quinta-feira, 31 de agosto de 2023

O que a mídia pensa: editoriais / opiniões

Ministro não deve integrar conselho de empresas

O Globo

Indicação de Carlos Lupi e Anielle Franco para Tupy contradiz código de ética da administração federal

Pode ser até justificável criticar a remuneração dos ministros de Estado e de outras autoridades como insuficiente para honrar as responsabilidades e necessidades impostas pelos deveres do cargo. Mas é injustificável que o governo tente “complementar” essa remuneração por meio de artifícios que resultem em conflitos de interesses flagrantes.

Foi comum, por anos, indicar integrantes do gabinete a cadeiras no conselho de administração de empresas estatais. Ainda que o indicado mantivesse comportamento impecável, sempre era possível encontrar uma situação em que suas decisões no governo poderiam ter impacto no negócio das empresas. É um caso em que, como diz o provérbio, não basta ser honesto, é também preciso parecer honesto. Por isso a Lei das Estatais, de 2016, vetou a prática. A proibição vigorou por seis anos, sem que nenhuma estatal tenha sido prejudicada por isso. Infelizmente a indicação para o conselho de estatais voltou a ser possível em razão de liminar do então ministro do Supremo Ricardo Lewandowski, à espera de exame pelo plenário da Corte.

Não contente com as estatais, o governo acaba de fazer duas indicações ao conselho de uma empresa privada. Por meio das participações de BNDESPar (braço de investimentos do BNDES) e Previ (fundo de pensão do Banco do Brasil), entraram no conselho da metalúrgica Tupy o ministro da Previdência, Carlos Lupi, e a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco. Considerando apenas as fatias do BNDESPar em 27 companhias, abre-se amplo leque para encaixar ministros e outras autoridades em sinecuras com pouco trabalho e alta remuneração.

É verdade que o BNDES alterou em abril sua política para preencher cargos de conselho, de modo a dar mais espaço a técnicos do banco. Os critérios incluem “notório conhecimento e formação acadêmica compatíveis com o cargo” e não ser “dirigente estatutário de partido político”. Lupi, presidente da Executiva Nacional do PDT, não satisfaz a nenhuma das exigências. Anielle, até onde se sabe, não tem familiaridade com o ramo metalúrgico. A remuneração de um ministro no conselho da Tupy alcança R$ 52.600 mensais, ante salário de R$ 41.651 no governo.

Se já não era razoável haver ministros no conselho de estatais, é ainda menos aceitável em empresas privadas. É evidente o conflito de interesses imposto pelo convívio com a intimidade de companhias que dependem de decisões do governo. O caso, diz o ex-presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) Marcelo Trindade, “ultrapassa uma fronteira perigosa e abre a porteira para empresários elegerem ministros a conselhos privados”.

A nomeação dos ministros ao conselho da Tupy é mais um motivo para o Supremo apressar o julgamento da liminar que suspendeu dispositivos da Lei das Estatais. O debate sobre aspectos jurídicos (e éticos) da questão é urgente, na defesa dos interesses tanto de contribuintes quanto de acionistas.

Como princípio, deveria valer para ministros a mesma regra imposta a todas as autoridades pelo Código de Conduta da Alta Administração Federal: “A autoridade pública não poderá receber salário ou qualquer outra remuneração de fonte privada em desacordo com a lei, nem receber transporte, hospedagem ou quaisquer favores de particulares de forma a permitir situação que possa gerar dúvida sobre a sua probidade ou honorabilidade”.

Violência na Bahia expõe necessidade de uma política nacional de segurança

O Globo

Nenhum governo tem apresentado resposta adequada para questão que continua a afligir a população

A chacina de nove moradores — entre eles três crianças —no município de Mata de São João, Região Metropolitana de Salvador, expôs a gravidade da crise de segurança que amedronta a Bahia. As vítimas foram encontradas em duas casas. Sete pertenciam a uma mesma família. As outra duas, segundo investigações, foram assassinadas após ouvirem o barulho dos tiros e saírem para ver o que acontecia. A maioria dos corpos estava carbonizada. Apenas uma criança de 12 anos sobreviveu à matança. Foi socorrida com 50% do corpo queimado.

Na madrugada de terça-feira, durante uma operação de busca da polícia baiana, dois suspeitos do crime foram mortos, entre eles o provável mandante, e um terceiro foi preso. Eles são acusados de integrar uma facção criminosa que controla o comércio de drogas na região. Policiais disseram que a principal linha de investigação envolve crime passional.

Foi, em pouco mais de uma semana, o segundo crime brutal a chocar a Bahia e o país. No dia 17 de agosto, a ialorixá Bernadete Pacífico, de 72 anos, chefe da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), foi assassinada a tiros quando assistia à TV com os netos na sala de casa, em Simões Filho, também na Região Metropolitana de Salvador.

Mãe Bernadete, como era chamada, vinha sofrendo ameaças de morte. Eram conhecidas de todos, inclusive autoridades de segurança. Um de seus filhos, Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, fora assassinado havia seis anos em condições semelhantes (até hoje não foram descobertos autor e motivo). Bernadete fazia parte de um programa de proteção às testemunhas, que de nada adiantou para protegê-la. Na hora do crime, não havia policiais no local. A polícia da Bahia levantou várias hipóteses para explicar o atentado, mas até agora pouco se sabe.

Recentemente, o ministro Rui Costa, chefe da Casa Civil e ex-governador da Bahia, criticou o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública — referência na coleta e análise de dados sobre segurança — por apontar a Bahia como segundo estado mais violento do país, com 47,1 assassinatos por 100 mil habitantes. Costa atacou a ONG e prometeu “padronizar” as estatísticas de segurança no país, sem dar maiores explicações. Não adianta querer maquiar números. O cotidiano violento da Bahia, como provam os crimes recentes, está aí para corroborá-los.

A agenda para a segurança pública é hoje refém de um debate improdutivo. De um lado, aqueles que acreditam no incentivo às armas, defendem operações policiais truculentas e atacam direitos humanos. De outro, aqueles que desprezam o trabalho da polícia ou fingem que o problema não existe, duvidando até das estatísticas que expõem uma realidade de dor e sofrimento. Claro que se trata de problema complexo, desafiador para qualquer governo. Mas, enquanto o país não dispuser de uma política nacional de segurança pública baseada não em preconceitos ideológicos, mas em evidências e exemplos de sucesso, a população continuará a sofrer as consequências.

Reforma ministerial põe Lula ante difíceis escolhas

Valor Econômico

Gestores e ministros indicados por influência política estarão mais focados em oportunidades de gastos do que no equilíbrio orçamentário

Há poucas coisas menos emocionantes no país do que reformas ministeriais - o caminho necessário de ajuste de rota seguido por todos os presidentes desde a volta da democracia. A formação de maioria no Legislativo, porém, tornou-se um ritual exasperante com a dispersão partidária, que ainda persiste apesar de reformas bem-vindas mas tímidas. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em seu terceiro mandato, enfrenta agora condições bem piores para criar uma base de apoio do que em seus dois mandatos anteriores. O PT não é mais uma força inovadora, suas receitas econômicas resultaram em recessão assustadora e seu anseio por acomodação no Congresso nunca o diferenciou dos partidos tradicionais, acostumados a negociações nos quais o jogo de poder importa muito.

Desde a guinada qualitativa no governo de Dilma Rousseff, quando o Legislativo ganhou ainda mais força diante do Executivo, os acordos políticos, que antes sustentaram os governos da Nova República, caminham para o impasse. Lula está nesse impasse com alas do Centrão e tem uma base governista até menor que a de que Dilma dispunha, embora exista um oceano entre sua capacidade de aglutinação e negociação e a da ex-presidente. Para piorar as coisas, o governo tem diante de si não apenas uma maioria conservadora qualquer no Congresso, mas uma que sustentou até meses atrás um presidente de extrema direita, Jair Bolsonaro.

Minoritário, o governo Lula enfrenta escolhas difíceis. Herdou como presidente da Câmara o artífice da blindagem de Bolsonaro, o deputado Arthur Lira, com o qual fez um acordo prévio para governar que ameaça desandar a qualquer momento. É usual nos regimes democráticos que governos sem apoio parlamentar convidem outros partidos para compartilhar o poder e construir, assim, condições básicas de um equilíbrio político frutífero. Na prática, as legendas que se propõem agora a participar do governo não têm nenhum interesse programático comum com o PT.

O presidente Lula está protelando a reforma porque a charada política da governabilidade não o favorece, depois de ter vencido uma eleição por pouco mais de 2 milhões de votos. Republicanos e PP, o partido de Lira, querem cargos ministeriais de relevo, isto é, com orçamentos generosos e grande capacidade de ação, sem, entretanto, garantir que apoiarão os projetos do governo. Lira demanda cargos e pastas relevantes, enquanto o líder de seu partido, Ciro Nogueira (PP-PI), ex-chefe da Casa Civil de Bolsonaro, jura que jamais apoiará Lula. Algo parecido ocorre com Marcos Pereira, cacique dos Republicanos, firmemente empenhado em obter vagas de peso na administração petista, sem assegurar votos.

A reforma ministerial, vagarosa obra em progresso, tem suas singularidades e seus exotismos. Lula criou o 38º ministério da Esplanada, mas ele não tem ainda um titular. Por outro lado, há dois ministros publicamente nomeados, mas que ainda não têm pastas - os deputados André Fufuca (PP-MA) e Silvio Costa Filho (Republicanos-PE). O Republicanos mira o Ministério de Portos e Aeroportos, que não existia e foi criado sob medida para abrigar o aliado Marcio França, do PSB, derrotado na eleição para o governo paulista. França, no entanto, pode ou não ser deslocado para outra pasta, a da Pequena e Média Empresa, que também poderá acolher a atual ministra de Ciência e Tecnologia, Luciana Santos - seu cargo é cobiçado pelo Centrão, da mesma forma que o de Ana Moser, titular dos Esportes.

Na acomodação política tradicional, os ministérios foram usados como moeda de troca para compor o aparato de sustentação política dos governos. Não parece mais ser o caso. A multiplicação dos partidos e seu contrário, a polarização política, estão alterando as bases nos quais se apoiava a governabilidade. Uma prova disso em tom menor é que partidos que votaram a favor do impeachment de Dilma Rousseff são cortejados para formar a base parlamentar de Lula, que critica o que, em sua narrativa, chama de “golpe” que derrubou a ex-presidente.

É preciso prestar atenção para que as consequências das negociações da reforma ministerial não sejam ruins para os cofres públicos. Lula desenterrou o velho PAC, prometendo obras bilionárias, e pretende entregar cargos operacionais em pastas e instituições financeiras com destaque na execução dos investimentos (como a Caixa) a políticos do Centrão. Que sejam indicações com respaldo técnico que garantam a boa execução desses projetos. O governo tem um programa de árdua execução, zerar o déficit público, o que possivelmente exigirá um contingenciamento razoável de recursos públicos. Os gestores e ministros indicados por influência política não poderão estar focados apenas em oportunidades de gastos, terão de olhar o equilíbrio orçamentário ou mesmo a contenção de despesas. Ajuda a compor esse cenário de risco à austeridade fiscal o fato de o próprio PT e de alas do governo acreditarem que quanto maior for o gasto público mais chances o país tem de crescer.

O quartel e a urna

Folha de S. Paulo

Proposta para conter politização de militares é menos ambiciosa, mas correta

A República brasileira traz em seu DNA a indelével marca do militarismo. Nasceu de um golpe, contra a monarquia em 1889, e foi pontuada ao longo de sua história por revoltas, interferências e pressões do poder fardado sobre o civil.

Boa parte disso partiu do fato de que os políticos usualmente só querem saber de militares quando desejam promover rupturas —e assim foi até o tenebroso 1964.

Os anos de reclusão da caserna após a ditadura trouxeram profissionalismo, mas a ascensão de Jair Bolsonaro (PL) em 2018 demonstrou que nem toda a mentalidade dos quartéis fora aperfeiçoada.

Mau militar, o capitão reformado foi apadrinhado por setores do Exército que buscavam maior protagonismo na política e cercado por generais da reserva que pretendiam ao fim controlar suas ações.

O resultado é conhecido. Quando a cúpula resistiu às intentonas golpistas e negacionistas do presidente, sobrevieram tensões institucionais como a demissão dos comandantes das três Forças e do ministro da Defesa em 2021.

Já naqueles turbulentos anos uma receita foi prescrita para o problema, na forma de uma proposta de emenda constitucional vetando militares da ativa em cargos no Executivo —situação que chegou ao paroxismo com o desastroso general Eduardo Pazuello à frente do manejo da pandemia de Covid-19.

Com a volta de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao poder, em meio ao desgaste agudo de imagem das Forças devido à presença de militares nas conspiratas bolsonaristas e a vexames como o da traficância de joias, o tema ganhou nova força.

Petistas mais adeptos do revanchismo advogaram a implosão do artigo 142 da Constituição, que rege as Forças e motiva interpretações delirantes de golpistas. O partido também pretendeu remover atribuições como as operações de Garantia da Lei e da Ordem, aliás uma prerrogativa presidencial.

O moderado ministro José Múcio (Defesa) interveio e foi gestada a minuta de uma nova PEC, que vedaria a fardados na ativa o posto de ministro e a possibilidade de candidatura a cargo eletivo.

A intenção meritória foi desidratada no seu primeiro dia de vida pública, após esta Folha ter revelado o teor da proposta. O senador Jaques Wagner (PT-BA), ex-titular da Defesa, reuniu-se com Múcio e outros ministros e anunciou que o governo apresentará um texto cobrindo apenas a limitação eleitoral, a valer a partir de 2026.

Ao que tudo indica, o governo não tem força política para levar adiante mudanças mais ambiciosas. Ainda assim, a medida aventada representa avanço relevante. Hoje, militares derrotados nas urnas podem levar de volta seu proselitismo político aos quartéis.

Laico intolerante

Folha de S. Paulo

Veto francês à túnica árabe em escolas atenta contra liberdade individual

Um dos movimentos capitais da marcha civilizatória foi a separação entre Estado e igreja. O divórcio foi bom para o poder público, que ficou livre de dogmas para fazer leis baseadas na razão, e para as próprias religiões, que não precisavam mais temer a opressão exercida por uma fé dominante.

Os maiores beneficiários, contudo, foram os cidadãos, que ganharam autonomia para decidir se querem ou não seguir uma crença e, em caso afirmativo, escolher qual.

Não há país que tenha implementado essa cisão de forma mais decidida do que a França, que desde a revolução de 1789, e especialmente a partir de 1905, vem cultivando com zelo a secularização. Talvez até com excesso de zelo.

O ministro da Educação francês, Gabriel Attal, anunciou que as escolas do país não permitirão mais que alunas usem a abaya (túnica árabe) em suas dependências. Pelo novo entendimento da pasta, esse adereço viola a Lei da Laicidade de 2004, que já vetara o hijab (véu islâmico) e outros "símbolos ostensivos" de religiosidade.

A França faz muito bem em proibir crucifixos nas paredes de prédios oficiais (exceto museus) e melhor ainda em impedir professores de utilizá-los. Os mestres, afinal, são representantes do Estado quando estão em sala de aula e devem, portanto, incorporar valores republicanos como a laicidade.

Esse raciocínio, porém, não se aplica aos alunos. Diferentemente dos professores, que escolheram trabalhar para o poder público, os pupilos estão na escola porque a lei assim exige.

Nessas condições, privá-los de portar símbolos que eles entendem ser importantes para suas identidades individuais parece um fardo excessivo. No limite, a laicidade está se contrapondo a liberdades individuais, que também fazem parte do pacote republicano.

Cabe lembrar ainda que a abaya não é propriamente um ícone religioso —ao menos não como o crucifixo para os católicos, a estrela de David para os judeus ou o turbante para os sikhs.

A túnica está entre o religioso —o Alcorão exige que mulheres se vistam "com modéstia", mas não especifica como— e o étnico, já que o traje é típico no norte da África e na Península Arábica, mas não em outras terras muçulmanas.

Ao investir contra a abaya, o Estado francês volta a legislar sobre vestimentas, o que soa como um retrocesso a períodos bem pouco iluministas da história.

A eterna tentação de controlar a imprensa

O Estado de S. Paulo

Ao tentar impor restrições ao trabalho da imprensa, CPMI do 8 de Janeiro reverbera a tentação de controlar o jornalismo. A liberdade de imprensa é sempre incômoda ao poder

CPMI do 8 de Janeiro reverbera a tentação de controlar o jornalismo. A liberdade de imprensa é sempre incômoda ao poder.

Aliberdade de imprensa, um dos sustentáculos do regime democrático, sempre foi incômoda para o poder. De tempos em tempos, aparece alguém tentando, de modo mais explícito ou mais sutil, cercear o livre exercício do jornalismo pelas mais variadas razões. Tal pretensão autoritária não deve causar surpresa. Como preconiza o mais básico dos manuais do ofício, o jornalismo envolve necessariamente lançar luz sobre fatos de interesse público, fatos estes que alguns detentores circunstanciais do poder gostariam de manter longe dos olhos da sociedade.

O presidente da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de Janeiro, deputado Arthur Maia (União-BA), foi um dos que não resistiram à tentação de se arvorar em editor de jornal, tentando controlar, ora vejam, o que o jornalismo pode ou não publicar. No dia 28 passado, Arthur Maia editou uma norma que vedava aos profissionais de imprensa credenciados para cobrir os trabalhos da CPMI a publicação de documentos classificados como “confidenciais” pelo colegiado. Quais seriam as consequências mundo afora se o jornalismo publicasse apenas o que o poder estatal autoriza publicar?

Não é papel do presidente da CPMI – nem de qualquer outra autoridade – definir que tipo de informação o jornalismo pode levar a conhecimento público. O Estado simplesmente não dispõe dessa atribuição. Ainda mais contraditório é o fato de que a norma restritiva para a imprensa foi editada por quem preside uma comissão parlamentar que investiga um ataque contra a Constituição que reconhece a liberdade de imprensa como garantia fundamental do Estado Democrático de Direito.

Além de evitar a publicação de documentos ditos “confidenciais”, a norma censora se prestava, nas palavras de seu idealizador, a “proteger o direito à intimidade e a vida privada” dos deputados e senadores membros da CPMI, haja vista que o conteúdo de algumas mensagens trocadas entre eles por celular veio a público por meio de veículos jornalísticos.

Aqui se vê como a pretensão de controlar a imprensa sempre se apresenta revestida de bons motivos. No caso em tela, como pretensa defensora do direito à privacidade dos parlamentares. Mas, apesar das vestes aparentemente civilizadas, a justificativa é inteiramente descabida. Não cabe controle prévio da imprensa. E, na hipótese de eventual equívoco por parte do jornalismo, há sempre a possibilidade de posterior responsabilização pelas vias judiciais. Como dissemos neste espaço, “um jornal não lava as mãos pelo que publica. Ele é responsável pelo conteúdo que sai em suas páginas, sejam impressas ou digitais” (ver editorial O limite da imprensa já está na Constituição, 20/8/2023).

A imprensa, livre e independente, incomoda. Não é por outra razão que jornalistas e veículos de imprensa figuram entre as primeiras vítimas dos déspotas e autoritários que ascendem ao poder. Por isso, no regime democrático, a liberdade de imprensa é ponto inegociável. Impor qualquer limite ao trabalho jornalístico além do que está estabelecido na Constituição é uma afronta ao Estado Democrático de Direito. Entre outros graves danos, deixaria a população refém do poder estatal.

A imprensa é “o cão de guarda da sociedade”, diz o conhecido aforismo. De fato, a constante vigilância exercida pelo jornalismo é proteção – algumas vezes, a única – da população perante o Estado, em suas diversas esferas.

Diante da repercussão negativa do caso – que veio justamente da denúncia feita pela imprensa –, o presidente da CPMI recuou do ato que impôs sanção aos jornalistas que divulgarem informações confidenciais vazadas por membros do colegiado. Manteve, no entanto, a decisão de proibir que profissionais da imprensa capturem “imagens de conteúdo privado de terceiros sem autorização”.

Todo esse episódio lembra a importância da defesa das liberdades. Mesmo num colegiado do Congresso cujo objetivo é investigar atos antidemocráticos, tenta-se restringir a liberdade de imprensa. Ou seja, o preço da liberdade continua sendo a eterna vigilância.

Insistência num velho e caro erro

O Estado de S. Paulo

Governo pretende usar Transpetro para alavancar a indústria naval brasileira. O PT não aprendeu nada com seus erros anteriores. Voluntarismo não cria desenvolvimento sustentável

A Transpetro, subsidiária da Petrobras para logística e transporte, anunciou o lançamento, em janeiro de 2024, de licitação para compra de navios de grande porte que pretende incorporar à sua frota. Serão três lotes, parte da encomenda total de 25 navios do novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Em entrevista ao Estadão, o presidente da Transpetro, Sérgio Bacci, afirmou que a intenção é construir no Brasil os petroleiros, seguindo a política de conteúdo local. “Se eu tiver cinco propostas disputando os três lotes, já estarei satisfeito”, disse.

Está dada a largada para mais uma arriscada cruzada com o objetivo de içar, a qualquer custo, a indústria naval. Seguindo exatamente o roteiro da recente – e fracassada – experiência petista no setor, o esquema é ancorado nas necessidades logísticas da Petrobras, no apelo político de criação de milhares de empregos e em encomendas gigantes, tanto em volume de recursos quanto na quantidade e tipo dos projetos. Trata-se de navios para transporte de petróleo e gás com capacidade em torno de 80 mil toneladas de produtos.

Recapitulando o script: nos dois primeiros governos Lula da Silva, a reativação da indústria naval, que patinava há mais de uma década, com estaleiros atolados em dívidas, foi proposta de campanha turbinada pela descoberta de petróleo na região do pré-sal. Encomendas bilionárias foram entregues a estaleiros que ainda nem existiam, uma empresa foi criada – a Sete Brasil

– apenas para tocar os contratos e, no auge do que parecia o renascimento do setor, 82 mil empregos foram criados.

Sem expertise para projetos tão complexos, surgiram problemas graves de construção, atrasos nos cronogramas de entrega, revisões de preços nos contratos, aumento de custos. Para culminar, em 2014, com as investigações da Lava Jato foram revelados esquemas fraudulentos bilionários centrados na Transpetro e na Sete Brasil. A indústria voltou ao ostracismo. Endividada e em litígios judiciais com bancos e estaleiros, a Sete Brasil está desde 2016 em recuperação judicial, assim como três estaleiros criados naquela época.

O atual presidente da Transpetro acompanhou a história do outro lado do balcão. Até assumir o cargo, neste ano, Sérgio Bacci ocupava a direção do Sindicato Nacional da Indústria Naval (Sinaval). Assistiu de perto ao fiasco de um projeto megalômano, colocado em prática sem planejamento, sem a adequada capacitação de mão de obra, sem domínio tecnológico e sem condições de competir em custos com gigantes asiáticos que dominam um mercado globalizado. Assusta que esteja prestes a reeditar o malogro.

Sempre meritória, a criação de empregos não pode ser uma medida artificial. Para ser sustentável, deve ser consequência de políticas públicas pensadas a longo prazo. Ao impor conteúdo nacional exorbitante (o porcentual chegou a 70%) nas obras navais, o governo tornou a construção duas a três vezes mais cara do que em países que, com estrutura madura e consolidada, atingem produtividade suficiente para baratear custos. Não há como chegar a este nível num passe de mágica. Bacci sabe disso. O presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, e o presidente Lula da Silva também sabem. Mas parece que todos preferem o ilusionismo.

Quando foi criado, em 2004, o Programa de Modernização e Expansão da Frota da Transpetro (Promef), já com a megaencomenda de 49 navios, a propaganda oficial era de que o ritmo de crescimento da produção de petróleo tornaria em poucos anos o Brasil competitivo no mercado naval. Partia de um pressuposto duvidoso ao acreditar que a demanda de uma única empresa, mesmo sendo do porte da Petrobras, pudesse empurrar toda uma indústria pesada como a naval à criação de escala para competir mundialmente.

“A indústria naval não pode errar de novo”, disse Bacci na entrevista. O presidente da Transpetro deveria ouvir a si mesmo e repensar a forma de contribuir para a formação de um mercado bem-sucedido no País. Ao contrário do que ele defende, não adianta empurrar para “pegar no tranco”.

O dever de resgatar o SUS da UTI

O Estado de S. Paulo

Governador de SP acerta ao complementar os repasses ao SUS. Governo federal tem de fazer sua parte

Celebrado como uma das maiores conquistas civilizacionais da história do Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS), o maior serviço público de saúde do mundo, é fundamentalmente prestado por entes privados. Sem as Santas Casas e hospitais filantrópicos o SUS seria, quantitativa e qualitativamente, inviável.

Os hospitais estatais são insuficientes e, via de regra, ineficientes e caros. Os hospitais beneficentes respondem por 50% dos atendimentos do SUS e 70% dos casos de alta complexidade. Em mais de 800 municípios, eles são o único serviço de saúde. Seria um modelo exemplar de parceria público-privada – o Estado arrecada recursos dos cidadãos e repassa-os a quem tem estrutura e expertise –, se um dos parceiros cumprisse a sua parte.

Mas há décadas esses hospitais são asfixiados pelo subfinanciamento. Entre 1994 e 2022, enquanto o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) acumulou reajuste de 636% e o salário mínimo, de 1.597%, a tabela de procedimentos do SUS foi reajustada em 93%. Os custos dos hospitais beneficentes chegam a ser oito vezes menores que os dos hospitais federais. Mesmo assim, em média, a cada R$ 100 gastos por eles em atendimentos do SUS, só R$ 60 são cobertos pelo Estado. Segundo o Conselho Federal de Medicina, há procedimentos em que a defasagem chega a 17.270% em comparação à Classificação Brasileira de Procedimentos Médicos.

O déficit anual dos hospitais beneficentes é da ordem de R$ 10,9 bilhões por ano – e vem subindo. Em seis anos, mais de 300 fecharam as portas. Outros resistem à custa do sucateamento de suas estruturas e altos endividamentos, que chegam a cerca de

R$ 20 bilhões. Assim, os pilares do SUS estão ruindo por causa da incúria dos governos federais, que capitalizam o prestígio do SUS descapitalizando seus parceiros.

É literalmente salutar, portanto, a iniciativa do governo paulista de complementar os repasses federais. A um custo anual de R$ 2,5 bilhões, todos os 5 mil procedimentos terão algum complemento, no mínimo de 10% a 20%, podendo chegar a 400%. Para dar uma ideia da defasagem, os repasses para retirada de vesícula passarão dos R$ 996 federais para R$ 4.483 no total; para cirurgia de hérnia, a elevação será de R$ 434 para R$ 1.957; parto, de R$ 443 para R$ 2.217.

O programa deveria ser emulado por outros Estados, mas está longe de ser uma solução definitiva. Poucos Estados têm a capacidade financeira de São Paulo – e, em geral, os que menos têm mais dependem do SUS. Repasses estaduais, melhorias na gestão ou créditos a juros menos escorchantes têm sido paliativos incapazes de conter o sangramento a que os hospitais estão submetidos pelo subfinanciamento.

Para resgatar o SUS da UTI, o governo federal precisa de um plano de renegociação de dívidas e reposição das perdas acumuladas pelos hospitais, e para tirá-lo definitivamente da enfermaria, precisa atualizar a tabela de procedimentos. É uma questão de justiça para com os hospitais beneficentes – e de saúde para 7 em 10 brasileiros que dependem dos cuidados do SUS.

 

 

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