Refiro-me à situação que se configurou na
Rússia neste fim de semana, com uma rebelião, rapidamente interrompida por acordo,
de um poderoso grupo mercenário contra o Estado que o financia e a virtuais
implicações do episódio, não só sobre a guerra da Ucrânia, como sobre guerra e
paz no resto do mundo, sobre instituições, governos democráticos, autocracias e
sobre a segurança da vida humana diante de ameaças globais que podem ser
aliviadas, ou agravadas, pela conjuntura que esse evento esboça.
Ciente de que não detenho informação e maturação analítica bastantes para tratar assertivamente do tema, recorri não só ao formato interrogativo, como a conversas e leituras improvisadas e em boa hora propiciadas por amigos da Roda Democrática e da Universidade, que são mais informados sobre o assunto do que eu, sendo alguns, inclusive, formadores de opinião. Mesmo após essas breves leituras e conversas, o tema continua sob brumas para mim. Eis as questões que pude formular:
1. Após o acordo de ontem (24.06) - que
deteve a marcha dos rebelados em direção à capital russa, mas manteve o Grupo
Wagner intacto - como ficarão os vínculos entre seu chefe, Yevgeny
Prigozhin e Moscou? Esses laços serão rompidos, mantidos ou renegociados?
2. Na hipótese de que sejam rompidos, como
ficaria a política da Rússia em outras regiões do mundo, mormente na África,
onde, como pude entender (posso ter entendido mal), o grupo Wagner tem sido
fundamental para o que chamam "desocidentalização" da Rússia?
Rompendo esses vínculos, ou os reduzindo drasticamente, o regime russo abrirá
mão desses objetivos geopolíticos e estenderá uma suposta rendição sua ao
Ocidente, para além da guerra da Ucrânia?
3. Ainda que uma rendição russa ocorra, a
desativação operacional do Grupo Wagner depende apenas da Rússia, ou esse
grupo tem autonomia para manter seus contratos de guerra e de negócios com
ditadores mundo afora e até para celebrar outros, com ditadores e/ou agentes
econômicos?
4. Na hipótese de que não se rompam os
vínculos entre Prigozhin e Moscou e ainda que sejam renegociados, qual o risco
de conflitos armados já existentes fora da Ucrânia recrudescerem?
5. Quais as alternativas a Putin, do ponto
de vista do estado russo, que, desde o fim da URSS, padece de uma fragilidade
institucional que se pode avaliar como um "amorfismo" útil à ação de
aventureiros e predadores de vários tipos? Está no horizonte uma solução do
tipo da que afastou Khrushchev da liderança soviética, em 1964, após ascensão
espetacular na década anterior?
Abro parênteses para contextualizar essa
pergunta: a ascensão do personagem citado deu-se no bojo da desestalinização
interna da URSS e de uma agenda de "feitos" de repercussão
internacional, incluindo vantagem inicial sobre os EUA na corrida espacial. Mas
encontrou limite após o desfecho da crise dos mísseis em Cuba, em 1962, visto,
no contexto da guerra fria, como desfavorável à URSS, sendo, por consequência,
um fator de desprestígio de Khrushchev junto à cúpula do partido e do estado
soviéticos.
Assim, complemento a pergunta: haveria, na
atual autocracia russa, a possibilidade de sair das sombras um ator em algo
parecido com um Leonid Brejnev, o longevo substituto do líder caído em
desgraça?
6. Quais as chances de Putin tirar partido
de uma situação que responda negativamente à indagação anterior? Poderá
pressionar os agentes do Estado, aproveitando-se do possível fato de que o
enfraquecimento, ora aparente, do seu poder pessoal represente o risco, para o
estado russo, de perecer junto com ele? A mesma situação que enfraquece Putin
não exige do sistema russo respostas rápidas e "exemplares"? Quem,
além de Putin, poderia dá-las e vendê-las, como necessárias, ao povo? Para
impô-las internamente, a autocracia russa despir-se-ia de máscaras, abrindo mão
da sua fisionomia eleitoral?
7. Por fim, se de fato o contexto de caos
na Rússia oferecer a saída que Zelensky espera para ganhar a guerra para si, a
Ucrânia e a Otan, até que ponto isso oferece - também de fato - um caminho
promissor para o ocidente, as democracias e para a redução de risco nuclear
e/ou de devastação química ou biológica? Em que medida isso depende ou
independe das respostas aos itens anteriores?
Paro por aqui, para ser genuinamente
interrogativo, como prometi. Encerro com uma reflexão: para evitar pacifismo
romântico e inócuo, devemos, sim,
como desejosos de paz, celebrar eventos que encurtem a guerra através da
derrota ou recuo do invasor russo; e também - guerra da Ucrânia à parte – evitar
aquele tipo de pensamento desejoso que quer matar, mentalmente, mensageiros de eventuais
más notícias que esse episódio com o Grupo Wagner possa trazer ao nosso
mundo comum.
*Cientista político e professor da UFBa
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