O Globo
Como
na prática a regra do gasto como função da receita não valerá para 2024, o
governo já anunciou: ano que vem tem mais
Nos
anos de 1993 e 1994, fui funcionário do BID, tendo trabalhado com a Colômbia.
Havia ali um antigo ministro da Fazenda espirituoso que costumava dizer que
“austeridade fiscal é como sexo: em geral, quem fala muito, pratica pouco”. A
frase me vem à memória todas as vezes em que escuto um governo fazer juras de
amor ao compromisso com a suposta austeridade fiscal.
Trinta e sete anos de dedicação ao tema me ensinaram a saber distinguir atos de palavras. E, no caso do Brasil atual, em particular, pode-se afirmar com certa tranquilidade que ambos estão divorciados, pelo menos por enquanto, ainda que se tente manter as aparências em público, para fins formais.
Devo
dizer, não obstante esta introdução, que, como regra de gasto, noves fora a
esperteza tosca de adotar uma regra que já não vale para o primeiro ano de
vigência, o dito “arcabouço fiscal”, ou seja, a ideia do crescimento do gasto
ser limitado a 70% do crescimento da receita, é razoável. O problema, de
importância não negligenciável, são as condições iniciais — o “pecado
original”.
Para
que o leitor tenha uma ideia, imagine que se depara com um amigo que, ao se
encontrarem, lhe diz que decidiu fazer regime e perder quatro quilos. A
pergunta é: qual seria a sua reação? A única resposta possível é: “depende”.
Porque
a relevância é função do peso da pessoa: se tiver 80 quilos, perder 4 é um
emagrecimento substancial. Se for outra de 120, o regime sequer será notado. E,
obviamente, essa reação também mudaria bastante se o interlocutor lhe
confessasse que, antes de iniciar o regime, pretende engordar cinco quilos.
Pois
é mais ou menos isso o que este começo de “Lula 3” está nos deparando. O
presidente sempre diz que ninguém pode lhe cobrar compromissos com a
austeridade, porque no seu período de governo 2003/10 já teria dado mostras do
seu rigor.
O
problema é que o superávit primário total de 2003 foi exatamente igual ao de
2002: 3,2% do PIB, enquanto agora o superávit primário de 1,3% do PIB de 2022
viraria, de acordo com as próprias estimativas oficiais, um déficit de 1,3% do
PIB no ano em curso.
Se
o mercado se apaixonou pela Fazenda, é bonito, mas, não obstante a lábia
oficial, a verdade nua e crua é que a distância entre 2003 e 2023 é
simplesmente de 4,5% do PIB.
Crescer
o gasto a 70% do crescimento da receita pode ser uma boa regra de ajuste quando
se parte de uma situação próxima do equilíbrio, mas será provavelmente
insuficiente para gerar uma trajetória fiscal adequada na atual gestão, quando
se começa com um desequilíbrio expressivo.
Daí
porque a comparação com 2003 para comprovar o suposto compromisso com o rigor
fiscal do atual governo é improcedente.
Façamos
como Newton, que dizia “je ne dit rien, je ne propose rien: j’expose” (“eu não
digo nada, eu não proponho nada: eu exponho”). O que aconteceu com o gasto em
2003? O gasto total caiu, em termos reais, nada menos que 4% naquele ano
(encolheu, sim!).
Naquele
contexto, houve uma queda real de 7% da despesa com pessoal, um aumento de 7%
do gasto do INSS e uma contração de 13% das demais despesas, sempre em termos
reais.
Agora,
à luz do Relatório de avaliação do segundo bimestre da própria STN, que projeta
despesas de R$ 2,047 trilhões, supondo uma variação do deflator do PIB de 5%,
teríamos um crescimento real da despesa total de espantosos 8%. No primeiro ano
de governo!
Isto
é, quando, segundo o bê-á-bá de qualquer manual político, os governos costumam
“apertar o cinto” para gastar mais depois à medida que se aproximam das
eleições.
Esse
crescimento real será composto por uma expansão de 3% da rubrica de pessoal e
de mesma magnitude do INSS, e um salto triplo real de nada menos que 17% das
demais despesas. Veja o leitor o contraste: menos 4% em 2003, mais 8% reais em
2023. E, como na prática a regra do gasto como função da receita não valerá
para 2024, o governo já anunciou: ano que vem tem mais.
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