Valor Econômico
Mesmo governos tidos como ‘terrivelmente’
liberais como os de Reagan e Thatcher não renunciaram à utilização da política
industrial
O governo federal está em vias de divulgar a proposta para a nova política industrial. Pelo que vem sendo sinalizado, o mote principal é a criação de mecanismos que tragam a “neoindustrialização” para o Brasil. Nas palavras do presidente Lula: “Nos próximos anos, a indústria será o fio condutor de uma política econômica voltada para a geração de renda e de empregos mais intensivos em conhecimento e de uma política social que investe nas famílias”. Embora a intenção pareça louvável, não está claro como o Estado apoiará o setor industrial. Seja como for, o debate a respeito do papel do Estado como impulsionador da indústria é antigo e desperta muita controvérsia. Vide, por exemplo, a polarização existente na interpretação das razões que suscitaram o sucesso econômico dos tigres asiáticos a partir dos anos 1980. De um lado, os analistas de viés mais liberal creditam o bom desempenho da economia daquela região à aplicação de boa parte da cartilha ortodoxa, “apesar” de terem lançado mão de vultosa política industrial (PI). No outro extremo, os desenvolvimentistas veem na maciça PI praticada naqueles países um fator decisivo para explicar a excelente resposta da economia asiática. Como se vê, as leituras são bastante dissonantes.
No entanto, apesar de toda a divergência
existente, não há como negar que, como bem observa meu colega Bráulio Borges,
pelo fato de o Brasil ser vulnerável à “maldição dos recursos naturais”, a PI
pode se tornar uma ferramenta relevante para promover a diversificação
produtiva. Caso tenha sucesso, é possível reduzir a dependência econômica dos
setores primários. O que procurarei expor nesta coluna são reflexões sobre
alguns cuidados no emprego da PI no país.
Para começar, é importante ressaltar que,
desde a Revolução Industrial, os governos sempre fizeram uso de PI. Ao retornar
a um passado mais recente, especificamente aos anos 1980, fica claro que mesmo
governos tidos como “terrivelmente” liberais como os de Reagan e Thatcher não
renunciaram à sua utilização. O que dá a dimensão do papel reduzido que os
economistas desempenhavam na formulação da PI dos países. No entanto, o quadro
pode estar mudando, e o campo da economia tem testemunhado um notável avanço nos
estudos de PI. Além de vários experimentos terem sido realizados na
implementação da PI ao redor do mundo, a possibilidade de armazenamento de
enormes quantidades de séries de dados também tem permitido a realização de
estudo empíricos cada vez mais elaborados, propiciando melhor avaliação dos
resultados induzidos pelas diferentes propostas de PI. Em texto de Réka Juhász,
Nathan Lane e Dani Rodrik, divulgado em meados de 2023, os autores fazem uma
excelente compilação do estado da arte do que se tem aprendido sobre PI. Com
isso, o debate entre economistas passou de “se” a PI deve ou não ser
implementada para “como” executá-la de maneira eficiente e eficaz.
Em prol da aplicação de PI, a nova abordagem
trazida por Juhász e outros apresenta um argumento, destacado por meu colega
Samuel Pessôa, que, de fato, é muito persuasivo. Como se sabe, segundo a visão
de alguns analistas, os atributos necessários para se formular e implementar
uma PI estão acima da capacidade do Estado, porque “o burocrata não tem
condição de saber melhor que o empresário que negócio dará certo”. Juhász e
outros refutam essa tese. Segundo suas alegações, a falha desse raciocínio é
que o Estado não precisa saber de antemão o que dará certo, inclusive porque,
pela própria natureza do risco que se toma para diversificar a economia e criar
especializações produtivas, necessariamente várias tentativas darão errado para
que algumas deem certo. Nesse sentido, bem mais importante é a capacidade de
diagnosticar cedo uma experiência que deu errado, e parar de gastar recursos
públicos com ela.
Contudo, para que se constate que um programa
não alcançou o objetivo almejado, e, por conseguinte, deva ser desativado, é
necessário aferir o resultado alcançado e compará-lo com o que dele era
esperado. Frente a esse desafio, não há como escapar do estabelecimento de
metas. Por meio destas é possível reconhecer o alvo do gestor público bem como,
posteriormente, avaliar se a política está sendo executada a contento. Assim, é
fundamental aprimorar o ambiente socioinstitucional e político brasileiro para
que a elaboração e o acompanhamento do cumprimento das metas tenham um caráter
prioritário.
Por conta disso, a nova política industrial
deve ser apresentada de forma a não dar margem a dúvidas sobre o objeto a ser
perseguido pelo programa. Será a geração de empregos? Algum emprego em
especial? Meta. Será um apoio à política social? Como mensurar? Meta. Será
diversificar a pauta exportadora? Meta. Será aumentar a produtividade da
indústria? Meta. Afinal, se não se sabe para onde ir, qualquer caminho serve.
Outro ponto muito bem observado por Pessôa na
moderna discussão de PI diz respeito ao levantado pelo sociólogo Peter Evans,
que cunhou a expressão “autonomia embutida” para definir uma organização
interna virtuosa no moderno Estado desenvolvimentista. A autonomia embutida
refere-se a uma burocracia funcional, meritocrática, adequadamente remunerada e
“bem-intencionada”, que dirige a intervenção estatal com eficiência e lisura.
Normalmente, entretanto, se imaginaria que um corpo burocrático desse tipo teria
de ser bem isolado de interações com o setor privado que trouxessem o risco de
captura. Evans advoga justamente o contrário, a burocracia deve estar alinhada
com o processo decisório do setor privado para que possa compreender suas
necessidades e estabelecer um canal de “negociação contínua de objetivos e
políticas”.
Como se vê, quando se trata de PI, não há
como o estado fugir de sua função vital de regulador do mercado. Nesse sentido,
é inevitável a interação frequente da máquina pública com o setor privado. O
primordial, no caso, é aprimorar as instituições para que mitiguem o risco de
captura dos agentes públicos pela agenda de interesse das empresas.
*Luiz Schymura é pesquisador do FGV Ibre
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