O Estado de S. Paulo
Os defensores da mudança da meta de resultado primário querem mergulhar fundo na lassidão fiscal
Interrompo a sequência de artigos sobre a reforma tributária para retornar na próxima quinzena. É hora de falar da meta fiscal de 2024. A confusão iniciada no Congresso em torno desse tema é preocupante e deve ser neutralizada. O ministro Fernando Haddad está correto em reafirmar o compromisso de zerar o déficit público no ano que vem. No arcabouço fiscal, o rompimento da meta de resultado primário (receitas menos despesas sem contar os juros da dívida pública) é parte da regra do jogo. Há sanções previstas.
Desde 1999, o Brasil adota um sistema de
metas anuais para o déficit ou superávit primário. Ficou conhecida como a terceira
perna do chamado tripé macroeconômico, à época: taxa de câmbio flutuante, metas
à inflação e responsabilidade fiscal. Resultado: uma década de controle da
dívida pública. Em 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal formalizou o
procedimento, ao prever a fixação de metas anuais na Lei de Diretrizes
Orçamentárias, a LDO.
Naquela lógica, para ter claro, descumprir
a meta anual seria crime de responsabilidade, já que não havia sanção explícita
ou qualquer tipo de gatilho ou de plano B no regramento vigente. Vale dizer, em
todas as ocasiões em que o risco de descumprimento se mostrou elevado, os
diferentes governos mandaram propostas de alteração da LDO para o Congresso,
modificando a meta original. Em outros casos, lançou-se mão de expedientes
criativos, sobre os quais já escrevia neste jornal em 30 de novembro de 2009,
em parceria com o ex-ministro Maílson da Nóbrega.
O teto de gastos, por sua vez, inserido na
Constituição em 2016, também funcionava assim. Fosse maculada, essa regra
constitucional, mais forte do que a meta de resultado primário, resultaria em
crime de responsabilidade. Essa rigidez acabou desembocando numa porção de
emendas à Constituição, de modo a contornar a regra que, como se vê, fora mal
desenhada.
Na lógica do novo arcabouço fiscal, já aprovado
pelo Congresso Nacional, tem-se uma mescla das regras anteriores. Por isso,
elogiei desde o início: boa inovação. A saber, o arcabouço tem dois pilares: um
limite para os gastos, corrigido por 70% da variação passada da receita; e uma
regra de resultado primário, com metas anuais fixadas na LDO.
A diferença em relação ao regime anterior
(meta de primário e teto de gastos) é que, sob o arcabouço, o rompimento da
meta de primário dispara duas sanções automáticas: 1) a redução do fator de 70%
para 50%, dois anos à frente, restringindo a taxa de crescimento das despesas
primárias; e 2) a aplicação de gatilhos para conter o aumento do gasto,
conforme artigo 167-A da Constituição federal, já no ano seguinte ao da não
observância da meta. Criou-se, portanto, um cordão umbilical entre os dois
eixos.
Essa flexibilidade é desejável, a priori,
de acordo com a própria literatura acadêmica disponível a esse respeito.
Contudo, cabe explicar que a meta de resultado primário não pode ser
simplesmente descumprida. Nada disso. Primeiro, o governo só está autorizado a
usar dessa prerrogativa quando comprovar ter promovido todo o corte de gastos
(contingenciamento) possível. Segundo, o rompimento, como expliquei, conduz à
maior limitação do gasto à frente. É uma nova lógica a ser testada, essência do
arcabouço. O mecanismo é arguto, pois evita fórmulas draconianas e
impraticáveis, capazes apenas de animar os mercados por algum (pouco) tempo.
Vamo-nos entender, o balão de ensaio sobre
a mudança na meta fiscal não tem outro objetivo senão aumentar as
possibilidades para gastar além do necessário e do possível. O tema surgiu de
modo atabalhoado e, pior, no seio da discussão das diretrizes orçamentárias
pelo Congresso. Como jabuti não sobe em árvore, é evidente que a meta dos incautos
é, na verdade, estimular as forças gastadoras de sempre a avançarem sobre o
governo, para que abandone seu recémnascido programa fiscal.
Não há qualquer sentido em mudar a meta de
2024, sobretudo neste momento, se o próprio arcabouço já contempla a hipótese
do não cumprimento. Não atingir a meta fiscal, como bem disse o secretário de
Política Econômica Guilherme Mello, não significa romper com o arcabouço. Se as
medidas de aumento de receitas pretendidas pelo governo não prosperarem, por
inépcia do Congresso (é bom que se diga), é muito provável que o déficit
primário estoure a banda de 0,25% do PIB (a meta é igual a zero, mas há um
limite inferior dessa magnitude) e, neste caso, as sanções do arcabouço terão
de ser ativadas. Nossa projeção, na Warren Rena, aliás, é de um déficit de 0,9%
do PIB para 2024. E daí? Cumpra-se a regra. Mudar não passa de uma arapuca
engendrada pelos gastões.
Afinal, qual seria a razão para jogar a
toalha agora? O risco de romper a meta? Ora, mas romper a meta equivaleria a endurecer
a política fiscal, dentro dos parâmetros do arcabouço, cumprindo-o de cabo a
rabo. É uma falácia, portanto, cujo objetivo é turbinar as veleidades
expansionistas.
Os defensores da mudança da meta de
resultado primário querem mergulhar fundo na lassidão fiscal. É preciso zelar
pelo recém-nascido arcabouço e fulminar essa esparrela tosca sobre a meta de
2024. Haddad e sua equipe estão corretos. Todo meu apoio a eles.
*Economista-Chefe da Warren Rena, foi
secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo
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