sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Simon Schwartzman* - As três agendas da transição

O Estado de S. Paulo

Organizar assembleias, criar direitos e distribuir benefícios não são o melhor caminho para implementar políticas corajosas

Vendo as primeiras propostas dos grupos de trabalho da equipe de transição do governo Lula, é possível notar três agendas principais. A primeira, indispensável, é a de desfazer as ações de terra arrasada do bolsonarismo na saúde, na educação, na política ambiental, na cultura, na ciência, tecnologia e no estímulo ao ódio, ao armamentismo e à violência política. A segunda, preocupante, são as tentativas de fazer o relógio andar para trás e retomar os modos de trabalho e as políticas desastrosas, econômicas e sociais, que levaram o País à maior recessão de sua história, desencadeando uma crise política que resultou no desastre do bolsonarismo. E a terceira, que seria a mais importante, mas que até agora quase não aparece, é a de iniciar políticas públicas inovadoras, capazes de lidar de forma efetiva com as condições de pobreza e precariedade da população brasileira e fazer o País retomar um ritmo saudável de desenvolvimento econômico e social.

A boa notícia é que, nas últimas décadas, houve um esforço muito significativo de estudiosos e pesquisadores de diversas tendências para entender por que tantas políticas públicas bem-intencionadas redundaram em fracasso, e propor alternativas.

Em 2011, antes que a crise que se armava se tornasse mais visível, ajudei a organizar, com Edmar Bacha, uma série de seminários sobre os temas de saúde pública, previdência, políticas de renda, educação e segurança pública, com a participação de cerca de 20 especialistas, publicados depois num livro sobre a Nova Agenda Social que o Brasil deveria seguir. Não por acaso, o livro buscava retomar as questões do documento sobre a Agenda Perdida de 2002, em que um grupo notável de economistas, entre os quais José Scheinkman, Marcos Lisboa, André Urani e Ricardo Paes de Barros, mapeou as políticas econômicas e sociais que poderiam permitir ao País retomar o crescimento e reduzir a desigualdade social.

Mais recentemente, outro grupo de economistas preparou um projeto detalhado de um amplo Programa de Responsabilidade Social para implementar políticas integradas de renda mínima, poupança e seguro familiar, reunindo os diversos programas sociais que hoje se superpõem. E, num livro recente, Marcos Mendes reuniu 30 autores que descreveram em detalhe 25 políticas econômicas e sociais equivocadas dos últimos anos que contribuíram para empobrecer o Brasil. Existem muitas outras boas propostas, nas áreas de energia, legislação trabalhista, administração pública, meio ambiente, etc.

Em educação, ciência e tecnologia, áreas que conheço mais de perto, existe o paradoxo de que o Brasil, até Bolsonaro, multiplicou várias vezes os gastos públicos em todos os setores, sem que a produtividade melhorasse, ou os estudantes aprendessem mais, ou que a desigualdade de resultados diminuísse, ou que nosso sistema de pesquisa e inovação tornasse a economia mais competitiva. É preciso salvar a educação brasileira da asfixia, mas não será pela simples retomada dos gastos que ela vai melhorar. É necessário rever a fundo o que deu errado até aqui, encarar os fatos e tomar as decisões.

Assim, sabemos que nenhum sistema de educação pública é melhor do que a qualidade de seus professores, mas nunca tivemos uma política organizada e sistemática de seleção, formação e qualificação de nosso professorado. Estamos vivendo uma transição demográfica que faz com que tenhamos cada vez menos alunos, podendo pagar melhor a professores mais qualificados, e é preciso não perder essa oportunidade. No ensino superior, continuamos falando das maravilhas das políticas de cotas, ignorando que temos um sistema público elitista e disfuncional, cuja última reforma data de 60 anos atrás. Ele só consegue atender a 25% dos estudantes e funciona como uma grande peneira que atrai milhões para um exame nacional que seleciona menos de 300 mil estudantes por ano, dos quais a metade nunca completa seus estudos, deixando a grande maioria sem qualificação e à mercê de um mercado selvagem de credenciais de valor desconhecido.

O que explica a pouca presença destas propostas inovadoras na agenda política do novo governo é o modo de trabalho do Partido dos Trabalhadores (PT), que, ao invés de 50 profissionais qualificados para administrar a transição, preferiu reunir centenas de representantes dos mais diversos setores que sejam simpáticos ao PT e tenham força e habilidade para se fazer presentes. Organizar assembleias, criar direitos e distribuir benefícios são excelentes formas de obter apoio, mas não são o melhor caminho para implementar políticas corajosas que rompam com a rotina e contrariem grupos de interesse organizados.

Uma vez eleitos, governos devem identificar com clareza seus objetivos, buscar os melhores diagnósticos e as melhores pessoas e tomar decisões que atendam ao interesse geral da sociedade, ainda que contrariem determinados setores. A transição até aqui parece ainda fazer parte da campanha eleitoral. A partir de janeiro, vai ser preciso governar.

*Sociólogo, membro da Academia Brasileira de Ciências e ex-presidente do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)

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