sexta-feira, 30 de junho de 2023

Fabio Giambiagi - O pecado original: 8% reais!

O Globo

Como na prática a regra do gasto como função da receita não valerá para 2024, o governo já anunciou: ano que vem tem mais

Nos anos de 1993 e 1994, fui funcionário do BID, tendo trabalhado com a Colômbia. Havia ali um antigo ministro da Fazenda espirituoso que costumava dizer que “austeridade fiscal é como sexo: em geral, quem fala muito, pratica pouco”. A frase me vem à memória todas as vezes em que escuto um governo fazer juras de amor ao compromisso com a suposta austeridade fiscal.

Trinta e sete anos de dedicação ao tema me ensinaram a saber distinguir atos de palavras. E, no caso do Brasil atual, em particular, pode-se afirmar com certa tranquilidade que ambos estão divorciados, pelo menos por enquanto, ainda que se tente manter as aparências em público, para fins formais.

Devo dizer, não obstante esta introdução, que, como regra de gasto, noves fora a esperteza tosca de adotar uma regra que já não vale para o primeiro ano de vigência, o dito “arcabouço fiscal”, ou seja, a ideia do crescimento do gasto ser limitado a 70% do crescimento da receita, é razoável. O problema, de importância não negligenciável, são as condições iniciais — o “pecado original”.

Para que o leitor tenha uma ideia, imagine que se depara com um amigo que, ao se encontrarem, lhe diz que decidiu fazer regime e perder quatro quilos. A pergunta é: qual seria a sua reação? A única resposta possível é: “depende”.

Porque a relevância é função do peso da pessoa: se tiver 80 quilos, perder 4 é um emagrecimento substancial. Se for outra de 120, o regime sequer será notado. E, obviamente, essa reação também mudaria bastante se o interlocutor lhe confessasse que, antes de iniciar o regime, pretende engordar cinco quilos.

Pois é mais ou menos isso o que este começo de “Lula 3” está nos deparando. O presidente sempre diz que ninguém pode lhe cobrar compromissos com a austeridade, porque no seu período de governo 2003/10 já teria dado mostras do seu rigor.

O problema é que o superávit primário total de 2003 foi exatamente igual ao de 2002: 3,2% do PIB, enquanto agora o superávit primário de 1,3% do PIB de 2022 viraria, de acordo com as próprias estimativas oficiais, um déficit de 1,3% do PIB no ano em curso.

Se o mercado se apaixonou pela Fazenda, é bonito, mas, não obstante a lábia oficial, a verdade nua e crua é que a distância entre 2003 e 2023 é simplesmente de 4,5% do PIB.

Crescer o gasto a 70% do crescimento da receita pode ser uma boa regra de ajuste quando se parte de uma situação próxima do equilíbrio, mas será provavelmente insuficiente para gerar uma trajetória fiscal adequada na atual gestão, quando se começa com um desequilíbrio expressivo.

Daí porque a comparação com 2003 para comprovar o suposto compromisso com o rigor fiscal do atual governo é improcedente.

Façamos como Newton, que dizia “je ne dit rien, je ne propose rien: j’expose” (“eu não digo nada, eu não proponho nada: eu exponho”). O que aconteceu com o gasto em 2003? O gasto total caiu, em termos reais, nada menos que 4% naquele ano (encolheu, sim!).

Naquele contexto, houve uma queda real de 7% da despesa com pessoal, um aumento de 7% do gasto do INSS e uma contração de 13% das demais despesas, sempre em termos reais.

Agora, à luz do Relatório de avaliação do segundo bimestre da própria STN, que projeta despesas de R$ 2,047 trilhões, supondo uma variação do deflator do PIB de 5%, teríamos um crescimento real da despesa total de espantosos 8%. No primeiro ano de governo!

Isto é, quando, segundo o bê-á-bá de qualquer manual político, os governos costumam “apertar o cinto” para gastar mais depois à medida que se aproximam das eleições.

Esse crescimento real será composto por uma expansão de 3% da rubrica de pessoal e de mesma magnitude do INSS, e um salto triplo real de nada menos que 17% das demais despesas. Veja o leitor o contraste: menos 4% em 2003, mais 8% reais em 2023. E, como na prática a regra do gasto como função da receita não valerá para 2024, o governo já anunciou: ano que vem tem mais.

 

Nenhum comentário: