido que
levou Castillo ao poder, é possível que ela tenha outras prioridades. Caso
decida por uma agenda mais sensata, a tarefa certamente será difícil. O
Congresso segue povoado por neófitos despreparados, acusados de todo tipo de
irregularidade. A oposição continua incapaz de formar consensos mínimos para
que a crise política tenha um fim.
Muitos peruanos culpam os crimes da Odebrecht pelos males do país, como se a empresa brasileira tivesse ensinado os políticos locais a roubar. Fariam melhor se usassem o Brasil como inspiração. Diante de uma ameaça até maior à democracia, as instituições brasileiras se revelaram resilientes. O Peru vive o maior período ininterrupto de democracia da sua História, 22 anos. Permanecer nesse trilho deveria ser a prioridade. Vitórias pontuais como o golpe frustrado não permitem complacência. A defesa da democracia precisa ser constante.
Um golpista a menos
Folha de S. Paulo
Investida canhestra de Castillo no Peru é
barrada, mas política segue no caos
Se a falta de tarimba política, o pendor
autoritário e a débil base de apoio já prenunciavam as dificuldades que Pedro
Castillo encontraria como presidente do Peru, sua derrocada, 16 meses após
assumir o cargo, causa espanto até mesmo em se tratando de um país que se
acostumou a conviver com crises institucionais.
Na quarta-feira (7), em ação tão inesperada
quanto canhestra, Castillo anunciou a dissolução do Congresso, um toque de
recolher e a instauração de um governo de exceção. Em poucas horas, no entanto,
a tresloucada tentativa de subversão da ordem foi fulminada.
Qualificado de golpe de Estado pelo
Tribunal Constitucional, condenado pelas Forças Armadas e rechaçado por
integrantes do próprio governo, o movimento cesarista serviu apenas para
angariar no Congresso o apoio necessário à destituição do presidente, enfim
aprovada por 101 dos 130 membros.
A manobra do líder esquerdista também foi
rapidamente repudiada por outros países do continente, bem como pelo
presidente eleito do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que reconheceu a
legalidade da resposta institucional.
O fracassado levante de Castillo, que acabou detido
sob a acusação dos crimes de rebelião e conspiração, encerra de modo
tragicômico uma trajetória política improvável e caótica. Após um pleito
extremamente polarizado, o ex-professor primário assumiu o poder em julho do
ano passado, mas nunca chegou, de fato, a governar.
Em constante atrito com o Legislativo,
acumulou nada menos que cinco gabinetes ministeriais. Nos últimos meses, viu-se
ainda enredado em escândalos de corrupção.
Na quarta, com a votação de uma moção de
censura no Congresso, o líder aventureiro tentou se salvar rompendo as regras
—num gesto que, guardadas as proporções, remete à usurpação de poder levada a
cabo por Alberto Fujimori no país vizinho três décadas atrás.
A destituição de Castillo, contudo, apenas
afasta um dos vértices da crise e não significa o fim da tormenta política
peruana.
A nova presidente, Dina Boluarte, a sexta
pessoa a ocupar o cargo desde 2018, também lidará com um Congresso instável,
coalhado de siglas com pouca coesão interna que atravancam as negociações com o
mandatário de turno.
A isso soma-se um desenho institucional
problemático, que permite que Legislativo e Executivo possam, com muita
facilidade, investir contra os poderes um do outro.
O agora ex-presidente Pedro Castillo era
certamente o homem errado no lugar errado, mas ainda há muito a ser feito para
que o estado de crônica crispação política do Peru se dissolva nas águas mais
calmas da estabilidade democrática.
Tabus orçamentários
Folha de S. Paulo
Para aumentar gasto social, é preciso lidar
com temas difíceis para petistas
A arrecadação do governo federal baterá
recorde neste ano. As despesas com pessoal, custeio administrativo, programas
sociais e investimentos deverão aumentar em mais de R$ 100 bilhões ante 2021,
em valores corrigidos. Ainda assim, há falta de dinheiro em diversos setores da
máquina pública, o que parece não fazer sentido.
Há poucas semanas, a Polícia Federal
suspendeu a emissão de passaportes, depois retomada com a liberação parcial de
verbas. Recursos para universidades e bolsas de estudo geram queixas diárias da
comunidade acadêmica. Até os meios legais para viabilizar o pagamento de
aposentadorias suscitam dúvidas no Poder Executivo.
É tentador atribuir toda essa situação à
inépcia e ao descaso gerencial do governo Jair Bolsonaro (PL), mas infelizmente
os desequilíbrios do Orçamento da União têm motivos mais amplos e crônicos.
Os gastos públicos cresceram de modo
contínuo a partir da redemocratização do país, numa tentativa de responder a
demandas sociais urgentes —mas também a interesses de setores influentes na
política e na opinião pública.
A prática chegou à exaustão em meados da
década passada, sob Dilma Rousseff (PT), quando o prenúncio de disparada da
dívida pública precipitou uma recessão brutal. O teto para a
despesa pública, instituído em 2016, foi uma medida acertada de controle,
infelizmente desvirtuada por Bolsonaro.
Supor que o abandono de limites para os
gastos resolverá as carências do serviço público é ilusão suicida. A partir do
próximo ano, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) dependerá de mais
dinheiro emprestado para fechar as contas. Se não indicar um mecanismo de
contenção da dívida, o mercado credor elevará juros e a economia voltará a se
retrair.
A PEC que
avança no Congresso para permitir dispêndios maiores no início da gestão é
tão somente o passo mais fácil. Restará definir uma nova regra fiscal —e,
sobretudo, levar adiante medidas capazes de conter e tornar mais eficiente a
despesa pública.
Uma reforma administrativa pode mudar regimes de trabalho, salários iniciais e estabilidade dos servidores; o capital privado pode reduzir a necessidade de dinheiro público na infraestrutura; o fim da gratuidade pode levar mais recursos às universidades; o corte de subsídios pode reduzir privilégios e elevar receitas. Infelizmente, esses são tabus para os petistas.
O recado discreto do Copom a Lula
O Estado de S. Paulo
Ao manter juros básicos em 13,75%, BC
chamou a atenção para a continuação da incerteza sobre o futuro das contas
públicas, sem mencionar a mudança de governo – mas nem precisava
Continua incerto o futuro das contas
públicas, embora um novo governo deva começar em janeiro e por isso o mais
seguro é manter em 13,75% a taxa básica de juros, decidiu o Copom, o Comitê de
Política Monetária do Banco Central (BC). A incerteza é maior que a usual, as
projeções até 2024 apontam inflação longe da meta e o mais prudente é manter a
estratégia atual, segundo nota do Comitê divulgada logo depois da reunião. Se
necessário, poderá haver novo aumento dos juros. Com o cuidado habitual, os
autores da nota evitam referências diretas ao atual governo e a seu sucessor,
mas são claros ao indicar fatores de risco no cenário da inflação. Ganham
destaque a maior persistência das pressões inflacionárias globais e a “elevada
incerteza sobre o futuro do arcabouço fiscal”. A insegurança inclui, nesse
caso, possíveis novos estímulos à demanda, por meio de mais despesas ou de
benefícios tributários.
Maiores gastos foram prometidos pelos dois
candidatos principais, e a PEC da Transição, se aprovada nas duas Casas do
Congresso, abrirá espaço em 2023 para um novo estouro do teto. As promessas do
candidato eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, têm destaque evidente no cenário
de referência do Copom, embora sem citação explícita. Mas, se houvesse
referência ao futuro presidente, deveria incluir mais um detalhe importante.
Ele e seus auxiliares da área econômica têm prometido responsabilidade fiscal,
mas sem explicar como se manterão sustentáveis as finanças do governo central.
Não só no mercado, portanto, surgem
expressões de preocupação quanto ao futuro das contas públicas, incluído,
naturalmente, o endividamento do Tesouro. Pouco depois da eleição, o presidente
eleito procurou desqualificar as manifestações de inquietação observadas no
setor financeiro. Atribuiu esse tipo de reação, inicialmente, a um excesso de
sensibilidade e, depois, a censuráveis jogadas especulativas, como se a
especulação, normal no dia a dia de todos os mercados, fosse aberração ou
imoralidade. Errou em todas essas avaliações, e errou também ao subestimar a
relevância de uma clara sinalização de prudência fiscal.
A decisão do Copom sobre os juros básicos e
suas explicações evidenciam os equívocos do futuro presidente da República. Não
há como desprezar o risco de maior inflação, quando o governante, atual ou
futuro, anuncia a intenção de aumentar a despesa e se abstém de explicar como
preservará a solidez das finanças públicas.
Gastança e alta de preços são noções
estreitamente vinculadas. Esse vínculo é especialmente forte em países onde é
preciso reafirmar com frequência a credibilidade do Tesouro. Não é o caso da
Alemanha e de outros países onde a responsabilidade fiscal é uma tradição. No
Brasil, como na maior parte da América do Sul, a confiabilidade financeira do
setor público é muito menos clara.
O presidente eleito tem evocado seu
primeiro governo, quando se obtiveram regularmente superávits primários –
saldos positivos, excluído o custo dos juros da dívida pública. Não basta
evocar essa história. A herança recebida pelo governo petista em 2003 foi muito
melhor que o legado previsto para 2023. Além disso, a gestão financeira foi
menos severa no segundo mandato e degringolou no final do período petista.
Nessa fase, a presidente Dilma Rousseff deu espaço à inflação, devastou o
Tesouro e jogou o País na recessão de 2015-2016.
Não adianta o futuro presidente evocar a
disciplina fiscal mantida em seu primeiro mandato. Ele terá de restabelecer a
imagem do PT como partido capaz de cuidar das finanças públicas.
No mercado, os juros básicos projetados
para 2023 passaram em quatro semanas de 11,25% para 11,75%. A inflação estimada
para o próximo ano subiu de 4,94% para 5,08%, segundo a pesquisa Focus. A
projeção de crescimento econômico aumentou de 0,70% para 0,75%. Juros altos de
nenhum modo ajudarão o novo governo em seu primeiro ano. Se levar esses dados
em conta, o presidente eleito tratará de mandar mensagens mais claras e mais
positivas ao mercado e ao BC. É só uma questão de bom senso.
O que a crise peruana ensina
O Estado de S. Paulo
A enésima troca turbulenta de comando no
Peru mostra o que acontece com o sistema político de um país quando a luta
anticorrupção canaliza todas as frustrações nacionais
Na manhã de quarta-feira, quando o
Congresso peruano votaria uma terceira moção de impeachment de Pedro Castillo,
o editorial do jornal La República clamava: Renuncie, presidente.
Uma alternativa em tese sensata, mas naquele ponto inviável, seria Castillo negociar
concessões com lideranças parlamentares, formando novas bases. Outra, mais
ousada, seria convocar eleições gerais. Mas ele optou pela mais desesperada e
fantástica: dissolver o Congresso e governar por decreto, anunciando uma
constituinte e a reorganização do Judiciário. Ministros e aliados debandaram. O
Tribunal Constitucional, o Ministério Público e o Exército condenaram a
intentona. Em duas horas, Castillo estava preso e o Congresso empossou a
vice-presidente Dina Boluarte. Esse golpe disfuncional e volátil foi o gesto
terminal de um governo igualmente disfuncional e volátil que levou ao paroxismo
um sistema político, claro, disfuncional e volátil.
Boluarte será a sexta presidente em seis
anos. Todos os ex-presidentes ou respondem a processos de corrupção ou estão
presos. O caos tem raízes profundas.
Nos anos 70 o governo militar encaminhou
reformas há muito esperadas, entre elas a agrária, que depuseram as velhas
oligarquias. Mas o Peru não conseguiu se reorganizar em outras bases. “Desde
então o país se ‘desformalizou’ de maneira completa e radical”, diagnosticou o
sociólogo peruano Danilo Martuccelli. “O formal e o informal, o transgressivo e
o ilegal, a lei e o caos, tudo se mistura e se combina.” Sintomaticamente, 70%
dos trabalhadores são informais.
Em 1990, Alberto Fujimori fez o que
Castillo tentou fazer. Com apoio popular e militar, reprimiu a inflação e o
grupo terrorista Sendero Luminoso, mas esvaziou o sistema partidário, cimentou
a economia informal, constitucionalizou um racha entre Executivo e Legislativo
e normalizou a ideia de que regras devem ser manipuladas ao invés de
respeitadas. Finda a ditadura em 2000, sem um sistema que substituísse o das
velhas elites, os partidos viraram balcões de negócios e multiplicaram-se os
aventureiros. A articulação entre atores e interesses sociais e sua
representação institucional foi estraçalhada. A corrupção se tornou endêmica.
Para piorar, os remédios foram piores que a doença.
A luta anticorrupção canalizou todas as
frustrações nacionais. “A vida coletiva é percebida a partir da moralidade,
como o teatro de uma oposição cíclica entre o bem e o mal. Na verdade, uma
cruzada entre os bons e os maus. Segundo essa visão, a vida coletiva é um
eterno tribunal de justiça”, diz Martuccelli. “Isso obstrui o enfrentamento dos
problemas. Na raiz da moralização maniqueísta da vida coletiva no Peru se
encontram processos econômicos, sociais e políticos que dissolveram antigos
marcos de referência da sociedade peruana (classes, sindicatos, partidos,
ideologias políticas, etc.).” Numa sociedade assim, a retórica anticorrupção
“se tornou a principal linguagem utilizada para apreender, nomear e
diagnosticar as grandes transformações e os males profundos”. Não à toa, a
Constituição prevê o impeachment por “incapacidade moral permanente”, algo
bastante arbitrário.
Hoje os peruanos veem os políticos como o
grande mal, mas esperam da política a grande redenção, seja na forma de uma
ruptura institucional refundadora, seja na de um caudilho enérgico,
independente e impoluto – o leninista Castillo, um professor rural sem
experiência política, foi só sua última e mais caricata versão.
O país precisa de mais política,
renunciando a esperanças redentoras e cruzadas morais em favor de uma dieta
modesta de disputa de ideias e solução de conflitos que encaminhe, dia após
dia, reformas pequenas, mas eficazes, ao invés de pactos fundadores grandiosos,
cíclicos e ineficazes que só aceleram a espiral de degradação política.
Se Boluarte impuser um freio de arrumação,
negociando bases congressuais que ao menos estabilizem a relação entre
Executivo e Legislativo, já terá dado um grande passo nessa direção.
Golpismo é crime
O Estado de S. Paulo
Convocar manifestantes armados para
contestar as eleições não é liberdade de expressão. É crime
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo
Tribunal Federal (STF), mandou prender um empresário de Mato Grosso acusado de
incitar atos violentos contra a democracia. Em vídeo publicado nas redes
sociais, esse empresário havia conclamado caminhoneiros e atiradores a
participarem de protestos contra o resultado das eleições presidenciais. Fez
bem o ministro Alexandre de Moraes, pois, à luz do Estado Democrático de
Direito, liberdade de expressão não é liberdade para cometer crime – e, nesse
caso, a convocação de atiradores, para “mostrar presença”, como disse o
empresário, não parece ter nenhum propósito pacífico.
A ordem de prisão foi expedida no âmbito de
um procedimento sigiloso em trâmite no STF. Ainda que seja questionável a
competência do Supremo sobre o caso – não parece razoável, funcional ou
condizente com a legislação processual que essa ordem de prisão tenha de ser
expedida pela Corte constitucional –, é inquestionável que a ação de convocar
pessoas armadas à capital do País para resistir ao resultado das eleições
exigia a pronta atuação do Estado, em concreto do Poder Judiciário. Não se pode
assistir passivamente a tão grave incitação ao crime.
Ao elencar os crimes contra as instituições
democráticas, o Código Penal refere-se a “tentar, com emprego de violência ou
grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo
o exercício dos poderes constitucionais”, e a “tentar depor, por meio de
violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído”. Ou seja,
tentar impedir por meio de violência ou grave ameaça que o presidente eleito
tome posse não é exercício da liberdade de expressão. É ato criminoso.
O episódio em Mato Grosso mostra que o
Ministério Público e o Poder Judiciário têm de estar vigilantes. Há hoje no
País gente planejando impedir, até mesmo com o uso de armas de fogo, o livre
funcionamento das instituições democráticas. Isso nada tem a ver com o livre
exercício da crítica. Uma coisa é criticar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE),
por exemplo, por ter assumido o papel de interventor das redes sociais no
período eleitoral e por continuar a fazê-lo depois das eleições – afinal, o
poder estatal, seja qual for a esfera, não tem a função de ser árbitro do
debate público. Outra coisa, muito diferente, é achar que o fim do período
eleitoral torna legais as ameaças à democracia por parte de movimentos
golpistas.
Seja ou não período eleitoral, pessoas e
grupos golpistas, que tentam obstruir o livre funcionamento das instituições
democráticas, devem ser impedidos, pelos meios legais, de realizarem seus
planos criminosos. Não há liberdade para delinquir. No caso, o crime afeta diretamente
e em várias dimensões toda a coletividade.
Ao pedir a presença de manifestantes armados, o tal empresário confirma que a pauta do bolsonarismo não é a defesa das liberdades e garantias constitucionais. É a imposição de suas vontades pela violência. A democracia brasileira não pode estar refém desses liberticidas.
Velhas ideias perambulam pelo governo
eleito
Valor Econômico
A abundância de ministérios não significa
fartura de ideias. Algumas das poucas que têm surgido são reedições de antigas
que não tiveram sucesso
Não é possível saber ainda qual a política
do governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva, mas pelas pistas deixadas em
público por alguns coordenadores dos 33 grupos da equipe de transição, com 939
participantes, terá traços de uma volta ao passado em muitas áreas. A
proliferação do número de ministérios deve terminar com um desenho
institucional da Esplanada semelhante ao do segundo mandato, com 36 pastas,
mais a dos Povos Originários, disse o presidente eleito.
A abundância de ministérios não significa fartura
de ideias. Algumas das poucas que têm surgido são reedições de políticas
antigas que não tiveram sucesso. O diagnóstico do governo Bolsonaro é fácil de
fazer e a equipe de transição ressalta, com boa dose de razão, que falta
dinheiro para tudo, especialmente para os programas sociais.
Os economistas que coordenam os grupos de
transição - Nelson Barbosa, Guilherme Melo, André Lara Resende e Pérsio Arida -
estão calados. Há falta de definição da política fiscal, mas após a experiência
de quatro mandatos do PT e seis anos de espera para voltar ao poder, é
inverossímil que Lula e o partido não saibam o que fazer nesta área. Mas foi o
que ganhou contornos de probabilidade após os primeiros escorregões de Lula ao
contrapor responsabilidade social à fiscal. Uma incógnita é se Lula seguirá o
modelo austero do primeiro mandato, ou reeditará o de início da gastança do
segundo, que culminou com o desastre fiscal de Dilma Rousseff.
O Ministério da Fazenda será recriado, ao
lado do da Indústria e Comércio e do Planejamento. A pasta da Indústria terá a
missão de buscar a “reindustrialização do país”, termo genérico que pouco
designa enquanto não surgirem metas e setores prioritários. Mas o passado
aparece quando o BNDES, que será parte do ministério, é invocado.
A política pós-petista, para o PT, acentuou
a desindustrialização e uma prioridade agora será recompor os desembolsos do
banco. Segundo o ex-ministro Mauro Borges, eles já foram de 1,25% do PIB e hoje
estão em 0,74% do PIB. Não se menciona que a cifra do passado, quando atingiu
R$ 190,4 bilhões em 2013 e R$ 135,9 bilhões em 2014 só foi possível mediante
aportes de mais de R$ 450 bilhões do Tesouro, que bancaram um festival de
subsídios. Borges disse que a recomposição será feita sem transferências do
Tesouro.
A TLP, que substituiu a TJLP da arrancada
petista, será modificada. Borges acha que IPCA mais 5,23% ao ano, a taxa de
hoje, é muito alta. Em dezembro, foi de 11,45%, a menor do mercado mesmo para
grandes empresas. A intenção é aplicar um redutor na TLP que, dependendo de sua
magnitude, poderá indicar ou não a volta de subsídios.
A volta da velha política está melhor
configurada na Petrobras. O grupo de trabalho pretende “abrasileirar” sua
política de preços, que deverá ser definida pelo Planalto, não pela empresa. A
estatal deverá também reduzir a vulnerabilidade externa no abastecimento
doméstico, segundo Jean Prates, cotado para dirigir ou o Ministério de Minas ou
a empresa, em artigo à Folha de S. Paulo (4 de dezembro). Um dos instrumentos
para isso será ampliar os investimentos em refino, fonte de enorme desperdício
e gigantesca corrupção no fim do segundo mandato de Lula e no início do de
Dilma.
Prates aponta como ponto fraco o aumento
das importações de diesel, mas ela é fruto da abertura de mercado. Para que o
modelo faça algum sentido, a Petrobras tem de voltar ao monopólio, pois com a
política de preços almejada e o fim da venda de refinarias, nenhum investidor
terá interesse em importar combustíveis.
Ao mesmo tempo em que acena com nova
reforma da Previdência para aumentar aposentadorias e pensões por morte e
invalidez, a equipe de transição quer enterrar a reforma administrativa de
Bolsonaro. Ela não deixará saudade, porque só valeria para novos funcionários.
Mas o que pode vir em seu lugar é uma “mesa de negociação” com os servidores
públicos. Um dos objetivos, segundo Rogério Correa (PT-MG) é “debater questões
imediatas do arrocho a que o servidor está submetido há 6 anos”, ecoando o
velho corporativismo petista no setor. Se houve, o arrocho em sua fase mais
intensa ocorreu durante a pandemia, quando milhões de trabalhadores que não têm
a estabilidade dos servidores públicos perderam emprego e ficaram sem renda.
A definição política virá para valer com a
indicação dos ministros e seus assessores. O perigo de ideias ultrapassadas
poderá então ser afastado, ou não.
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