quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Aylê-Salassié Filgueiras Quintão* - BRICS: perigo de ataxia hereditária.

Nesses últimos 50 anos, o medo, e não o ódio, manteve o mundo longe de um terceiro e  grande conflito militar . O período do pós guerra foi  marcado, essencialmente,  por uma   divisão ideológica   entre países  liberais capitalistas, do Ocidente , liderados pelos Estados Unidos (EUA);   e     países de regime comunista, do Leste, capitaneados pela União Soviética (URSS), sob a hegemonia da  Rússia. Todos  alimentaram-se de  discursos de paz e democracia, condições que permitiram a reorganização do mundo. Nas entrelinhas,   produziam-se, contudo,  novas e sofisticadas armas  e introduziam-se estratégias militares inovadoras, que ganharam o apelido de  " Guerra nas  Estrelas".

No período, a  energia atômica tornou-se popular nos campos energético e da medicina, e  desenvolveram-se  tecnologias espaciais. Com elas, a construção de foguetes e de ogivas  nucleares de longo alcance . Era a chamada "corrida armamentista", implementada  com o apoio de grandes empresas . As ameaças viriam agora  do céu. Santo Deus!... Desse cenário iriam surgir novas lideranças políticas, que   ignoravam totalmente a morte de 60 milhões de cidadãos, soldados e civis, mulheres, velhos  e crianças,  durante a segunda guerra: "É apenas uma estatística", ponderava Josef Stalin, líder da União Soviética (1927-1953).

Aumentou o  temor  de mais uma guerra , agora alavancada por uma sofisticada escalada de inovação armamentista , com alto poder de destruição .  Coube à  ONU - Organização das Nações Unidas e, alternativamente,  a expansão do  comercio mundial, controlado pela OMC - Organização Mundial do Comércio (ex-GATT), amenizar as pressões  no mundo conduzidas sob a influência  de países historicamente belicosos .  Rússia e EUA  cultivavam e cultuavam os novos  artefatos de destruição em massa., mantendo uma disputa aberta pela hegemonia no Planeta.  Tudo acontecia, contudo,  a nível de discurso, acrescido de algumas sabotagens a um e outro. Foi a chamada  "Guerra Fria". Acreditava-se que o  crescimento da capacidade armamentista  servia para  dissuadir às ameaças contenciosas . 

O modelo  empoderava indivíduos empreendedores e líderes políticos mais ousados,   sem compromissos com o passado. Desde 1976, com a morte de Mao Tsé Tung, a China,  teve esvaziados os vínculos ortodoxos  com o regime comunista. A seguir, em 1991, a URSS se desagregou. Os EUA passaram a capitanear as relações econômicas e sociais no mundo, com a ajuda do Grupo dos Sete (G7) , constituído pelos  países mais industrializados  e de regimes democráticos: - EUA, Inglaterra, Canadá, França, Japão, Alemanha e Itália.    Até por serem excluídas do G7,  emergiram  no cenário novas  lideranças , que  passaram a defender uma nova ordem internacional . 

Emergiu então  um modelo  global de intercâmbio e de blocos regionais para administrar os desequilíbrios . O  crescimento das populações, a má distribuição de renda e de  alimentos , os desperdícios , os serviços básicos insuficientes e as chantagens contra a humanidade (elevação dos preços do petróleo), geraram endividamentos e déficits contábeis  que  faziam empacar o sonho do desenvolvimento nos países emergentes,  até que, em 2009,  o BRICS aflorou , reunindo  Brasil(B), Rússia(R), Índia(I)e China(C), agregando-se, depois, à sigla um "S", ao incorporar a África do Sul. Seria um bloco que defendia uma  reação explícita à continuidade neocolonial  no mundo,  propagando  uma ação comum para conseguir  "paridade" de interesses e  frustrações, voltados para  corrigir o equilíbrio  geopolítico.

A semana passada (23 e 24 de 2023), foi realizada, em Johanesburgo, na África,  a 15a reunião de cúpula (presidentes) do BRICS ,  sem o Putin, acusado no Ocidente de sequestrar 200 crianças ucranianas. Mas no encontro foram incorporadas, perifericamente, à organização  a Arábia Saudita, o Irã, a Argentina, os Emirados, Egito e a Etiópia, formando um espécie de G11 .  As  promessas retóricas de multipolaridade e multiculturalidade atraiu cerca de 80 países,  pedindo o ingresso o BRICS. Atropela-se , de certa forma,  a Organização das Nações Unidas,  que congrega 193 países, o Banco Mundial (com o Banco do BRICS), a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, e os bancos de compensação de valores. São instituições que operam  em rede no mundo à busca desse equilíbrio geopolítico. Vozes do BRICS, entendem diferente. Trata-se de uma acumulação de poder nas mãos de grandes corporações e fundos de investimento,  que impõem  a submissão dos povos à uma pedagogia colonial remanescente. 

Daí que a ideia de um  BRICS constituído por  países de "economia emergentes" surge sedutora, embora  alguns  membros precisem abandonar os históricos beligerantes, e repensar seus ordenamentos , por não praticarem exatamente a democracia e nem militarem efetivamente na proteção  dos direitos dos pobres,  da igualdade étnica, de gênero e das minorias ,   tipicidades  de uma ordem especificamente democrática. 

Dentro do Grupo, justamente os fundadores líderes  do BRICS - Rússia e China - obstruem e reprimem em seus países a liberdade de expressão, oprimindo as individualidades ,  além de não refletirem  a  vontade popular majoritária.   A democracia nesses países  tem mais relativismo do  que o anunciado pelo presidente brasileiro. O conceito praticado abriga as conveniências de quem está no Poder  ou dos  grupos corporativos e ideológicos  aos quais   está  vinculado . Os  traços de intolerância  social e política são claros. A impressão é a de que os países líderes no bloco,  pretenderiam   tornarem-se hegemônicos  em uma nova ordem mundial sob a gestão do BRICS. Além do empoderamento financeiro (China) e bélico (Rússia), a proposta em discussão  é desmontar o  sistema de transações e pagamentos correntes, criando uma moeda própria dentro de uma nova ordem . A maioria da reservas  internacionais, inclusive dos membros do BRICS,  amparam-se no dólar  norte-americano, por ambiguamente confiarem na sua estabilidade  política e no seu  PIB.

Surgem dúvidas. Seriam absorvidos pelo bloco do BRICS os elevados déficits no balanço de pagamentos dos membros,  os seguidos calotes dos argentinos ,  ou aqueles gerados pelos fortes gastos  da Rússia com as guerras ? O Egito está praticamente quebrado.  O Brasil tem um enorme déficit  em conta corrente. As economias chinesa e russa estão oscilando para baixo. A invasão da Ucrânia teria legitimidade dentro do BRICS, já que os novos membros não tem compromissos  com a OTAN- Organização do Tratado do Atlântico Norte?  São muitas as perguntas . Quem e o que será a referência garantidora das transações comerciais e monetárias dentro do bloco? O euro é desqualificado dentro do bloco. Alternativas já foram pensadas com  o marco alemão, o yen japonês, inclusive com o  ouro. Não vingaram.  

Nesse cenário de insegurança , é difícil encontrar alguém, a curto prazo, com lastro econômico e credibilidade política para  assumir a garantia dos pagamentos internacionais com a suposta e nova moeda. As reservas do Brasil, os ativos do BNDES e do Fundo Amazônico  estão no bolo. Ninguém fala sobre isso. O pretenso  desmonte de instituições internacionais pode trazer complicações não só para o grupo , mas para o mundo inteiro: uma desarrumação geral. Então, não apenas o regime democrático está sob ameaça . Alguns  membros do BRICS mantém conflitos históricos com a vizinhança  - Arábia e Irã, Índia e China e até Rússia e China. A organização poderá, portanto, levar  tudo a uma espécie de "ataxia hereditária - doença do sistema nervoso e cerebral  . 

* Jornalista e professor

 

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