Ministro não deve integrar conselho de empresas
O Globo
Indicação de Carlos Lupi e Anielle Franco
para Tupy contradiz código de ética da administração federal
Pode ser até justificável criticar a
remuneração dos ministros de Estado e de outras autoridades como insuficiente
para honrar as responsabilidades e necessidades impostas pelos deveres do
cargo. Mas é injustificável que o governo tente “complementar” essa remuneração
por meio de artifícios que resultem em conflitos de interesses flagrantes.
Foi comum, por anos, indicar integrantes do gabinete a cadeiras no conselho de administração de empresas estatais. Ainda que o indicado mantivesse comportamento impecável, sempre era possível encontrar uma situação em que suas decisões no governo poderiam ter impacto no negócio das empresas. É um caso em que, como diz o provérbio, não basta ser honesto, é também preciso parecer honesto. Por isso a Lei das Estatais, de 2016, vetou a prática. A proibição vigorou por seis anos, sem que nenhuma estatal tenha sido prejudicada por isso. Infelizmente a indicação para o conselho de estatais voltou a ser possível em razão de liminar do então ministro do Supremo Ricardo Lewandowski, à espera de exame pelo plenário da Corte.
Não contente com as estatais, o governo
acaba de fazer duas indicações ao conselho de uma empresa privada. Por meio das
participações de BNDESPar (braço de investimentos do BNDES) e Previ (fundo de
pensão do Banco do Brasil), entraram no
conselho da metalúrgica Tupy o ministro da Previdência, Carlos Lupi, e a
ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco. Considerando apenas as
fatias do BNDESPar em 27 companhias, abre-se amplo leque para encaixar
ministros e outras autoridades em sinecuras com pouco trabalho e alta
remuneração.
É verdade que o BNDES alterou em abril sua
política para preencher cargos de conselho, de modo a dar mais espaço a
técnicos do banco. Os critérios incluem “notório conhecimento e formação
acadêmica compatíveis com o cargo” e não ser “dirigente estatutário de partido
político”. Lupi, presidente da Executiva Nacional do PDT, não satisfaz a
nenhuma das exigências. Anielle, até onde se sabe, não tem familiaridade com o
ramo metalúrgico. A remuneração de um ministro no conselho da Tupy alcança R$
52.600 mensais, ante salário de R$ 41.651 no governo.
Se já não era razoável haver ministros no
conselho de estatais, é ainda menos aceitável em empresas privadas. É evidente
o conflito de interesses imposto pelo convívio com a intimidade de companhias
que dependem de decisões do governo. O caso, diz o ex-presidente da Comissão de
Valores Mobiliários (CVM) Marcelo Trindade, “ultrapassa uma fronteira perigosa
e abre a porteira para empresários elegerem ministros a conselhos privados”.
A nomeação dos ministros ao conselho da
Tupy é mais um motivo para o Supremo apressar o julgamento da liminar que
suspendeu dispositivos da Lei das Estatais. O debate sobre aspectos jurídicos
(e éticos) da questão é urgente, na defesa dos interesses tanto de
contribuintes quanto de acionistas.
Como princípio, deveria valer para ministros
a mesma regra imposta a todas as autoridades pelo Código de Conduta da Alta
Administração Federal: “A autoridade pública não poderá receber salário ou
qualquer outra remuneração de fonte privada em desacordo com a lei, nem receber
transporte, hospedagem ou quaisquer favores de particulares de forma a permitir
situação que possa gerar dúvida sobre a sua probidade ou honorabilidade”.
Violência na Bahia expõe necessidade de uma
política nacional de segurança
O Globo
Nenhum governo tem apresentado resposta
adequada para questão que continua a afligir a população
A chacina de
nove moradores — entre eles três crianças —no município de Mata de São João,
Região Metropolitana de Salvador, expôs a gravidade da crise de segurança que
amedronta a Bahia.
As vítimas foram encontradas em duas casas. Sete pertenciam a uma mesma
família. As outra duas, segundo investigações, foram assassinadas após ouvirem
o barulho dos tiros e saírem para ver o que acontecia. A maioria dos corpos
estava carbonizada. Apenas uma criança de 12 anos sobreviveu à matança. Foi
socorrida com 50% do corpo queimado.
Na madrugada de terça-feira, durante uma
operação de busca da polícia baiana, dois suspeitos do crime foram mortos,
entre eles o provável mandante, e um terceiro foi preso. Eles são acusados de
integrar uma facção criminosa que controla o comércio de drogas na região.
Policiais disseram que a principal linha de investigação envolve crime
passional.
Foi, em pouco mais de uma semana, o segundo
crime brutal a chocar a Bahia e o país. No dia 17 de agosto, a ialorixá
Bernadete Pacífico, de 72 anos, chefe da Coordenação Nacional de Articulação de
Quilombos (Conaq), foi assassinada a tiros quando assistia à TV com os netos na
sala de casa, em Simões Filho, também na Região Metropolitana de Salvador.
Mãe Bernadete, como era chamada, vinha
sofrendo ameaças de morte. Eram conhecidas de todos, inclusive autoridades de
segurança. Um de seus filhos, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, fora
assassinado havia seis anos em condições semelhantes (até hoje não foram
descobertos autor e motivo). Bernadete fazia parte de um programa de proteção
às testemunhas, que de nada adiantou para protegê-la. Na hora do crime, não havia
policiais no local. A polícia da Bahia levantou várias hipóteses para explicar
o atentado, mas até agora pouco se sabe.
Recentemente, o ministro Rui Costa, chefe
da Casa Civil e ex-governador da Bahia, criticou o anuário do Fórum Brasileiro
de Segurança Pública — referência na coleta e análise de dados sobre segurança
— por apontar a Bahia como segundo estado mais violento do país, com 47,1
assassinatos por 100 mil habitantes. Costa atacou a ONG e prometeu “padronizar”
as estatísticas de segurança no país, sem dar maiores explicações. Não adianta
querer maquiar números. O cotidiano violento da Bahia, como provam os crimes
recentes, está aí para corroborá-los.
A agenda para a segurança pública é hoje
refém de um debate improdutivo. De um lado, aqueles que acreditam no incentivo
às armas, defendem operações policiais truculentas e atacam direitos humanos.
De outro, aqueles que desprezam o trabalho da polícia ou fingem que o problema
não existe, duvidando até das estatísticas que expõem uma realidade de dor e
sofrimento. Claro que se trata de problema complexo, desafiador para qualquer
governo. Mas, enquanto o país não dispuser de uma política nacional de
segurança pública baseada não em preconceitos ideológicos, mas em evidências e
exemplos de sucesso, a população continuará a sofrer as consequências.
Reforma ministerial põe Lula ante difíceis
escolhas
Valor Econômico
Gestores e ministros indicados por
influência política estarão mais focados em oportunidades de gastos do que no
equilíbrio orçamentário
Há poucas coisas menos emocionantes no país
do que reformas ministeriais - o caminho necessário de ajuste de rota seguido
por todos os presidentes desde a volta da democracia. A formação de maioria no
Legislativo, porém, tornou-se um ritual exasperante com a dispersão partidária,
que ainda persiste apesar de reformas bem-vindas mas tímidas. O presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, em seu terceiro mandato, enfrenta agora condições bem
piores para criar uma base de apoio do que em seus dois mandatos anteriores. O
PT não é mais uma força inovadora, suas receitas econômicas resultaram em
recessão assustadora e seu anseio por acomodação no Congresso nunca o
diferenciou dos partidos tradicionais, acostumados a negociações nos quais o
jogo de poder importa muito.
Desde a guinada qualitativa no governo de
Dilma Rousseff, quando o Legislativo ganhou ainda mais força diante do
Executivo, os acordos políticos, que antes sustentaram os governos da Nova
República, caminham para o impasse. Lula está nesse impasse com alas do Centrão
e tem uma base governista até menor que a de que Dilma dispunha, embora exista
um oceano entre sua capacidade de aglutinação e negociação e a da
ex-presidente. Para piorar as coisas, o governo tem diante de si não apenas uma
maioria conservadora qualquer no Congresso, mas uma que sustentou até meses
atrás um presidente de extrema direita, Jair Bolsonaro.
Minoritário, o governo Lula enfrenta
escolhas difíceis. Herdou como presidente da Câmara o artífice da blindagem de
Bolsonaro, o deputado Arthur Lira, com o qual fez um acordo prévio para
governar que ameaça desandar a qualquer momento. É usual nos regimes
democráticos que governos sem apoio parlamentar convidem outros partidos para
compartilhar o poder e construir, assim, condições básicas de um equilíbrio
político frutífero. Na prática, as legendas que se propõem agora a participar
do governo não têm nenhum interesse programático comum com o PT.
O presidente Lula está protelando a reforma
porque a charada política da governabilidade não o favorece, depois de ter
vencido uma eleição por pouco mais de 2 milhões de votos. Republicanos e PP, o partido
de Lira, querem cargos ministeriais de relevo, isto é, com orçamentos generosos
e grande capacidade de ação, sem, entretanto, garantir que apoiarão os projetos
do governo. Lira demanda cargos e pastas relevantes, enquanto o líder de seu
partido, Ciro Nogueira (PP-PI), ex-chefe da Casa Civil de Bolsonaro, jura que
jamais apoiará Lula. Algo parecido ocorre com Marcos Pereira, cacique dos
Republicanos, firmemente empenhado em obter vagas de peso na administração
petista, sem assegurar votos.
A reforma ministerial, vagarosa obra em
progresso, tem suas singularidades e seus exotismos. Lula criou o 38º
ministério da Esplanada, mas ele não tem ainda um titular. Por outro lado, há
dois ministros publicamente nomeados, mas que ainda não têm pastas - os deputados
André Fufuca (PP-MA) e Silvio Costa Filho (Republicanos-PE). O Republicanos
mira o Ministério de Portos e Aeroportos, que não existia e foi criado sob
medida para abrigar o aliado Marcio França, do PSB, derrotado na eleição para o
governo paulista. França, no entanto, pode ou não ser deslocado para outra
pasta, a da Pequena e Média Empresa, que também poderá acolher a atual ministra
de Ciência e Tecnologia, Luciana Santos - seu cargo é cobiçado pelo Centrão, da
mesma forma que o de Ana Moser, titular dos Esportes.
Na acomodação política tradicional, os
ministérios foram usados como moeda de troca para compor o aparato de
sustentação política dos governos. Não parece mais ser o caso. A multiplicação
dos partidos e seu contrário, a polarização política, estão alterando as bases
nos quais se apoiava a governabilidade. Uma prova disso em tom menor é que
partidos que votaram a favor do impeachment de Dilma Rousseff são cortejados
para formar a base parlamentar de Lula, que critica o que, em sua narrativa, chama
de “golpe” que derrubou a ex-presidente.
É preciso prestar atenção para que as consequências das negociações da reforma ministerial não sejam ruins para os cofres públicos. Lula desenterrou o velho PAC, prometendo obras bilionárias, e pretende entregar cargos operacionais em pastas e instituições financeiras com destaque na execução dos investimentos (como a Caixa) a políticos do Centrão. Que sejam indicações com respaldo técnico que garantam a boa execução desses projetos. O governo tem um programa de árdua execução, zerar o déficit público, o que possivelmente exigirá um contingenciamento razoável de recursos públicos. Os gestores e ministros indicados por influência política não poderão estar focados apenas em oportunidades de gastos, terão de olhar o equilíbrio orçamentário ou mesmo a contenção de despesas. Ajuda a compor esse cenário de risco à austeridade fiscal o fato de o próprio PT e de alas do governo acreditarem que quanto maior for o gasto público mais chances o país tem de crescer.
O quartel e a urna
Folha de S. Paulo
Proposta para conter politização de
militares é menos ambiciosa, mas correta
A República brasileira traz em seu DNA a
indelével marca do militarismo. Nasceu de um golpe, contra a monarquia em 1889,
e foi pontuada ao longo de sua história por revoltas, interferências e pressões
do poder fardado sobre o civil.
Boa parte disso partiu do fato de que os
políticos usualmente só querem saber de militares quando desejam promover
rupturas —e assim foi até o tenebroso 1964.
Os anos de reclusão da caserna após a
ditadura trouxeram profissionalismo, mas a ascensão de Jair Bolsonaro (PL) em
2018 demonstrou que nem toda a mentalidade dos quartéis fora aperfeiçoada.
Mau militar, o capitão reformado foi
apadrinhado por setores do Exército que buscavam maior protagonismo na política
e cercado por generais da reserva que pretendiam ao fim controlar suas ações.
O resultado é conhecido. Quando a cúpula
resistiu às intentonas golpistas e negacionistas do presidente, sobrevieram
tensões institucionais como a demissão dos comandantes das três Forças e do
ministro da Defesa em 2021.
Já naqueles turbulentos anos uma receita
foi prescrita para o problema, na forma de uma proposta de emenda
constitucional vetando militares da ativa em cargos no Executivo —situação que
chegou ao paroxismo com o desastroso general Eduardo Pazuello à frente do
manejo da pandemia de Covid-19.
Com a volta de Luiz Inácio Lula da Silva
(PT) ao poder, em meio ao desgaste agudo de imagem das Forças devido à presença
de militares nas conspiratas bolsonaristas e a vexames como o da traficância de
joias, o tema ganhou nova força.
Petistas mais adeptos do revanchismo
advogaram a implosão do artigo 142 da Constituição, que rege as Forças e motiva
interpretações delirantes de golpistas. O partido também pretendeu remover
atribuições como as operações de Garantia da Lei e da Ordem, aliás uma
prerrogativa presidencial.
O moderado ministro José Múcio (Defesa)
interveio e foi gestada a minuta de uma nova PEC, que vedaria a
fardados na ativa o posto de ministro e a possibilidade de candidatura a cargo
eletivo.
A intenção meritória foi desidratada no seu
primeiro dia de vida pública, após esta Folha ter revelado o teor da
proposta. O senador Jaques Wagner (PT-BA), ex-titular da Defesa, reuniu-se com
Múcio e outros ministros e anunciou que o governo
apresentará um texto cobrindo apenas a limitação eleitoral, a valer
a partir de 2026.
Ao que tudo indica, o governo não tem força
política para levar adiante mudanças mais ambiciosas. Ainda assim, a medida
aventada representa avanço relevante. Hoje, militares derrotados nas urnas
podem levar de volta seu proselitismo político aos quartéis.
Laico intolerante
Folha de S. Paulo
Veto francês à túnica árabe em escolas
atenta contra liberdade individual
Um dos movimentos capitais da marcha
civilizatória foi a separação entre Estado e igreja. O divórcio foi bom para o
poder público, que ficou livre de dogmas para fazer leis baseadas na razão, e
para as próprias religiões, que não precisavam mais temer a opressão exercida
por uma fé dominante.
Os maiores beneficiários, contudo, foram os
cidadãos, que ganharam autonomia para decidir se querem ou não seguir uma
crença e, em caso afirmativo, escolher qual.
Não há país que tenha implementado essa
cisão de forma mais decidida do que a França, que desde a revolução de 1789, e
especialmente a partir de 1905, vem cultivando com zelo a secularização. Talvez
até com excesso de zelo.
O ministro da Educação francês, Gabriel
Attal, anunciou que as
escolas do país não permitirão mais que alunas usem a abaya (túnica árabe) em
suas dependências. Pelo novo entendimento da pasta, esse adereço viola a Lei da
Laicidade de 2004, que já
vetara o hijab (véu islâmico) e outros "símbolos
ostensivos" de religiosidade.
A França faz muito bem em proibir
crucifixos nas paredes de prédios oficiais (exceto museus) e melhor ainda em
impedir professores de utilizá-los. Os mestres, afinal, são representantes do
Estado quando estão em sala de aula e devem, portanto, incorporar valores
republicanos como a laicidade.
Esse raciocínio, porém, não se aplica aos
alunos. Diferentemente dos professores, que escolheram trabalhar para o poder
público, os pupilos estão na escola porque a lei assim exige.
Nessas condições, privá-los de portar
símbolos que eles entendem ser importantes para suas identidades individuais
parece um fardo excessivo. No limite, a laicidade está se contrapondo a
liberdades individuais, que também fazem parte do pacote republicano.
Cabe lembrar ainda que a abaya não é
propriamente um ícone religioso —ao menos não como o crucifixo para os
católicos, a estrela de David para os judeus ou o turbante para os sikhs.
A túnica está entre o religioso —o Alcorão
exige que mulheres se vistam "com modéstia", mas não especifica como—
e o étnico, já que o traje é típico no norte da África e na Península Arábica,
mas não em outras terras muçulmanas.
Ao investir contra a abaya, o Estado francês volta a legislar sobre vestimentas, o que soa como um retrocesso a períodos bem pouco iluministas da história.
A eterna tentação de controlar a imprensa
O Estado de S. Paulo
Ao tentar impor restrições ao trabalho da
imprensa, CPMI do 8 de Janeiro reverbera a tentação de controlar o jornalismo.
A liberdade de imprensa é sempre incômoda ao poder
CPMI do 8 de Janeiro reverbera a tentação
de controlar o jornalismo. A liberdade de imprensa é sempre incômoda ao poder.
Aliberdade de imprensa, um dos
sustentáculos do regime democrático, sempre foi incômoda para o poder. De
tempos em tempos, aparece alguém tentando, de modo mais explícito ou mais
sutil, cercear o livre exercício do jornalismo pelas mais variadas razões. Tal
pretensão autoritária não deve causar surpresa. Como preconiza o mais básico
dos manuais do ofício, o jornalismo envolve necessariamente lançar luz sobre
fatos de interesse público, fatos estes que alguns detentores circunstanciais
do poder gostariam de manter longe dos olhos da sociedade.
O presidente da Comissão Parlamentar Mista
de Inquérito (CPMI) do 8 de Janeiro, deputado Arthur Maia (União-BA), foi um
dos que não resistiram à tentação de se arvorar em editor de jornal, tentando
controlar, ora vejam, o que o jornalismo pode ou não publicar. No dia 28
passado, Arthur Maia editou uma norma que vedava aos profissionais de imprensa
credenciados para cobrir os trabalhos da CPMI a publicação de documentos
classificados como “confidenciais” pelo colegiado. Quais seriam as
consequências mundo afora se o jornalismo publicasse apenas o que o poder
estatal autoriza publicar?
Não é papel do presidente da CPMI – nem de
qualquer outra autoridade – definir que tipo de informação o jornalismo pode
levar a conhecimento público. O Estado simplesmente não dispõe dessa atribuição.
Ainda mais contraditório é o fato de que a norma restritiva para a imprensa foi
editada por quem preside uma comissão parlamentar que investiga um ataque
contra a Constituição que reconhece a liberdade de imprensa como garantia
fundamental do Estado Democrático de Direito.
Além de evitar a publicação de documentos
ditos “confidenciais”, a norma censora se prestava, nas palavras de seu
idealizador, a “proteger o direito à intimidade e a vida privada” dos deputados
e senadores membros da CPMI, haja vista que o conteúdo de algumas mensagens
trocadas entre eles por celular veio a público por meio de veículos
jornalísticos.
Aqui se vê como a pretensão de controlar a
imprensa sempre se apresenta revestida de bons motivos. No caso em tela, como
pretensa defensora do direito à privacidade dos parlamentares. Mas, apesar das
vestes aparentemente civilizadas, a justificativa é inteiramente descabida. Não
cabe controle prévio da imprensa. E, na hipótese de eventual equívoco por parte
do jornalismo, há sempre a possibilidade de posterior responsabilização pelas
vias judiciais. Como dissemos neste espaço, “um jornal não lava as mãos pelo
que publica. Ele é responsável pelo conteúdo que sai em suas páginas, sejam
impressas ou digitais” (ver editorial O limite da imprensa já está na
Constituição, 20/8/2023).
A imprensa, livre e independente, incomoda.
Não é por outra razão que jornalistas e veículos de imprensa figuram entre as
primeiras vítimas dos déspotas e autoritários que ascendem ao poder. Por isso,
no regime democrático, a liberdade de imprensa é ponto inegociável. Impor
qualquer limite ao trabalho jornalístico além do que está estabelecido na
Constituição é uma afronta ao Estado Democrático de Direito. Entre outros
graves danos, deixaria a população refém do poder estatal.
A imprensa é “o cão de guarda da
sociedade”, diz o conhecido aforismo. De fato, a constante vigilância exercida
pelo jornalismo é proteção – algumas vezes, a única – da população perante o
Estado, em suas diversas esferas.
Diante da repercussão negativa do caso –
que veio justamente da denúncia feita pela imprensa –, o presidente da CPMI
recuou do ato que impôs sanção aos jornalistas que divulgarem informações
confidenciais vazadas por membros do colegiado. Manteve, no entanto, a decisão
de proibir que profissionais da imprensa capturem “imagens de conteúdo privado
de terceiros sem autorização”.
Todo esse episódio lembra a importância da
defesa das liberdades. Mesmo num colegiado do Congresso cujo objetivo é
investigar atos antidemocráticos, tenta-se restringir a liberdade de imprensa.
Ou seja, o preço da liberdade continua sendo a eterna vigilância.
Insistência num velho e caro erro
O Estado de S. Paulo
Governo pretende usar Transpetro para
alavancar a indústria naval brasileira. O PT não aprendeu nada com seus erros
anteriores. Voluntarismo não cria desenvolvimento sustentável
A Transpetro, subsidiária da Petrobras para
logística e transporte, anunciou o lançamento, em janeiro de 2024, de licitação
para compra de navios de grande porte que pretende incorporar à sua frota.
Serão três lotes, parte da encomenda total de 25 navios do novo Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC). Em entrevista ao Estadão, o presidente da
Transpetro, Sérgio Bacci, afirmou que a intenção é construir no Brasil os
petroleiros, seguindo a política de conteúdo local. “Se eu tiver cinco
propostas disputando os três lotes, já estarei satisfeito”, disse.
Está dada a largada para mais uma arriscada
cruzada com o objetivo de içar, a qualquer custo, a indústria naval. Seguindo
exatamente o roteiro da recente – e fracassada – experiência petista no setor,
o esquema é ancorado nas necessidades logísticas da Petrobras, no apelo
político de criação de milhares de empregos e em encomendas gigantes, tanto em
volume de recursos quanto na quantidade e tipo dos projetos. Trata-se de navios
para transporte de petróleo e gás com capacidade em torno de 80 mil toneladas de
produtos.
Recapitulando o script: nos dois primeiros
governos Lula da Silva, a reativação da indústria naval, que patinava há mais
de uma década, com estaleiros atolados em dívidas, foi proposta de campanha
turbinada pela descoberta de petróleo na região do pré-sal. Encomendas
bilionárias foram entregues a estaleiros que ainda nem existiam, uma empresa
foi criada – a Sete Brasil
– apenas para tocar os contratos e, no auge
do que parecia o renascimento do setor, 82 mil empregos foram criados.
Sem expertise para projetos tão complexos,
surgiram problemas graves de construção, atrasos nos cronogramas de entrega,
revisões de preços nos contratos, aumento de custos. Para culminar, em 2014,
com as investigações da Lava Jato foram revelados esquemas fraudulentos bilionários
centrados na Transpetro e na Sete Brasil. A indústria voltou ao ostracismo.
Endividada e em litígios judiciais com bancos e estaleiros, a Sete Brasil está
desde 2016 em recuperação judicial, assim como três estaleiros criados naquela
época.
O atual presidente da Transpetro acompanhou
a história do outro lado do balcão. Até assumir o cargo, neste ano, Sérgio
Bacci ocupava a direção do Sindicato Nacional da Indústria Naval (Sinaval).
Assistiu de perto ao fiasco de um projeto megalômano, colocado em prática sem
planejamento, sem a adequada capacitação de mão de obra, sem domínio
tecnológico e sem condições de competir em custos com gigantes asiáticos que
dominam um mercado globalizado. Assusta que esteja prestes a reeditar o
malogro.
Sempre meritória, a criação de empregos não
pode ser uma medida artificial. Para ser sustentável, deve ser consequência de
políticas públicas pensadas a longo prazo. Ao impor conteúdo nacional
exorbitante (o porcentual chegou a 70%) nas obras navais, o governo tornou a construção
duas a três vezes mais cara do que em países que, com estrutura madura e
consolidada, atingem produtividade suficiente para baratear custos. Não há como
chegar a este nível num passe de mágica. Bacci sabe disso. O presidente da
Petrobras, Jean Paul Prates, e o presidente Lula da Silva também sabem. Mas
parece que todos preferem o ilusionismo.
Quando foi criado, em 2004, o Programa de
Modernização e Expansão da Frota da Transpetro (Promef), já com a megaencomenda
de 49 navios, a propaganda oficial era de que o ritmo de crescimento da
produção de petróleo tornaria em poucos anos o Brasil competitivo no mercado
naval. Partia de um pressuposto duvidoso ao acreditar que a demanda de uma
única empresa, mesmo sendo do porte da Petrobras, pudesse empurrar toda uma
indústria pesada como a naval à criação de escala para competir mundialmente.
“A indústria naval não pode errar de novo”,
disse Bacci na entrevista. O presidente da Transpetro deveria ouvir a si mesmo
e repensar a forma de contribuir para a formação de um mercado bem-sucedido no
País. Ao contrário do que ele defende, não adianta empurrar para “pegar no
tranco”.
O dever de resgatar o SUS da UTI
O Estado de S. Paulo
Governador de SP acerta ao complementar os
repasses ao SUS. Governo federal tem de fazer sua parte
Celebrado como uma das maiores conquistas
civilizacionais da história do Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS), o maior
serviço público de saúde do mundo, é fundamentalmente prestado por entes
privados. Sem as Santas Casas e hospitais filantrópicos o SUS seria,
quantitativa e qualitativamente, inviável.
Os hospitais estatais são insuficientes e,
via de regra, ineficientes e caros. Os hospitais beneficentes respondem por 50%
dos atendimentos do SUS e 70% dos casos de alta complexidade. Em mais de 800
municípios, eles são o único serviço de saúde. Seria um modelo exemplar de
parceria público-privada – o Estado arrecada recursos dos cidadãos e repassa-os
a quem tem estrutura e expertise –, se um dos parceiros cumprisse a sua parte.
Mas há décadas esses hospitais são
asfixiados pelo subfinanciamento. Entre 1994 e 2022, enquanto o Índice Nacional
de Preços ao Consumidor (INPC) acumulou reajuste de 636% e o salário mínimo, de
1.597%, a tabela de procedimentos do SUS foi reajustada em 93%. Os custos dos
hospitais beneficentes chegam a ser oito vezes menores que os dos hospitais
federais. Mesmo assim, em média, a cada R$ 100 gastos por eles em atendimentos
do SUS, só R$ 60 são cobertos pelo Estado. Segundo o Conselho Federal de
Medicina, há procedimentos em que a defasagem chega a 17.270% em comparação à Classificação
Brasileira de Procedimentos Médicos.
O déficit anual dos hospitais beneficentes
é da ordem de R$ 10,9 bilhões por ano – e vem subindo. Em seis anos, mais de
300 fecharam as portas. Outros resistem à custa do sucateamento de suas
estruturas e altos endividamentos, que chegam a cerca de
R$ 20 bilhões. Assim, os pilares do SUS
estão ruindo por causa da incúria dos governos federais, que capitalizam o
prestígio do SUS descapitalizando seus parceiros.
É literalmente salutar, portanto, a
iniciativa do governo paulista de complementar os repasses federais. A um custo
anual de R$ 2,5 bilhões, todos os 5 mil procedimentos terão algum complemento,
no mínimo de 10% a 20%, podendo chegar a 400%. Para dar uma ideia da defasagem,
os repasses para retirada de vesícula passarão dos R$ 996 federais para R$
4.483 no total; para cirurgia de hérnia, a elevação será de R$ 434 para R$
1.957; parto, de R$ 443 para R$ 2.217.
O programa deveria ser emulado por outros
Estados, mas está longe de ser uma solução definitiva. Poucos Estados têm a
capacidade financeira de São Paulo – e, em geral, os que menos têm mais
dependem do SUS. Repasses estaduais, melhorias na gestão ou créditos a juros
menos escorchantes têm sido paliativos incapazes de conter o sangramento a que
os hospitais estão submetidos pelo subfinanciamento.
Para resgatar o SUS da UTI, o governo
federal precisa de um plano de renegociação de dívidas e reposição das perdas
acumuladas pelos hospitais, e para tirá-lo definitivamente da enfermaria,
precisa atualizar a tabela de procedimentos. É uma questão de justiça para com
os hospitais beneficentes – e de saúde para 7 em 10 brasileiros que dependem
dos cuidados do SUS.
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