quarta-feira, 28 de junho de 2023

Martin Wolf* - A reconstrução do mundo americano


Valor Econômico

A raiva e a decepção dos americanos da “classe média” são uma realidade perigosa

Quando os Estados Unidos falam, o mundo escuta. Afinal, trata-se da potência mais influente do mundo. Isso não se deve apenas ao seu tamanho e riqueza, mas também à força de suas alianças e ao seu papel central na criação das instituições e princípios da ordem econômica atual. O país teve um papel decisivo na criação das instituições de Bretton Woods, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio e a Organização Mundial do Comércio (OMC). Também promoveu oito rodadas sucessivas de negociações comerciais multilaterais. Ganhou a guerra fria contra a União Soviética. E desde o início dos anos 1980, pressionou por uma abertura ampla e profunda da economia mundial, recebendo a China na OMC em 2001. Gostemos ou não, todos vivemos no mundo que os EUA construíram.

Agora, sofrendo de arrependimento de comprador, decidiram reconstruí-lo. A secretária do Tesouro americano, Janet Yellen, delineou os aspectos econômicos da nova visão dos EUA em um discurso proferido em 20 de abril. Sete dias depois, Jake Sullivan, o conselheiro de segurança nacional do presidente Joe Biden, fez um discurso ainda mais abrangente, embora complementar, sobre “renovar a liderança econômica americana”. Ele representou um repúdio à política passada. Isso poderia ser visto apenas como uma volta ao intervencionismo de Alexander Hamilton. Contudo, desta vez a agenda não é destinada a um país recém-formado, mas à potência dominante do mundo.

O que Sullivan disse? E o que isso pode significar?

O ponto de partida é interno. Assim, uma “economia mundial oscilante deixou muitos trabalhadores americanos e suas comunidades para trás. Uma crise financeira abalou a classe média. Uma pandemia expôs a fragilidade de nossas cadeias de fornecimento. As mudanças climáticas ameaçaram vidas e meios de subsistência. A invasão da Ucrânia pela Rússia ressaltou o risco da dependência excessiva”. Mais especificamente, o governo considera que está diante de quatro desafios enormes: o esvaziamento da base industrial; a ascensão de um concorrente na geopolítica e na área da segurança; a aceleração da crise climática; e o impacto da desigualdade cada vez maior na própria democracia.

Em uma frase-chave, a resposta é ser “uma política externa para a classe média”. E o que se supõe que isso significa?

Primeiro, uma “estratégia industrial americana moderna”, que dê apoio a setores considerados “fundamentais para o crescimento econômico” e também “estratégicos da perspectiva da segurança nacional”. Em segundo lugar, cooperação “com nossos parceiros para garantir que eles também desenvolvam capacidade, resiliência e inclusão”. Em terceiro lugar, “avançar para além dos acordos comerciais tradicionais e fazer novas e inovadoras parcerias econômicas internacionais com foco nos desafios centrais de nossos tempos”. Isso inclui a criação de cadeias de fornecimento diversificadas e resistentes, a mobilização de investimentos públicos e privados para “a transição para a energia limpa”, assegurar a “confiança, a segurança e transparência em nossa infraestrutura digital”, interromper a guerra fiscal para atrair empresas, melhorar as proteções para trabalhadores e para o meio ambiente e combater a corrupção.

Quarto, “direcionar trilhões em investimentos para economias emergentes”. Quinto, adotar um plano para proteger “tecnologias fundamentais”, que serão limitadas em número, mas contarão com uma proteção muito forte. Assim: “Implementamos restrições ajustadas de maneira precisa para a maioria das exportações de tecnologia de semicondutores avançados para a China. Essas restrições se baseiam diretamente nas preocupações sobre a segurança nacional. Os principais aliados e parceiros seguiram o exemplo”.

O plano também inclui “melhorar a triagem dos investimentos estrangeiros em áreas críticas e relevantes para a segurança nacional”. Sullivan insiste em que essas são “medidas específicas” e não um “bloqueio tecnológico”.

Esta é, de fato, uma mudança fundamental nos objetivos e meios da política econômica dos EUA. Mas tanto a profundidade quanto a durabilidade dessas mudanças dependem de até que ponto elas refletem um novo consenso americano. Nas partes que são nacionalistas e protecionistas, isso sem dúvida já acontece. As que dão menos importância às prioridades das empresas e ao papel dos mercados também podem ser duradouras. Os republicanos populistas do ex-presidente Donald Trump certamente poderiam aceitar quase todas.

Esses novos objetivos fazem sentido? Em alguns aspectos essenciais, sim. Como acabo de publicar um livro intitulado “The Crisis of Democratic Capitalism” (a crise do capitalismo democrático), concordo que a raiva e a decepção daquilo que os americanos chamam de “classe média” é uma realidade perigosa. Também concordo que as mudanças climáticas são uma prioridade importante, as cadeias de fornecimento precisam ser resilientes e a segurança nacional é uma preocupação legítima na política comercial. A Rússia com certeza nos ensinou isso.

Mas isso funcionará de fato para tornar os americanos e o resto de nós mais ricos e mais seguros? Uma dúvida se refere à escala. Sullivan afirma, por exemplo, que “se estima que o total de capital público e investimento privado da agenda do presidente Biden chegará a cerca de US$ 3,5 trilhões ao longo da próxima década”. Isto representa, no máximo, 1,4% do Produto Interno Bruto (PIB) durante o mesmo período, o que é de longe muito pouco para ser transformador.

Outra questão é que é difícil fazer a política industrial funcionar, em especial para as economias na fronteira tecnológica. Outra ainda diz respeito a quanto essa nova abordagem será desestabilizadora para as relações econômicas e políticas com o resto do mundo, notadamente (mas não apenas) com a China, sobretudo no comércio.

Em particular, será complicado diferenciar tecnologias puramente comerciais daquelas que têm implicações para a segurança. Também será trabalhoso distinguir os amigos dos EUA dos seus inimigos, como mostram as reações mundiais à invasão da Ucrânia pela Rússia. Não menos importante, será difícil persuadir a China de que este não é o começo de uma guerra econômica contra ela. No entanto, a China já tem muitos trunfos nessa disputa, como observou Graham Allison, de Harvard, no caso dos painéis solares. As terras raras são outro caso semelhante.

Acima de tudo, a nova abordagem só funcionará se conduzir a um mundo mais próspero, pacífico e estável. Se levar a um mundo fragmentado, ao malogro na questão ambiental ou a um conflito aberto, ela fracassará em seus próprios termos. Seus autores precisam ter cuidado ao calibrar a execução de sua nova estratégia. Ela pode dar muito errado. (Tradução Lilian Carmona)

*Martin Wolf é editor e principal analista de economia do Financial Times

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