Desmatamento no Cerrado impõe dever aos estados
O Globo
Engajamento de governadores é crucial para
sociedade saber o que é legal e ilegal — e deter a devastação
A área desmatada no Cerrado aumentou 3% de
agosto de 2022 a julho de 2023, segundo dados do Inpe. Em anos anteriores, o
aumento foi maior (25% em 2022 e 2020, 8% em 2021). Seria um erro, porém, se
estender em comemorações. Os 11 mil km2 desmatados foram a maior extensão para
o período desde 2015. A situação lembra a vítima de enchente que celebra que a
chuva amainou com água até a cintura. De 2003 a 2022, uma área equivalente ao
estado de São Paulo virou pasto ou lavoura.
A perda da vegetação nativa é o resultado previsível da expansão da atividade econômica. Hoje o Cerrado responde pela maior fatia da agropecuária brasileira (54% da produção agrícola e 44% do rebanho bovino). Com tecnologia e empreendedorismo, tornou-se referência mundial de produtividade e um dínamo para a economia. O debate, portanto, não deve opor a produção a qualquer preço à conservação ambiental. O desafio é a coexistência. A cada ano fica mais óbvio que o ritmo atual de desmatamento, legal ou ilegal, é insustentável. A estação seca e as temperaturas aumentam, e a água escasseia.
No final de novembro, o governo federal
anunciou um plano de ação para prevenir e controlar desmatamento e queimadas
até 2027. Chamado PPCerrado, ele tem como objetivo eliminar a devastação ilegal
até 2030 e pôr de pé um sistema de compensação para o desmatamento legal. Para
que não vire letra morta, a sociedade precisará acompanhar de perto a
implementação. A mesma atenção deverá ser dirigida aos governos estaduais, até
o momento omissos. O foco é a região conhecida como Matopiba (entre Maranhão,
Tocantins, Piauí e Bahia), responsável por 75% do desmatamento.
O Código Florestal estabelece que todo imóvel
rural mantenha, no mínimo, 20% da área com vegetação nativa (em áreas de
transição com a Amazônia, o limite é 35%). Não existe, contudo, base de dados
consolidada sobre o cumprimento da lei, apenas a autodeclaração dos
proprietários no Cadastro Ambiental Rural. Os estados são os principais
responsáveis por emitir documentos para o desmatamento. O Cerrado é, segundo
Tasso Azevedo, coordenador da rede MapBiomas, o bioma com mais autorizações
legais em proporção à área desmatada, mas falta fiscalização. Entre 2019 e
2022, 46% do desmate na Bahia foi permitido. No mesmo período, menos de 5% foi
alvo de alguma inspeção estadual.
Entre os dez municípios com maior extensão
devastada no ano encerrado em julho, quatro são baianos. São Desidério, em
primeiro lugar, esteve na terceira colocação em 2022 e 2021 e na quarta um ano
antes. Formosa do Rio Preto, 180 quilômetros ao norte, também na Bahia, era
campeão desde 2001. Os prefeitos dessas cidades e o governador Jerônimo
Rodrigues (PT) devem esclarecimentos sobre o que acontece em cada propriedade
rural. O mesmo vale para Carlos Brandão (PSB), governador do Maranhão, estado
onde o desmatamento é o maior desde 2010. Rodrigues e os governadores do
Tocantins, Wanderlei Barbosa (Republicanos), e do Piauí, Rafael Fonteles (PT),
foram à COP 28, em Dubai, defender o crescimento sustentável. Faltou explicar
por que a destruição da vegetação do Cerrado tem crescido em todos esses
estados.
Sem engajamento dos governadores, a sociedade
não saberá o que é legal ou ilegal — e o desmatamento do Cerrado não será
contido.
Teses pessimistas sobre o futuro da economia
não justificam protecionismo
O Globo
Brasil dispõe de recursos para enfrentar
envelhecimento populacional e desaceleração chinesa
Ao provocar um choque nas cadeias globais de
suprimentos e despertar a inflação que parecia sob controle, a pandemia
recolocou em circulação teses econômicas sobre o futuro do planeta eivadas de
pessimismo. Uma delas vem sendo difundida pelo estrategista geopolítico Peter
Zeihan, autor do best-seller “O fim do mundo está apenas começando — mapeando o
colapso da globalização”. Ele prevê, com base em argumentos demográficos e
financeiros, um retrocesso sem retorno na globalização que garantiu o
crescimento econômico do mundo nas últimas décadas.
Zeihan argumenta que, do início dos anos 2000
até 2010, a geração baby boomer, nascida no Pós-Guerra, tinha entre 55 e 65
anos. Sua poupança estava no auge, havia grande disponibilidade de capital a
custo baixo, o menor de todos os tempos. Além disso, a emergência de um novo
mercado consumidor, sobretudo asiático, garantiu demanda crescente para toda
sorte de produto — e disso também se beneficiou o Brasil. “Mas essa situação
foi um breve momento na História e está chegando ao fim”, afirmou Zeihan em entrevista
ao site Brazil Journal. O fim, segundo ele, ocorrerá em meio século.
O mundo, diz Zeihan, está envelhecendo.
Famílias são menores, casais têm menos filhos, tendência que se manterá nas
próximas gerações. Com menos gente para consumir, haverá desequilíbrio entre
oferta e demanda. No centro da transformação, na visão de Zeihan, estará a
China. “Há relações comerciais resultantes da ascensão chinesa, mas agora os
chineses descobriram que simplesmente não têm filhos suficientes para manter um
sistema orientado para o consumo”, diz. Com o resto do mundo incapaz de
absorver o desequilíbrio, a economia global entrará em crise. Por decorrência,
também a brasileira, que tem na China seu maior mercado externo.
Claro que as hipóteses de Zeihan são
questionáveis. O principal interessado em que nada disso ocorra são os Estados
Unidos, cujo déficit orçamentário é em parte financiado pela China, forte
compradora de títulos do Tesouro americano. Mesmo tentando desacoplar sua
economia da chinesa, os americanos têm apostado nos avanços de produtividade
trazidos pela automação e pela inteligência artificial para garantir uma nova
era de crescimento.
O Brasil, diz Zeihan, também precisa dispor
de meios para se defender desse hipotético colapso chinês. Ele aconselha
agregar mais valor às exportações. Em especial na produção de alimentos, o país
conta com vantagens comparativas em técnicas de plantio e na adaptação de
plantas ao solo, que poderão gerar incentivos à sofisticação das cadeias
produtivas. A transição energética e a descarbonização também oferecem
oportunidades que podem atrair investimentos e transformar a economia
brasileira. O pior que pode acontecer é teses como a de Zeihan servirem de
pretexto para agendas protecionistas que, com base em slogans como
“reindustrialização”, acabem apenas significando improdutividade e perda de
eficiência. Assim o pessimismo poderia se tornar realidade.
Economia global deve ter pouso suave, mas
risco político cresce
Valor Econômico
O cenário externo não deve trazer
constrangimentos à política econômica doméstica
As economias desenvolvidas e emergentes
passaram pelo teste da mais forte elevação das taxas de juros em 40 anos e em
2024 vão desacelerar gradualmente, embora deixando para trás a temida
perspectiva de recessão. Os riscos econômicos diminuíram depois que o Federal
Reserve, o banco central americano, indicou que seus membros poderão fazer bons
cortes na taxa (três) no ano, espalhando um otimismo que fez os preços dos
ativos disparar na virada do ano. Mesmo com juros altos, as bolsas americanas
fecharam o ano perto do recorde, e a brasileira, com pontuação recorde. Os
riscos políticos, no entanto, estão em alta e podem alterar o cenário
econômico.
O maior ataque de mísseis da Rússia sobre a
Ucrânia, no dia 29 de dezembro, após o fracasso da contraofensiva ucraniana no
outono, é uma dolorosa lembrança de que a guerra em solo europeu está longe de
acabar, assim como os estragos que ela é capaz de provocar em dois dos maiores
fornecedores de trigo e fertilizantes do mundo. Não há prazo para acabar o
conflito que envolve Israel e o grupo terrorista Hamas, e que ameaça
ultrapassar as fronteiras de Israel e territórios palestinos. Ataques dos
rebeldes huties a petroleiros na rota do óleo no estreito de Bab-El-Mandeb, no
sul do Mar Vermelho, elevaram as cotações do petróleo. Os dois conflitos podem
reacender a fogueira dos preços da energia, uma das principais causas de alta
da inflação global.
Eleições em Taiwan e declarações reiteradas
de Xi Jinping, o presidente da China, de que a ilha “certamente” será unificada
com o continente, sob seu comando, ilustram outro foco geopolítico de
potenciais problemas. Há um afastamento que parece sem volta entre as duas
maiores economias do mundo, a da China e a dos EUA, que tende a redesenhar o
mapa da produção mundial. O conflito entre os dois países - e não só entre eles
- pode se intensificar caso Donald Trump vença as eleições presidenciais
americanas em novembro.
Trump inaugurou o cerco tarifário à China e
ameaça dobrar a dose, inquietando não apenas Pequim mas a Europa, também vítima
de restrições da política do republicano em seu primeiro mandato. A batalha
judicial contra Trump começou bem antes, com os Estados do Maine e do Colorado
proibindo sua participação nas primárias por ter encabeçado uma insurreição
contra as instituições em 6 de janeiro de 2021. Há mais ações no mesmo sentido
espalhadas pelo país, assim como as que Trump tem de enfrentar por seus malfeitos,
envolvendo desde fraudes fiscais, como falsificar registros comerciais, a
manuseio irregular de documentos confidenciais do governo americano.
O ciclo de aperto monetário está perto do
fim, com a queda significativa da inflação ao redor do globo. Depois de atingir
mais de 10% um ano antes, o índice de preços anual na zona do euro variou 2,4%
em novembro, não muito distante do alvo do BCE (perto mas abaixo de 2%).
Pesquisa do Financial Times com 48 economistas aponta que os juros na região
começarão a cair no segundo trimestre. No mesmo mês, a inflação cheia nos
Estados Unidos foi de 3,1%, com previsão de recuo dos juros a partir de abril.
O prognóstico para 2024, no caso dos EUA, é
de desaceleração de 2,4% para 1,5%, e, no caso do bloco do euro, ligeira
aceleração, para modesto 0,9% (ante 0,6% em 2023). O desemprego está no menor
nível em décadas nos dois lados do Atlântico. A preocupação maior é com a
China, que pode perder fôlego e avançar menos que os 4,7% previstos pela OCDE
caso não consiga razoavelmente equacionar os enormes problemas de seu setor
imobiliário.
A economia global deve crescer 2,7% no novo
ano, a menor taxa desde a crise financeira de 2008, exceto o ano da pandemia.
Há riscos para esse cenário relativamente positivo. O Fed teme que a inflação
não ceda mais com força a partir de agora, o que o obrigaria a manter juros
ainda restritivos por mais tempo, impondo ritmo menor ao crescimento. Em menor
grau, essa é a dúvida de parte do board do BCE. Analistas privados veem chances
de que mudanças em fatores estruturais, como o rompimento das cadeias produtivas,
elevem os preços na nova configuração daí resultante. Os salários estão
crescendo na Europa e nos EUA em nível incompatível com a inflação na meta. Não
foram causa da inflação, mas podem evitar que ela se reduza com mais ímpeto nos
próximos meses. Saltos no preço da energia por motivos geopolíticos podem
inverter para cima a curva inflacionária. O FMI teme uma crise de endividamento
nos países menos desenvolvidos.
O cenário externo não deve trazer constrangimentos à política econômica doméstica. A previsão é de que o PIB desacelere para 1,5%, desta vez sem grandes perdas no emprego e na renda. A inflação prevista para o ano, de 3,9% segundo o Focus e 3,5% pelo BC, ainda terá de cair mais para que o ritmo de corte de juros se acelere. A política fiscal é um ponto fora da curva em um ambiente benigno, mas por si só não é suficiente para causar piora significativa da economia. Buscar o menor déficit possível é a melhor forma de o governo aproveitar a janela de tranquilidade aberta pelo cenário global por alguns meses.
Agenda limitada
Folha de S. Paulo
Lula divide protagonismo com Congresso;
acordos deveriam mirar equilíbrio fiscal
Se Luiz Inácio Lula da Silva (PT) teve o
mérito inegável de restaurar a normalidade das relações institucionais e
políticas entre os Poderes republicanos, a rotina de governo mostra que o
Palácio do Planalto mantém capacidade bastante limitada de ditar a agenda
nacional.
Em seu terceiro mandato presidencial, Lula
experimenta dificuldades outrora desconhecidas para angariar apoios entre
partidos e parlamentares para suas iniciativas —o que, em não poucas ocasiões,
tem sido positivo para o país.
Tomem-se por exemplos as tentativas
frustradas de fazer avançar uma legislação apressada contra fake news, com
riscos para a liberdade de expressão, e de promover por decreto retrocessos
estatistas no marco legal do saneamento.
O protagonismo do Congresso também tem
consequências deletérias, entretanto. Entre elas destaca-se a ampliação
desmedida de emendas de deputados e senadores ao Orçamento, sem transparência
nem análise de prioridade. Lula não conseguiu, se é que tentou, cumprir a
promessa de campanha de moralizar a prática.
Vetos presidenciais derrubados e medidas
provisórias não aprovadas pelo Congresso, eventos raríssimos até uma década
atrás, tornaram-se usuais em Brasília.
Apenas em 14 de dezembro, os parlamentares
reverteram total ou parcialmente 13 vetos de Lula a textos por eles votados,
que incluíam temas tão importantes quanto o marco temporal para a demarcação
das terras indígenas e a desoneração das folhas de pagamento de diversos
setores empresariais.
Quanto a MPs, levantamento do site Poder360
apontou que, de 48 editadas, apenas 9 acabaram aprovadas pela Câmara e pelo
Senado até o final de 2023 —em grande parte devido a uma disputa entre as duas
Casas legislativas em torno da tramitação das medidas.
Lula acerta ao buscar a negociação em vez do
confronto com o Congresso e seus líderes. Seu partido, não. Em documento
recente, o PT se queixa que o centrão dificulta a "agenda política
vitoriosa na eleição presidencial".
Que os petistas pressionem por seu ideário,
compreende-se. O mundo político sabe, porém, que a vitória do presidente, por
margem mínima, não teria ocorrido sem o apoio de setores moderados que
rejeitaram Jair Bolsonaro (PL).
Com o protagonismo mais compartilhado entre
Executivo e Legislativo foi viabilizado o maior avanço do ano passado —a
aprovação da reforma tributária. Falta fazer valer esse entendimento, porém, na
busca do reequilíbrio entre as receitas e as despesas públicas.
Tiro no escuro
Folha de S. Paulo
Sem Bolsonaro, corrida armamentista reflui,
mas efeitos tendem a perdurar
"Eu quero que todo cidadão de bem possua
sua arma de fogo", pregava Jair
Bolsonaro (PL). Deixada para trás a temerária orientação
ideológica de estimular e facilitar o acesso dos brasileiros a armamentos,
inclusive de grosso calibre, os números mostram mudança relevante sob Luiz
Inácio Lula da
Silva (PT).
Levantamento da Folha aponta
que novos
registros de posse de arma de fogo no país despencaram 74%. Foram
23,5 mil solicitações de janeiro a novembro; no mesmo período, em 2022, eram
91,7 mil. Se hoje, em média, são 71 novas regularizações diárias, no governo
anterior contabilizavam-se 275.
Sob Bolsonaro, o número desses artefatos nas
mãos de cidadãos comuns mais que
dobrou no quadriênio 2019-22 (116%). Por consequência, a compra
de munições explodiu (159%). Os efeitos foram nefastos: queda nas apreensões
pelas forças de segurança (13,6%) e evidências de desvios de armas legais
para o crime organizado.
A permissividade armamentista sofreu o
primeiro baque em setembro de 2022, quando o Supremo Tribunal Federal suspendeu
decretos do ex-presidente que flexibilizavam posse, porte (que garante o
direito de circular com a arma) e quantidade de munições.
Naquele ano, acredita-se ainda que houve uma
corrida pela compra de armas diante da possibilidade de mudança de governo.
Ao assumir a Presidência, Lula estabeleceu
a redução do
número de armas e munições; retomou a diretriz que obriga a
comprovação de efetiva necessidade; e determinou a distinção de calibres entre
civis e órgãos de segurança pública.
O tiro bolsonarista, entretanto, ainda está
longe de sair pela culatra. Levantamento do Instituto Sou da Paz estima que o
total de armas nas mãos de civis somava cerca de 3
milhões até 2022. Em 2018, antes do ex-mandatário assumir, havia
pouco mais de 1,3 milhão.
A argumentação em favor daquela política
juntava defesa pessoal e familiar, de propriedade —o que faz sentido em certas
situações no âmbito rural— e, nos momentos mais delirantes, contra abusos
autoritários de governos.
A realidade empírica, contudo, demonstra
alentado risco de acidentes por despreparo ou uso inadequado; em conflitos
interpessoais, como brigas de trânsito, de vizinhos ou familiares; e a
possibilidade de cair em mãos erradas, sejam de crianças ou criminosos.
Armas duram décadas. Até hoje apreendem-se revólveres e pistolas fabricados há 40 ou 50 anos. Estancou-se a sangria, mas as sequelas das ações inconsequentes ainda estão por ser conhecidas.
Os paradoxos do Congresso
O Estado de S. Paulo
Congresso começou 2023 atacado por golpistas
e terminou aprovando a reforma tributária; nessa epopeia, mostrou que ainda é a
melhor representação do País, para o bem e para o mal
O Congresso iniciou 2023 sob odioso ataque.
Após ser reduzido a escombros pela malta bolsonarista que, inconformada com a
posse do presidente Lula da Silva, tentou um golpe de Estado a partir da
destruição das sedes dos Poderes no infame 8 de Janeiro, conseguiu se reerguer,
física e institucionalmente, e se firmou como uma das principais forças da
resistência cívica que assegurou a vigência do Estado Democrático de Direito no
País.
A resiliência da maioria dos parlamentares
foi notável. O mesmo Congresso submetido a um assalto inaudito chegou ao final
de 2023 notabilizado por um feito histórico: a promulgação da Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) que reforma o cavernoso sistema tributário
brasileiro. Trata-se de uma conquista civilizatória só comparável, em tempos
recentes, à criação do Sistema Único de Saúde e à recuperação do valor da
moeda, com a implementação do Plano Real.
O Congresso também chegou ao recesso de fim
de ano tendo aprovado, após muitas idas e vindas, duas leis fundamentais: a Lei
de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). Ou seja,
tudo segue rigorosamente normal naquela porção da Praça dos Três Poderes.
Nesse pequeno arco temporal, mas com divisas
tão diametralmente opostas como uma tentativa de golpe de Estado e a
promulgação de uma PEC ansiada pela sociedade havia mais de três décadas, é
evidente que a atuação do Congresso foi marcada por erros e acertos. Porém, o
que ficará para a história do Poder Legislativo decerto é a maturidade
institucional demonstrada tanto pela Câmara como pelo Senado para lidar com os
desafios nada triviais de 2023.
Num ano que começou tenso, para dizer o
mínimo, ainda marcado por rusgas políticas paralisantes, os parlamentares
conseguiram aprovar, além da citada PEC da reforma tributária, outras matérias
igualmente fundamentais para o País, como, por exemplo, o novo arcabouço
fiscal. Na prática, o ano legislativo teve início já nos estertores de 2022,
com a aprovação da chamada PEC da Transição, que garantiu ao novo governo as
condições materiais mínimas para administrar o País. De lá para cá, outros
projetos de interesse nacional nas searas social, política e econômica
avançaram no Congresso.
Mas, como não há espaço para ingenuidade
nesta página, é forçoso dizer com todas as letras que 2023 também será marcado
como um dos períodos em que o Congresso mais deteriorou a ordem institucional
inaugurada pela Constituição de 1988. Com um apetite cada vez mais voraz, o
Legislativo segue acumulando um poder que nem remotamente foi imaginado pelos
constituintes originários – particularmente por meio da apropriação de fatias
cada vez mais robustas do Orçamento.
Recordes nada honrosos foram batidos pelas
duas Casas Legislativas em 2023. Fala-se em cerca de R$ 50 bilhões reservados
para emendas parlamentares de todos os tipos em 2024, algumas de pagamento
impositivo. Os fundos públicos que enchem os cofres dos partidos políticos, em
especial o chamado fundo eleitoral, atingiram patamares indecentes. Ao longo de
2023, restou evidente a contradição entre um Congresso que foi firme ao repelir
uma tentativa de golpe de Estado, mas, ao mesmo tempo, seguiu degradando a democracia
representativa ao criar artimanhas cada vez mais engenhosas para escapar dos
controles republicanos sobre o manejo do Orçamento.
A um só tempo, essas manobras urdidas nos
salões de Brasília para aumentar o naco do Orçamento sob controle exclusivo dos
deputados e senadores corroem a representatividade democrática, na medida em
que favorecem a manutenção do poder político nas mãos dos atuais mandatários
pela via do poder financeiro, e quebram o equilíbrio entre os Poderes exigido
pela Lei Maior. Não há mais que se falar em presidencialismo de coalizão no
Brasil.
Assim, o Congresso mostrou no atribulado ano
de 2023 que ainda é a melhor representação do País, no que tem de pior, mas
também no que tem de melhor. Esses paradoxos são, afinal, a cara da sociedade
brasileira.
Mudanças climáticas e a demonização do agro
O Estado de S. Paulo
Como todo setor, o agro tem muitos problemas,
mas, como bem salientou Roberto Azevêdo, ver a produção de alimentos como algoz
internacional das emissões de carbono só pode ser má-fé
Ex-presidente da Organização Mundial do
Comércio, o embaixador Roberto Azevêdo concedeu entrevista recente ao Estadão
em que oferece lições cristalinas para quem ainda enxerga o agronegócio como o
dragão da maldade das mudanças climáticas. Assumindo a defesa do agronegócio
brasileiro na COP-28, Azevêdo mirou na distorção do debate gerado pelas
pressões internacionais, sobretudo europeias, sobre a produção do campo e os
sistemas alimentares, e as exigências de compradores para estabelecer
conformidade de produtos com padrões ambientais. Deve-se prestar atenção a seus
argumentos, relevantes não só para rebater as reticências internacionais, mas,
sobretudo, para desfazer mitos aqui mesmo no Brasil, onde imperam ideologias
simplificadoras, desinformação e visões rupestres sobre o campo.
Como lembrou o diplomata, o agronegócio é o
primeiro a ser afetado pelas mudanças climáticas: “Safras que eram viáveis
antes agora não são mais. Modelos de negócios podem mudar drasticamente a
depender do paralelo (geográfico) em que você está situado. Os regimes de
chuvas mudaram”. O impacto é brutal, e o setor não só está perfeitamente
consciente dessa realidade, conforme sublinhou Azevêdo, como também demonstra
capacidade de continuar plantando, produzindo e sequestrando carbono ao mesmo
tempo, sem derrubar árvores. Se é verdade que o debate internacional
relacionado às mudanças climáticas está legitimamente centrado no controle das
emissões de carbono, também é verdade que precisamos escolher e qualificar os
inimigos no enfrentamento dessa agenda. Se é verdade que reduzir ou zerar os
níveis de desmatamento é o melhor remédio para a redução das emissões, também é
verdade que nem todo desmatamento tem o agronegócio como seu agente.
Enquanto as cassandras ideológicas gritam,
não é somente o agronegócio que perde: é o Brasil. Não é demais lembrar que o
setor responde por 24% do PIB brasileiro, e seu negócio, ao contrário do que
pensa boa parte dos exércitos ambientalistas, não é desmatar, e sim transitar
de forma decidida – e decisiva – para a agricultura de pegada negativa de
carbono. A paisagem no campo e o bolso dos produtores rurais são intensamente
afetados pelas mudanças climáticas. Estiagens atípicas, plantios prejudicados
pelo excesso de chuvas no Sul, secas severas no Nordeste e até mesmo no Norte,
região conhecida pela abundância de água, são todos fenômenos extremos
prejudiciais aos negócios, bem como as práticas que contaminam a conservação e
a reabilitação dos sistemas alimentares e agrícolas.
Enquanto os países europeus usam a propaganda
negativa sobre o agronegócio brasileiro para justificar as barreiras
protecionistas, Roberto Azevêdo sugeriu ao Brasil agir com sabedoria, reunindo
países que enfrentam problemas similares para que os custos da transição verde
não sejam transferidos para as nações mais pobres – evitando, é claro,
relacionar essa iniciativa à patacoada lulopetista do tal “Sul Global”.
Primeiro, é preciso que o Brasil tenha unidade de propósitos. O governo tem
nada menos do que 17 Ministérios que, direta ou indiretamente, se ocupam de
questões ambientais, e no entanto sua soma produz quase sempre apenas falatório
e fragmentação, reduzindo consideravelmente nossa musculatura comercial e
diplomática. Noves fora a defesa que a diplomacia nacional faz dos negócios do
Brasil nos fóruns globais, o resultado geral é basicamente a demonização do
aronegócio.
A língua presidencial não ajuda, como ficou evidente na recente declaração de Lula da Silva sobre raposas e galinheiros na pauta do marco temporal para demarcação de terras indígenas. Também não ajuda atacar o agronegócio na prova do Enem. São dois exemplos, entre tantos, de uma mesma visão anacrônica sobre o agronegócio, o que só ajuda a consolidar a situação “surreal”, nas palavras de Roberto Azevêdo, em que “o que era para ser o controle das emissões de carbono de repente agora é controlar os sistemas alimentares, uma coisa inacreditável”. Como bem disse o diplomata, “uma narrativa que ignora o sistema energético e a queima de combustível fóssil e o foco vem para o sistema alimentar só pode ser mal-intencionada”.
A conta do mercado livre
O Estado de S. Paulo
Consumidores residenciais de energia pagarão pela abertura mal planejada do mercado
O ano de 2024 marcará uma nova etapa para o
setor elétrico brasileiro, com a abertura do mercado livre de energia para
consumidores de média tensão. Nesse regime, o usuário contrata o serviço de
eletricidade do fornecedor que escolher, sem o vínculo obrigatório com uma
distribuidora de energia. Até 2023, apenas empresas do grupo de alta tensão,
com contas acima de R$ 50 mil, podiam integrar esse sistema; a partir de 2024,
o mercado será aberto para quem consome o equivalente a R$ 10 mil ou mais, como
shoppings e supermercados.
Projeções da Câmara de Comercialização de
Energia Elétrica (CCEE) indicam que um grupo de mais de 70 mil unidades
consumidoras estará apto a migrar para o mercado livre, fechando contratos com
comercializadoras de energia que têm oferecido descontos de até 40% em relação
à tarifa cobrada pelas distribuidoras, como mostrou reportagem do Estadão.
Trata-se de mais um passo na direção do barateamento do consumo de energia para
as empresas.
O problema ficou para quem paga os encargos
do mercado cativo, também chamado de regulado. Com mais essa fase de abertura
do mercado livre, somente consumidores residenciais e microempresas
permanecerão atrelados às distribuidoras de energia. E, como se sabe, mais de
40% do que é pago na conta de luz nada tem a ver com o consumo de energia. São
impostos arrecadados pelo governo e encargos que servem para custear subsídios
distribuídos pelo governo.
Cada consumidor que migra para o mercado
livre deixa mais alta a conta dos encargos que serão divididos entre todos os
usuários do mercado regulado. Como os encargos têm aumentado ano a ano, azar de
quem sobrar para bancar o rateio. No ano passado, os subsídios para o setor
elétrico foram de cerca de R$ 33 bilhões. Para este ano, a Agência Nacional de
Energia Elétrica (Aneel) propôs um orçamento de R$ 37,2 bilhões apenas para a
Conta de Desenvolvimento Energético.
Uma consulta no extrato da conta de luz
mostra que a energia é apenas um detalhe. A Tarifa de Uso do Sistema de
Distribuição (TSUD) – que, como a Tarifa de Energia (TE), também já embute os
impostos – carrega também o fundo com os subsídios que custeiam o barateamento
da energia solar e para consumidores de baixa renda, o combustível das
térmicas, os serviços de fiscalização da Aneel e setores econômicos
considerados estratégicos.
Se o mercado livre fosse aberto a todos, os
consumidores seriam beneficiados de maneira semelhante ao que ocorreu na
portabilidade do serviço de telefonia. Poder escolher o fornecedor é direito
básico de quem paga por um serviço. Mas, como de praxe, o poder público não
planejou de forma competente a transição do mercado cativo para o livre. Pior,
não parece disposto a renunciar ao dinheiro coletado de maneira um tanto
camuflada nas tarifas de energia.
O consumidor que compra energia de comercializadoras se livra dos encargos de transmissão e distribuição. Já a base mais estreita do mercado regulado torna mais pesada a conta. É o que os especialistas chamam de “espiral da morte”. Não é difícil imaginar quem paga o funeral.
Saúde da Família terá mais equipes
Correio Braziliense
Programa Mais Médicos é retomado com mais
profissionais e as regiões com mais fragilidade social terão prioridade
Entre os muitos desafios do governo federal
em 2023, reestruturar os serviços públicos de saúde se destacou entre as
prioridades. Além do desmonte de programas voltados às camadas carentes da
sociedade, o setor foi vítima do negacionismo, das fake news e da inabilidade
dos que administraram a pasta.
O primeiro passo foi recompor o programa Mais
Médicos e garantir assistência às comunidades mais vulneráveis. Com o fim da
parceria com o governo cubando, em 2019, mais de 5 mil equipes de saúde ficaram
desfalcadas de médicos. Atuavam com um enfermeiro e um agente de saúde. No
primeiro chamamento, 34 mil profissionais inscreveram-se para o Mais Médicos.
"Um recorde", segundo Felipe Proenço, secretário-adjunto de Atenção
Primária do Ministério da Saúde.
Para recuperar a formação do programa
original e assegurar a presença de médicos nas equipes de Saúde da Família,
necessárias nas periferias das cidades e no meio rural, o governo federal
incrementou os salários. Facilitou a contratação de profissionais formados no
exterior e criou um programa de formação, em nível de especialização, de
médicos da Família e da Comunidade.
O objetivo de recuperar o programa foi
alcançado. Hoje, 82% dos municípios brasileiros estão contemplados com equipes
de Saúde da Família e 28 mil profissionais participam do programa. A Região
Norte tem a maior concentração de grupos de cuidados com a saúde. As mudanças
não param aí. O novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) previu R$ 31
bilhões para a saúde. Desse total, R$ 7 bilhões serão destinados à construção
de 3 mil unidades básicas e à oferta de 260 unidades odontológicas móveis. Uma
quantidade inferior à demanda de 3 mil municípios que pediram 5,6 mil unidades
de saúde. Para este ano serão selecionadas propostas para a construção de 1, 8
mil unidades em lugares com maior vulnerabilidade social.
O volume de recursos financeiros para a saúde poderia ser maior, considerando a enorme dificuldade que as unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) enfrentam para garantir um atendimento digno aos cidadãos. As reivindicações dos municípios são um forte indicador de que a expansão do sistema é necessária. A população está cansada e não mede críticas, por ter que passar dias em filas, ter exames adiados ou não conseguir uma internação ou uma medicação de elevado custo, nas farmácias populares. Os hospitais, por sua vez, ressentem-se com a falta de um número adequado de profissionais para dar aos cidadãos o que lhes é de direito constitucionalmente. Na votação do Orçamento da União, o Congresso cortou R$ 6,3 bilhões do PAC para inflar o Fundo Eleitoral (R$ 4,9 bilhões), considerando o pleito deste ano. Impõe-se que a necessidade da sociedade prevaleça acima dos interesses políticos de grupos.
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