Valor Econômico
A “economia positiva” deixou de lado muitos
dos difíceis aspectos morais, que afetam o comportamento humano
Engenharia e ética são as duas dimensões
essenciais do pensamento econômico. Têm sido inócuas as tentativas de isolar
apenas a mais instrumental, com a ingênua pretensão de purificá-lo. Têm sido
até mais precárias que as inventadas nos 150 anos que separaram a obra clássica
de Adam Smith (1776) da de Lionel Robbins (1932).
Claro, são duas tradições bem mais antigas.
A que inclui a ética remonta a Aristóteles, para quem a finalidade do Estado
deveria ser a promoção comum de uma boa qualidade de vida. E lhe foi
contemporânea a exclusivamente logística proposta por Kautilya, conselheiro e
ministro do avô do célebre Ashoka.
Desde meados do século passado, só diminuiu
o peso relativo do componente ético. A metodologia da chamada “economia
positiva” não apenas se esquivou de posturas normativas como também acabou por
deixar de lado muitos dos difíceis aspectos morais, que afetam o comportamento
humano.
Ao examinar as proporções das duas ênfases em publicações acadêmicas sobre economia, salta aos olhos a aversão à dimensão ética e o descaso pela influência de considerações deontológicas no tocante a condutas individuais e sociais. Um crescente e empobrecedor distanciamento.
Ao mesmo tempo, por mais importantes que
sejam os problemas suscitados por motivações e realizações sociais, é
impossível negar certas virtudes da ótica engenheira. É a própria natureza dos
fatos econômicos que dá, a ambas, alto poder de persuasão, por menos que se
queira reconhecer.
Para ilustrar, tomem-se os melhores estudos
sobre os tragicamente atuais problemas de desnutrição. O fato de irromperem
fomes coletivas, mesmo em situações de grande e crescente disponibilidade de
alimentos, pode ser melhor analisado mediante os padrões de interdependência
ressaltados pela teoria do equilíbrio geral.
Ou seja, a perspectiva aética do pensamento
econômico não precisa ser necessariamente infrutífera. Mas poderia se tornar
muitíssimo mais proveitosa se não pretendesse descartar as incontestáveis
considerações éticas que moldam o comportamento e o juízo dos seres humanos.
Infelizmente, não tem sido a propensão
predominante entre os mais influentes economistas. Partidários da tendência
engenheira não apenas abominam os também éticos como são capazes de alta
crueldade, sempre que algum dos seus decide romper com tal sectarismo.
Emblemático foi o banimento do genial
“NGR”: Nicholas Georgescu-Roegen (1906-1994). Chegou a ser endeusado por
promover decisivos avanços da Microeconomia, graças à sua invejável sapiência
matemática. No entanto, assim que descortinou a incongruência de teorias
econômicas sem ética, foi condenado ao ostracismo.
Neste caso, o Torquemada foi alguém de
particular relevância na história do pensamento econômico: Paul Samuelson
(1915-2009). Primeiro estadunidense a receber o prêmio Nobel de Economia, em
1970, é dele o livro-texto introdutório mais utilizado no mundo: Economia,
lançado em 1948, agora, na 19ª edição.
Samuelson dignificou NGR como “pioneiro da
economia matemática”, “economista dos economistas” e “scholar’s scholar”. Isto
em prefácio ao livro Analythical Economics, no qual NGR reuniu, em 1966, uma
dúzia de artigos publicados a partir de seu segundo pós-doc (1935-6),
supervisionado por Joseph Schumpeter (1883-1950), em Harvard.
Só que, na abertura do livro, incluiu uma
inédita “1ª parte”, de cinco capítulos, em 126 páginas, com exposição de
estudos inspirados pelo pós-doc anterior, no University College London
(1930-2), com o estatístico e filósofo da ciência Karl Pearson (1857-1936). Com
certeza, Samuelson leu, mas não entendeu, essa “1ª parte”.
NGR chegara à conclusão de que a essência
do pensamento econômico transmitido pelos modelares manuais era não apenas
inteiramente mecânica como escandalosamente avessa à evolução e à física
moderna. Se assim não fosse, os economistas já teriam sido levados a se afligir
- e muito! - com as futuras gerações.
Ora, ao apontar tamanhos déficits
epistemológico e ético no pensamento econômico padrão, NGR passou a ser visto
pelos cardeais do establishment acadêmico como um transgressor a ser
aniquilado. Oportunidade de ouro surgiu, em 1973, na assembleia da American
Economic Association, que coroou o seu encontro anual.
NGR pediu transcrição em ata do singelo
manifesto “Rumo a uma Economia Humana”, lançado pelo movimento pacifista-cristão
Fellowship of Reconciliation. Depois de sério tumulto, o texto acabou saindo na
edição de maio de 1974 da American Economic Review, mas de forma quase
ilegível, deixando NGR arrasado.
O epitáfio esperou 1976, quando saiu a
décima edição do admirado livro-texto de Samuelson. Em peculiar nota de rodapé,
ele advertiu os leitores sobre o esconjuro. Um verdadeiro ícone do gigantesco
desprezo que o cânone econômico nutre pelo futuro.
Três livros em português serão muito úteis
ao leitor fisgado: Sobre Ética e Economia, de Amartya Sen (Companhia das
Letras, 1999); Decrescimento, de NGR (Senac-SP, 2012) e A Natureza como Limite
da Economia, de Andrei Cechin (Senac-SP, 2010).
*José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP, está lançando o livro “O Antropoceno e as Humanidades” (Editora 34)
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