Folha de S. Paulo
Com sua escolha, Lula provocou indignação
dentro e fora do PT
Ao indicar para uma vaga do STF (Supremo
Tribunal Federal) seu advogado amigo, o presidente Lula criou indignação dentro
e fora do PT. Afinal, logo que vestiu a toga, deu cinco votos que o opuseram à
maioria da Corte e o alinharam aos ministros patrocinados por Bolsonaro.
Mas, para além do conhecido pragmatismo do cliente, sua escolha leva à cena uma questão maior, que há décadas desafia os progressistas: como acomodar, na agenda classista e redistributiva, a questão ambiental e as demandas por direitos de grupos que não se imaginam parte dessa ou daquela maioria.
O fenômeno tem milhagem. Já em 1977, o
cientista político americano Ronald Inglehart (1934-2021) publicou "A
Revolução Silenciosa", no qual anunciava significativo câmbio na cultura
política dos países desenvolvidos, associado à chegada do que então se passou a
designar sociedade pós-industrial.
O conflito político —organizado em termos
de crescimento econômico, redistribuição de seus frutos e o papel do Estado
nisso tudo— ganhava outras clivagens, advindas dos temas trazidos pelas
gerações mais jovens. Assim, Inglehart anunciou a ascensão de uma agenda que
chamou de pós-materialista. O conceito incluía muitas coisas díspares: defesa
do meio ambiente, direitos das mulheres e outros grupos de gênero (na sociedade
e nas famílias), antirracismo, pluralismo cultural e religioso, tolerância com
o uso de drogas.
Na visão do autor, a nova cultura política
progressista se somaria àquela que tradicionalmente identificava as esquerdas
social-democratas e as opunha às forças conservadoras. Faltou combinar com os
fatos. Salvo raríssimas exceções, o diálogo entre as duas formas de progressismo
—o redistributivo e o ecológico-identitário— foi e continua a ser difícil em
toda parte, Brasil incluído.
Aqui é enorme a resistência daquela parcela
da sociedade, muito mais conservadora do que bem-informada, a bandeiras que
lhes pareçam distantes de suas carências cotidianas, como a da proteção
ambiental; que sejam do interesse de minorias, como a defesa dos povos
indígenas; ou que preguem o reconhecimento de direitos tido como ameaça a seus
valores e crenças morais. Por essa razão, quem dependa de votações majoritárias
para fazer carreira política trata de dar as costas a isso tudo.
Assim, a efetividade daqueles direitos
abrigados na Carta de 1988 —e imprescindíveis para civilizar o país— só pode
vir do poder contramajoritário da Suprema Corte.
Daí que a escolha de seus membros poderá
ter terríveis consequências se a amizade e o pragmatismo míope prevalecerem.
*Professora titular aposentada de ciência
política da USP e pesquisadora do Cebrap.
Um comentário:
Verdade.
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