segunda-feira, 26 de junho de 2023

Bruno Carazza* - O caso Índia e o risco da reforma meia-boca

Valor Econômico

Ação míope de lobbies pode fazer Brasil perder oportunidade rara

Há praticamente quatro anos, no dia 5 de agosto de 2019, neste mesmo espaço, escrevi que o Brasil tinha uma oportunidade única para simplificar e tornar mais eficiente nosso caótico sistema tributário, após a apresentação das PECs 110 e 45. E para mostrar que a missão não era impossível, citei o caso da Índia.

Os paralelos entre as situações indiana e a brasileira eram muito evidentes: países continentais, com uma estrutura federativa que dava liberdade para os entes subnacionais estabelecerem suas próprias alíquotas e exigências tributárias, impostos incidindo em cascata e uma multiplicidade de incentivos e isenções. Os resultados eram iguais lá e cá: pouca transparência, elevados custos de compliance para as empresas, guerra fiscal e perda de competitividade externa.

No entanto - e esse era o mote do artigo - a Índia havia conseguido implementar, em 2017, uma reforma que unificou dezenas de tributos federais e estaduais num único Imposto sobre Bens e Serviços, com muitas das características desejáveis de um tributo sobre o consumo: abrangente (para praticamente todos os bens e serviços), aplicável (e dedutível) a cada etapa da cadeia produtiva e cobrado no destino do consumo.

O slogan adotado pelo governo indiano ao lançar o Imposto sobre Bens e Serviços foi: “Uma Nação, um imposto, um mercado”. Trata-se de um excelente exemplo para o Brasil, cuja legislação dos cinco tributos em discussão (IPI, Pis, Cofins, ICMS e ISS) está dispersa entre União, 25 Estados e mais de 5.500 municípios.

Assim como no Brasil, a Índia levou décadas para aprovar sua reforma tributária, após inúmeras tentativas frustradas. E colheu os resultados de forma bastante rápida: de acordo com o extinto relatório Doing Business, do Banco Mundial, a Índia ocupava a 172ª posição no quesito facilidade para o pagamento de impostos em 2017 (o Brasil era o 181º); Após a nova legislação, alcançou a 115ª colocação em 2020, última edição do ranking. O Brasil estava na 184ª posição, à frente só de Venezuela, Chad, República Centro-Africana, Bolívia e República do Congo.

A mensagem do meu artigo era clara: se até a Índia, com seus quase 1,5 bilhão de habitantes e 22 línguas oficiais, conseguiu unificar seu sistema tributário segundo as boas práticas internacionais, o Brasil poderia repetir o feito, ainda mais diante de duas propostas bem desenhadas apresentadas ao Senado e à Câmara em 2019.

O texto, contudo, alertava para o fato de que a reforma indiana poderia ter sido muito mais ambiciosa. Sucumbindo à pressão do lobby de diversos setores, a Índia implantou um sistema com muitas isenções e cinco alíquotas diferentes (0%, 5%, 12%, 18% e 28%), além de um regime especial para micro e pequenas empresas.

A adoção do novo imposto indiano comemora 6 anos nesta semana. Diversos estudos têm indicando ganhos em termos de eficiência, crescimento e produtividade. Os frutos teriam sido ainda melhores se o governo e o Congresso tivessem permanecido firmes em seguir as melhores práticas.

Em 2022, a empresa de consultoria Deloitte publicou os resultados de uma pesquisa realizada junto a 235 executivos de empresas indianas de diferentes portes e setores para captar sua avaliação sobre os pontos positivos e negativos.

O levantamento mostrou que para 59% dos executivos a jornada de adoção do IBS foi positiva e para 31%, neutra. Só 10% se sentiram prejudicados após a transição. Os pontos mais elogiados foram uma maior competitividade para bens e serviços (para 56%), a otimização das cadeias logísticas (45%) e a redução nos custos dos insumos (para 38%).

Entre as maiores queixas dos executivos estavam a necessidade de se uniformizar as regras específicas exigidas em cada Estado (principal demanda para 63% dos respondentes), a remoção de restrições para se utilizar de modo rápido os créditos tributários acumulados (59%), o estabelecimento de fóruns para a resolução de conflitos entre empresas e os fiscos (44%) e a necessidade de se ampliar a base de incidência do imposto para incluir produtos isentos (35%).

Na semana passada, o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), relator da reforma tributária na Câmara, apresentou a primeira versão de seu substitutivo para debate. Embora a proposta persiga os principais objetivos de um bom imposto sobre valor agregado (base ampla, não cumulatividade, incidência “por fora”, princípio do destino e desoneração de exportações e investimentos), a pressão está grande para desvirtuar esses objetivos.

O relator ampliou o número de setores sujeitos a uma alíquota menor e isentos, assim como admitiu a possibilidade do crédito presumido para produtores rurais com receita de até R$ 2 milhões.

Admitido o tratamento especial para alguns, agora vários outros segmentos se movimentam para conseguir seu benefício também.

Como ilustra bem o caso da Índia, quanto maior o número de exceções e regras especiais, menor o impacto da reforma sobre a economia do país. No caso da reforma tributária, o bom (para alguns) é inimigo do ótimo (para todos).

*Bruno Carazza é professor associado da Fundação Dom Cabral e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro” (Companhia das Letras)”. 

 

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