terça-feira, 2 de janeiro de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Desmatamento no Cerrado impõe dever aos estados

O Globo

Engajamento de governadores é crucial para sociedade saber o que é legal e ilegal — e deter a devastação

A área desmatada no Cerrado aumentou 3% de agosto de 2022 a julho de 2023, segundo dados do Inpe. Em anos anteriores, o aumento foi maior (25% em 2022 e 2020, 8% em 2021). Seria um erro, porém, se estender em comemorações. Os 11 mil km2 desmatados foram a maior extensão para o período desde 2015. A situação lembra a vítima de enchente que celebra que a chuva amainou com água até a cintura. De 2003 a 2022, uma área equivalente ao estado de São Paulo virou pasto ou lavoura.

A perda da vegetação nativa é o resultado previsível da expansão da atividade econômica. Hoje o Cerrado responde pela maior fatia da agropecuária brasileira (54% da produção agrícola e 44% do rebanho bovino). Com tecnologia e empreendedorismo, tornou-se referência mundial de produtividade e um dínamo para a economia. O debate, portanto, não deve opor a produção a qualquer preço à conservação ambiental. O desafio é a coexistência. A cada ano fica mais óbvio que o ritmo atual de desmatamento, legal ou ilegal, é insustentável. A estação seca e as temperaturas aumentam, e a água escasseia.

No final de novembro, o governo federal anunciou um plano de ação para prevenir e controlar desmatamento e queimadas até 2027. Chamado PPCerrado, ele tem como objetivo eliminar a devastação ilegal até 2030 e pôr de pé um sistema de compensação para o desmatamento legal. Para que não vire letra morta, a sociedade precisará acompanhar de perto a implementação. A mesma atenção deverá ser dirigida aos governos estaduais, até o momento omissos. O foco é a região conhecida como Matopiba (entre Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), responsável por 75% do desmatamento.

O Código Florestal estabelece que todo imóvel rural mantenha, no mínimo, 20% da área com vegetação nativa (em áreas de transição com a Amazônia, o limite é 35%). Não existe, contudo, base de dados consolidada sobre o cumprimento da lei, apenas a autodeclaração dos proprietários no Cadastro Ambiental Rural. Os estados são os principais responsáveis por emitir documentos para o desmatamento. O Cerrado é, segundo Tasso Azevedo, coordenador da rede MapBiomas, o bioma com mais autorizações legais em proporção à área desmatada, mas falta fiscalização. Entre 2019 e 2022, 46% do desmate na Bahia foi permitido. No mesmo período, menos de 5% foi alvo de alguma inspeção estadual.

Entre os dez municípios com maior extensão devastada no ano encerrado em julho, quatro são baianos. São Desidério, em primeiro lugar, esteve na terceira colocação em 2022 e 2021 e na quarta um ano antes. Formosa do Rio Preto, 180 quilômetros ao norte, também na Bahia, era campeão desde 2001. Os prefeitos dessas cidades e o governador Jerônimo Rodrigues (PT) devem esclarecimentos sobre o que acontece em cada propriedade rural. O mesmo vale para Carlos Brandão (PSB), governador do Maranhão, estado onde o desmatamento é o maior desde 2010. Rodrigues e os governadores do Tocantins, Wanderlei Barbosa (Republicanos), e do Piauí, Rafael Fonteles (PT), foram à COP 28, em Dubai, defender o crescimento sustentável. Faltou explicar por que a destruição da vegetação do Cerrado tem crescido em todos esses estados.

Sem engajamento dos governadores, a sociedade não saberá o que é legal ou ilegal — e o desmatamento do Cerrado não será contido.

Teses pessimistas sobre o futuro da economia não justificam protecionismo

O Globo

Brasil dispõe de recursos para enfrentar envelhecimento populacional e desaceleração chinesa

Ao provocar um choque nas cadeias globais de suprimentos e despertar a inflação que parecia sob controle, a pandemia recolocou em circulação teses econômicas sobre o futuro do planeta eivadas de pessimismo. Uma delas vem sendo difundida pelo estrategista geopolítico Peter Zeihan, autor do best-seller “O fim do mundo está apenas começando — mapeando o colapso da globalização”. Ele prevê, com base em argumentos demográficos e financeiros, um retrocesso sem retorno na globalização que garantiu o crescimento econômico do mundo nas últimas décadas.

Zeihan argumenta que, do início dos anos 2000 até 2010, a geração baby boomer, nascida no Pós-Guerra, tinha entre 55 e 65 anos. Sua poupança estava no auge, havia grande disponibilidade de capital a custo baixo, o menor de todos os tempos. Além disso, a emergência de um novo mercado consumidor, sobretudo asiático, garantiu demanda crescente para toda sorte de produto — e disso também se beneficiou o Brasil. “Mas essa situação foi um breve momento na História e está chegando ao fim”, afirmou Zeihan em entrevista ao site Brazil Journal. O fim, segundo ele, ocorrerá em meio século.

O mundo, diz Zeihan, está envelhecendo. Famílias são menores, casais têm menos filhos, tendência que se manterá nas próximas gerações. Com menos gente para consumir, haverá desequilíbrio entre oferta e demanda. No centro da transformação, na visão de Zeihan, estará a China. “Há relações comerciais resultantes da ascensão chinesa, mas agora os chineses descobriram que simplesmente não têm filhos suficientes para manter um sistema orientado para o consumo”, diz. Com o resto do mundo incapaz de absorver o desequilíbrio, a economia global entrará em crise. Por decorrência, também a brasileira, que tem na China seu maior mercado externo.

Claro que as hipóteses de Zeihan são questionáveis. O principal interessado em que nada disso ocorra são os Estados Unidos, cujo déficit orçamentário é em parte financiado pela China, forte compradora de títulos do Tesouro americano. Mesmo tentando desacoplar sua economia da chinesa, os americanos têm apostado nos avanços de produtividade trazidos pela automação e pela inteligência artificial para garantir uma nova era de crescimento.

O Brasil, diz Zeihan, também precisa dispor de meios para se defender desse hipotético colapso chinês. Ele aconselha agregar mais valor às exportações. Em especial na produção de alimentos, o país conta com vantagens comparativas em técnicas de plantio e na adaptação de plantas ao solo, que poderão gerar incentivos à sofisticação das cadeias produtivas. A transição energética e a descarbonização também oferecem oportunidades que podem atrair investimentos e transformar a economia brasileira. O pior que pode acontecer é teses como a de Zeihan servirem de pretexto para agendas protecionistas que, com base em slogans como “reindustrialização”, acabem apenas significando improdutividade e perda de eficiência. Assim o pessimismo poderia se tornar realidade.

Economia global deve ter pouso suave, mas risco político cresce

Valor Econômico

O cenário externo não deve trazer constrangimentos à política econômica doméstica

As economias desenvolvidas e emergentes passaram pelo teste da mais forte elevação das taxas de juros em 40 anos e em 2024 vão desacelerar gradualmente, embora deixando para trás a temida perspectiva de recessão. Os riscos econômicos diminuíram depois que o Federal Reserve, o banco central americano, indicou que seus membros poderão fazer bons cortes na taxa (três) no ano, espalhando um otimismo que fez os preços dos ativos disparar na virada do ano. Mesmo com juros altos, as bolsas americanas fecharam o ano perto do recorde, e a brasileira, com pontuação recorde. Os riscos políticos, no entanto, estão em alta e podem alterar o cenário econômico.

O maior ataque de mísseis da Rússia sobre a Ucrânia, no dia 29 de dezembro, após o fracasso da contraofensiva ucraniana no outono, é uma dolorosa lembrança de que a guerra em solo europeu está longe de acabar, assim como os estragos que ela é capaz de provocar em dois dos maiores fornecedores de trigo e fertilizantes do mundo. Não há prazo para acabar o conflito que envolve Israel e o grupo terrorista Hamas, e que ameaça ultrapassar as fronteiras de Israel e territórios palestinos. Ataques dos rebeldes huties a petroleiros na rota do óleo no estreito de Bab-El-Mandeb, no sul do Mar Vermelho, elevaram as cotações do petróleo. Os dois conflitos podem reacender a fogueira dos preços da energia, uma das principais causas de alta da inflação global.

Eleições em Taiwan e declarações reiteradas de Xi Jinping, o presidente da China, de que a ilha “certamente” será unificada com o continente, sob seu comando, ilustram outro foco geopolítico de potenciais problemas. Há um afastamento que parece sem volta entre as duas maiores economias do mundo, a da China e a dos EUA, que tende a redesenhar o mapa da produção mundial. O conflito entre os dois países - e não só entre eles - pode se intensificar caso Donald Trump vença as eleições presidenciais americanas em novembro.

Trump inaugurou o cerco tarifário à China e ameaça dobrar a dose, inquietando não apenas Pequim mas a Europa, também vítima de restrições da política do republicano em seu primeiro mandato. A batalha judicial contra Trump começou bem antes, com os Estados do Maine e do Colorado proibindo sua participação nas primárias por ter encabeçado uma insurreição contra as instituições em 6 de janeiro de 2021. Há mais ações no mesmo sentido espalhadas pelo país, assim como as que Trump tem de enfrentar por seus malfeitos, envolvendo desde fraudes fiscais, como falsificar registros comerciais, a manuseio irregular de documentos confidenciais do governo americano.

O ciclo de aperto monetário está perto do fim, com a queda significativa da inflação ao redor do globo. Depois de atingir mais de 10% um ano antes, o índice de preços anual na zona do euro variou 2,4% em novembro, não muito distante do alvo do BCE (perto mas abaixo de 2%). Pesquisa do Financial Times com 48 economistas aponta que os juros na região começarão a cair no segundo trimestre. No mesmo mês, a inflação cheia nos Estados Unidos foi de 3,1%, com previsão de recuo dos juros a partir de abril.

O prognóstico para 2024, no caso dos EUA, é de desaceleração de 2,4% para 1,5%, e, no caso do bloco do euro, ligeira aceleração, para modesto 0,9% (ante 0,6% em 2023). O desemprego está no menor nível em décadas nos dois lados do Atlântico. A preocupação maior é com a China, que pode perder fôlego e avançar menos que os 4,7% previstos pela OCDE caso não consiga razoavelmente equacionar os enormes problemas de seu setor imobiliário.

A economia global deve crescer 2,7% no novo ano, a menor taxa desde a crise financeira de 2008, exceto o ano da pandemia. Há riscos para esse cenário relativamente positivo. O Fed teme que a inflação não ceda mais com força a partir de agora, o que o obrigaria a manter juros ainda restritivos por mais tempo, impondo ritmo menor ao crescimento. Em menor grau, essa é a dúvida de parte do board do BCE. Analistas privados veem chances de que mudanças em fatores estruturais, como o rompimento das cadeias produtivas, elevem os preços na nova configuração daí resultante. Os salários estão crescendo na Europa e nos EUA em nível incompatível com a inflação na meta. Não foram causa da inflação, mas podem evitar que ela se reduza com mais ímpeto nos próximos meses. Saltos no preço da energia por motivos geopolíticos podem inverter para cima a curva inflacionária. O FMI teme uma crise de endividamento nos países menos desenvolvidos.

O cenário externo não deve trazer constrangimentos à política econômica doméstica. A previsão é de que o PIB desacelere para 1,5%, desta vez sem grandes perdas no emprego e na renda. A inflação prevista para o ano, de 3,9% segundo o Focus e 3,5% pelo BC, ainda terá de cair mais para que o ritmo de corte de juros se acelere. A política fiscal é um ponto fora da curva em um ambiente benigno, mas por si só não é suficiente para causar piora significativa da economia. Buscar o menor déficit possível é a melhor forma de o governo aproveitar a janela de tranquilidade aberta pelo cenário global por alguns meses.

Agenda limitada

Folha de S. Paulo

Lula divide protagonismo com Congresso; acordos deveriam mirar equilíbrio fiscal

Se Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teve o mérito inegável de restaurar a normalidade das relações institucionais e políticas entre os Poderes republicanos, a rotina de governo mostra que o Palácio do Planalto mantém capacidade bastante limitada de ditar a agenda nacional.

Em seu terceiro mandato presidencial, Lula experimenta dificuldades outrora desconhecidas para angariar apoios entre partidos e parlamentares para suas iniciativas —o que, em não poucas ocasiões, tem sido positivo para o país.

Tomem-se por exemplos as tentativas frustradas de fazer avançar uma legislação apressada contra fake news, com riscos para a liberdade de expressão, e de promover por decreto retrocessos estatistas no marco legal do saneamento.

O protagonismo do Congresso também tem consequências deletérias, entretanto. Entre elas destaca-se a ampliação desmedida de emendas de deputados e senadores ao Orçamento, sem transparência nem análise de prioridade. Lula não conseguiu, se é que tentou, cumprir a promessa de campanha de moralizar a prática.

Vetos presidenciais derrubados e medidas provisórias não aprovadas pelo Congresso, eventos raríssimos até uma década atrás, tornaram-se usuais em Brasília.

Apenas em 14 de dezembro, os parlamentares reverteram total ou parcialmente 13 vetos de Lula a textos por eles votados, que incluíam temas tão importantes quanto o marco temporal para a demarcação das terras indígenas e a desoneração das folhas de pagamento de diversos setores empresariais.

Quanto a MPs, levantamento do site Poder360 apontou que, de 48 editadas, apenas 9 acabaram aprovadas pela Câmara e pelo Senado até o final de 2023 —em grande parte devido a uma disputa entre as duas Casas legislativas em torno da tramitação das medidas.

Lula acerta ao buscar a negociação em vez do confronto com o Congresso e seus líderes. Seu partido, não. Em documento recente, o PT se queixa que o centrão dificulta a "agenda política vitoriosa na eleição presidencial".

Que os petistas pressionem por seu ideário, compreende-se. O mundo político sabe, porém, que a vitória do presidente, por margem mínima, não teria ocorrido sem o apoio de setores moderados que rejeitaram Jair Bolsonaro (PL).

Com o protagonismo mais compartilhado entre Executivo e Legislativo foi viabilizado o maior avanço do ano passado —a aprovação da reforma tributária. Falta fazer valer esse entendimento, porém, na busca do reequilíbrio entre as receitas e as despesas públicas.

Tiro no escuro

Folha de S. Paulo

Sem Bolsonaro, corrida armamentista reflui, mas efeitos tendem a perdurar

"Eu quero que todo cidadão de bem possua sua arma de fogo", pregava Jair Bolsonaro (PL). Deixada para trás a temerária orientação ideológica de estimular e facilitar o acesso dos brasileiros a armamentos, inclusive de grosso calibre, os números mostram mudança relevante sob Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Levantamento da Folha aponta que novos registros de posse de arma de fogo no país despencaram 74%. Foram 23,5 mil solicitações de janeiro a novembro; no mesmo período, em 2022, eram 91,7 mil. Se hoje, em média, são 71 novas regularizações diárias, no governo anterior contabilizavam-se 275.

Sob Bolsonaro, o número desses artefatos nas mãos de cidadãos comuns mais que dobrou no quadriênio 2019-22 (116%). Por consequência, a compra de munições explodiu (159%). Os efeitos foram nefastos: queda nas apreensões pelas forças de segurança (13,6%) e evidências de desvios de armas legais para o crime organizado.

A permissividade armamentista sofreu o primeiro baque em setembro de 2022, quando o Supremo Tribunal Federal suspendeu decretos do ex-presidente que flexibilizavam posse, porte (que garante o direito de circular com a arma) e quantidade de munições.

Naquele ano, acredita-se ainda que houve uma corrida pela compra de armas diante da possibilidade de mudança de governo.

Ao assumir a Presidência, Lula estabeleceu a redução do número de armas e munições; retomou a diretriz que obriga a comprovação de efetiva necessidade; e determinou a distinção de calibres entre civis e órgãos de segurança pública.

O tiro bolsonarista, entretanto, ainda está longe de sair pela culatra. Levantamento do Instituto Sou da Paz estima que o total de armas nas mãos de civis somava cerca de 3 milhões até 2022. Em 2018, antes do ex-mandatário assumir, havia pouco mais de 1,3 milhão.

A argumentação em favor daquela política juntava defesa pessoal e familiar, de propriedade —o que faz sentido em certas situações no âmbito rural— e, nos momentos mais delirantes, contra abusos autoritários de governos.

A realidade empírica, contudo, demonstra alentado risco de acidentes por despreparo ou uso inadequado; em conflitos interpessoais, como brigas de trânsito, de vizinhos ou familiares; e a possibilidade de cair em mãos erradas, sejam de crianças ou criminosos.

Armas duram décadas. Até hoje apreendem-se revólveres e pistolas fabricados há 40 ou 50 anos. Estancou-se a sangria, mas as sequelas das ações inconsequentes ainda estão por ser conhecidas.

Os paradoxos do Congresso

O Estado de S. Paulo

Congresso começou 2023 atacado por golpistas e terminou aprovando a reforma tributária; nessa epopeia, mostrou que ainda é a melhor representação do País, para o bem e para o mal

O Congresso iniciou 2023 sob odioso ataque. Após ser reduzido a escombros pela malta bolsonarista que, inconformada com a posse do presidente Lula da Silva, tentou um golpe de Estado a partir da destruição das sedes dos Poderes no infame 8 de Janeiro, conseguiu se reerguer, física e institucionalmente, e se firmou como uma das principais forças da resistência cívica que assegurou a vigência do Estado Democrático de Direito no País.

A resiliência da maioria dos parlamentares foi notável. O mesmo Congresso submetido a um assalto inaudito chegou ao final de 2023 notabilizado por um feito histórico: a promulgação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que reforma o cavernoso sistema tributário brasileiro. Trata-se de uma conquista civilizatória só comparável, em tempos recentes, à criação do Sistema Único de Saúde e à recuperação do valor da moeda, com a implementação do Plano Real.

O Congresso também chegou ao recesso de fim de ano tendo aprovado, após muitas idas e vindas, duas leis fundamentais: a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). Ou seja, tudo segue rigorosamente normal naquela porção da Praça dos Três Poderes.

Nesse pequeno arco temporal, mas com divisas tão diametralmente opostas como uma tentativa de golpe de Estado e a promulgação de uma PEC ansiada pela sociedade havia mais de três décadas, é evidente que a atuação do Congresso foi marcada por erros e acertos. Porém, o que ficará para a história do Poder Legislativo decerto é a maturidade institucional demonstrada tanto pela Câmara como pelo Senado para lidar com os desafios nada triviais de 2023.

Num ano que começou tenso, para dizer o mínimo, ainda marcado por rusgas políticas paralisantes, os parlamentares conseguiram aprovar, além da citada PEC da reforma tributária, outras matérias igualmente fundamentais para o País, como, por exemplo, o novo arcabouço fiscal. Na prática, o ano legislativo teve início já nos estertores de 2022, com a aprovação da chamada PEC da Transição, que garantiu ao novo governo as condições materiais mínimas para administrar o País. De lá para cá, outros projetos de interesse nacional nas searas social, política e econômica avançaram no Congresso.

Mas, como não há espaço para ingenuidade nesta página, é forçoso dizer com todas as letras que 2023 também será marcado como um dos períodos em que o Congresso mais deteriorou a ordem institucional inaugurada pela Constituição de 1988. Com um apetite cada vez mais voraz, o Legislativo segue acumulando um poder que nem remotamente foi imaginado pelos constituintes originários – particularmente por meio da apropriação de fatias cada vez mais robustas do Orçamento.

Recordes nada honrosos foram batidos pelas duas Casas Legislativas em 2023. Fala-se em cerca de R$ 50 bilhões reservados para emendas parlamentares de todos os tipos em 2024, algumas de pagamento impositivo. Os fundos públicos que enchem os cofres dos partidos políticos, em especial o chamado fundo eleitoral, atingiram patamares indecentes. Ao longo de 2023, restou evidente a contradição entre um Congresso que foi firme ao repelir uma tentativa de golpe de Estado, mas, ao mesmo tempo, seguiu degradando a democracia representativa ao criar artimanhas cada vez mais engenhosas para escapar dos controles republicanos sobre o manejo do Orçamento.

A um só tempo, essas manobras urdidas nos salões de Brasília para aumentar o naco do Orçamento sob controle exclusivo dos deputados e senadores corroem a representatividade democrática, na medida em que favorecem a manutenção do poder político nas mãos dos atuais mandatários pela via do poder financeiro, e quebram o equilíbrio entre os Poderes exigido pela Lei Maior. Não há mais que se falar em presidencialismo de coalizão no Brasil.

Assim, o Congresso mostrou no atribulado ano de 2023 que ainda é a melhor representação do País, no que tem de pior, mas também no que tem de melhor. Esses paradoxos são, afinal, a cara da sociedade brasileira.

Mudanças climáticas e a demonização do agro

O Estado de S. Paulo

Como todo setor, o agro tem muitos problemas, mas, como bem salientou Roberto Azevêdo, ver a produção de alimentos como algoz internacional das emissões de carbono só pode ser má-fé

Ex-presidente da Organização Mundial do Comércio, o embaixador Roberto Azevêdo concedeu entrevista recente ao Estadão em que oferece lições cristalinas para quem ainda enxerga o agronegócio como o dragão da maldade das mudanças climáticas. Assumindo a defesa do agronegócio brasileiro na COP-28, Azevêdo mirou na distorção do debate gerado pelas pressões internacionais, sobretudo europeias, sobre a produção do campo e os sistemas alimentares, e as exigências de compradores para estabelecer conformidade de produtos com padrões ambientais. Deve-se prestar atenção a seus argumentos, relevantes não só para rebater as reticências internacionais, mas, sobretudo, para desfazer mitos aqui mesmo no Brasil, onde imperam ideologias simplificadoras, desinformação e visões rupestres sobre o campo.

Como lembrou o diplomata, o agronegócio é o primeiro a ser afetado pelas mudanças climáticas: “Safras que eram viáveis antes agora não são mais. Modelos de negócios podem mudar drasticamente a depender do paralelo (geográfico) em que você está situado. Os regimes de chuvas mudaram”. O impacto é brutal, e o setor não só está perfeitamente consciente dessa realidade, conforme sublinhou Azevêdo, como também demonstra capacidade de continuar plantando, produzindo e sequestrando carbono ao mesmo tempo, sem derrubar árvores. Se é verdade que o debate internacional relacionado às mudanças climáticas está legitimamente centrado no controle das emissões de carbono, também é verdade que precisamos escolher e qualificar os inimigos no enfrentamento dessa agenda. Se é verdade que reduzir ou zerar os níveis de desmatamento é o melhor remédio para a redução das emissões, também é verdade que nem todo desmatamento tem o agronegócio como seu agente.

Enquanto as cassandras ideológicas gritam, não é somente o agronegócio que perde: é o Brasil. Não é demais lembrar que o setor responde por 24% do PIB brasileiro, e seu negócio, ao contrário do que pensa boa parte dos exércitos ambientalistas, não é desmatar, e sim transitar de forma decidida – e decisiva – para a agricultura de pegada negativa de carbono. A paisagem no campo e o bolso dos produtores rurais são intensamente afetados pelas mudanças climáticas. Estiagens atípicas, plantios prejudicados pelo excesso de chuvas no Sul, secas severas no Nordeste e até mesmo no Norte, região conhecida pela abundância de água, são todos fenômenos extremos prejudiciais aos negócios, bem como as práticas que contaminam a conservação e a reabilitação dos sistemas alimentares e agrícolas.

Enquanto os países europeus usam a propaganda negativa sobre o agronegócio brasileiro para justificar as barreiras protecionistas, Roberto Azevêdo sugeriu ao Brasil agir com sabedoria, reunindo países que enfrentam problemas similares para que os custos da transição verde não sejam transferidos para as nações mais pobres – evitando, é claro, relacionar essa iniciativa à patacoada lulopetista do tal “Sul Global”. Primeiro, é preciso que o Brasil tenha unidade de propósitos. O governo tem nada menos do que 17 Ministérios que, direta ou indiretamente, se ocupam de questões ambientais, e no entanto sua soma produz quase sempre apenas falatório e fragmentação, reduzindo consideravelmente nossa musculatura comercial e diplomática. Noves fora a defesa que a diplomacia nacional faz dos negócios do Brasil nos fóruns globais, o resultado geral é basicamente a demonização do aronegócio.

A língua presidencial não ajuda, como ficou evidente na recente declaração de Lula da Silva sobre raposas e galinheiros na pauta do marco temporal para demarcação de terras indígenas. Também não ajuda atacar o agronegócio na prova do Enem. São dois exemplos, entre tantos, de uma mesma visão anacrônica sobre o agronegócio, o que só ajuda a consolidar a situação “surreal”, nas palavras de Roberto Azevêdo, em que “o que era para ser o controle das emissões de carbono de repente agora é controlar os sistemas alimentares, uma coisa inacreditável”. Como bem disse o diplomata, “uma narrativa que ignora o sistema energético e a queima de combustível fóssil e o foco vem para o sistema alimentar só pode ser mal-intencionada”.

A conta do mercado livre

O Estado de S. Paulo

Consumidores residenciais de energia pagarão pela abertura mal planejada do mercado

O ano de 2024 marcará uma nova etapa para o setor elétrico brasileiro, com a abertura do mercado livre de energia para consumidores de média tensão. Nesse regime, o usuário contrata o serviço de eletricidade do fornecedor que escolher, sem o vínculo obrigatório com uma distribuidora de energia. Até 2023, apenas empresas do grupo de alta tensão, com contas acima de R$ 50 mil, podiam integrar esse sistema; a partir de 2024, o mercado será aberto para quem consome o equivalente a R$ 10 mil ou mais, como shoppings e supermercados.

Projeções da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) indicam que um grupo de mais de 70 mil unidades consumidoras estará apto a migrar para o mercado livre, fechando contratos com comercializadoras de energia que têm oferecido descontos de até 40% em relação à tarifa cobrada pelas distribuidoras, como mostrou reportagem do Estadão. Trata-se de mais um passo na direção do barateamento do consumo de energia para as empresas.

O problema ficou para quem paga os encargos do mercado cativo, também chamado de regulado. Com mais essa fase de abertura do mercado livre, somente consumidores residenciais e microempresas permanecerão atrelados às distribuidoras de energia. E, como se sabe, mais de 40% do que é pago na conta de luz nada tem a ver com o consumo de energia. São impostos arrecadados pelo governo e encargos que servem para custear subsídios distribuídos pelo governo.

Cada consumidor que migra para o mercado livre deixa mais alta a conta dos encargos que serão divididos entre todos os usuários do mercado regulado. Como os encargos têm aumentado ano a ano, azar de quem sobrar para bancar o rateio. No ano passado, os subsídios para o setor elétrico foram de cerca de R$ 33 bilhões. Para este ano, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) propôs um orçamento de R$ 37,2 bilhões apenas para a Conta de Desenvolvimento Energético.

Uma consulta no extrato da conta de luz mostra que a energia é apenas um detalhe. A Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TSUD) – que, como a Tarifa de Energia (TE), também já embute os impostos – carrega também o fundo com os subsídios que custeiam o barateamento da energia solar e para consumidores de baixa renda, o combustível das térmicas, os serviços de fiscalização da Aneel e setores econômicos considerados estratégicos.

Se o mercado livre fosse aberto a todos, os consumidores seriam beneficiados de maneira semelhante ao que ocorreu na portabilidade do serviço de telefonia. Poder escolher o fornecedor é direito básico de quem paga por um serviço. Mas, como de praxe, o poder público não planejou de forma competente a transição do mercado cativo para o livre. Pior, não parece disposto a renunciar ao dinheiro coletado de maneira um tanto camuflada nas tarifas de energia.

O consumidor que compra energia de comercializadoras se livra dos encargos de transmissão e distribuição. Já a base mais estreita do mercado regulado torna mais pesada a conta. É o que os especialistas chamam de “espiral da morte”. Não é difícil imaginar quem paga o funeral.

Saúde da Família terá mais equipes

Correio Braziliense

Programa Mais Médicos é retomado com mais profissionais e as regiões com mais fragilidade social terão prioridade

Entre os muitos desafios do governo federal em 2023, reestruturar os serviços públicos de saúde se destacou entre as prioridades. Além do desmonte de programas voltados às camadas carentes da sociedade, o setor foi vítima do negacionismo, das fake news e da inabilidade dos que administraram a pasta.

O primeiro passo foi recompor o programa Mais Médicos e garantir assistência às comunidades mais vulneráveis. Com o fim da parceria com o governo cubando, em 2019, mais de 5 mil equipes de saúde ficaram desfalcadas de médicos. Atuavam com um enfermeiro e um agente de saúde. No primeiro chamamento, 34 mil profissionais inscreveram-se para o Mais Médicos. "Um recorde", segundo Felipe Proenço, secretário-adjunto de Atenção Primária do Ministério da Saúde.

Para recuperar a formação do programa original e assegurar a presença de médicos nas equipes de Saúde da Família, necessárias nas periferias das cidades e no meio rural, o governo federal incrementou os salários. Facilitou a contratação de profissionais formados no exterior e criou um programa de formação, em nível de especialização, de médicos da Família e da Comunidade.

O objetivo de recuperar o programa foi alcançado. Hoje, 82% dos municípios brasileiros estão contemplados com equipes de Saúde da Família e 28 mil profissionais participam do programa. A Região Norte tem a maior concentração de grupos de cuidados com a saúde. As mudanças não param aí. O novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) previu R$ 31 bilhões para a saúde. Desse total, R$ 7 bilhões serão destinados à construção de 3 mil unidades básicas e à oferta de 260 unidades odontológicas móveis. Uma quantidade inferior à demanda de 3 mil municípios que pediram 5,6 mil unidades de saúde. Para este ano serão selecionadas propostas para a construção de 1, 8 mil unidades em lugares com maior vulnerabilidade social.

O volume de recursos financeiros para a saúde poderia ser maior, considerando a enorme dificuldade que as unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) enfrentam para garantir um atendimento digno aos cidadãos. As reivindicações dos municípios são um forte indicador de que a expansão do sistema é necessária. A população está cansada e não mede críticas, por ter que passar dias em filas, ter exames adiados ou não conseguir uma internação ou uma medicação de elevado custo, nas farmácias populares. Os hospitais, por sua vez, ressentem-se com a falta de um número adequado de profissionais para dar aos cidadãos o que lhes é de direito constitucionalmente. Na votação do Orçamento da União, o Congresso cortou R$ 6,3 bilhões do PAC para inflar o Fundo Eleitoral (R$ 4,9 bilhões), considerando o pleito deste ano. Impõe-se que a necessidade da sociedade prevaleça acima dos interesses políticos de grupos. 

 

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