Folha de S. Paulo
STF contribui para reduzir a detecção de
violações nas relações de trabalho
Em 1905, a Suprema Corte norte-americana declarou inconstitucional lei do estado de Nova York que estabelecia limites à jornada de trabalho nas panificadoras. Para a maioria dos juízes, a legislação consistia numa interferência inaceitável no "direito de livre contratação entre empregadores e empregados". Não caberia ao estado, mesmo sob o fundamento de proteger o bem-estar dos trabalhadores, interferir na autonomia da vontade dos contratantes. Coube ao grande juiz Oliver W. Holmes, pai do realismo jurídico, apontar que seus colegas estavam transformando suas opiniões sobre a economia em direito.
Mais de um século depois do malfadado caso
Lochner vs Nova York, que passou a designar uma era de incorporação do
darwinismo social pelo direito constitucional norte-americano, diversos
ministros do nosso Supremo Tribunal Federal vêm incorrendo no mesmo vício de
tomar por lei suas concepções econômicas, mesmo que essas estejam em claro
confronto com a Constituição.
Sob o pretexto de defender decisões do
Supremo que reconheceram a licitude da terceirização de
atividade fim, diversos ministros têm revogado, por meio de reclamações
constitucionais, decisões da Justiça do Trabalho que detectam fraudes em
contratos de terceirização de mão de obra voltadas a encobrir autênticas
relações de emprego. Ao afastarem da jurisdição trabalhista a competência para
aferir a existência de vínculo de emprego, essas reclamações têm promovido uma
verdadeira supressão dos direitos trabalhistas previstos na Constituição.
Tem cumprido ao ministro Edson Fachin o papel
exercido por Holmes de defender a Constituição de interpretações econômicas que
lhe subvertam o sentido normativo. O fato é que nossa Constituição não apenas
confere expressamente direitos ao trabalhador (artigo 7º.) como atribui à
Justiça do Trabalho a competência para aferir, a partir da análise concreta, a
existência ou não de vínculo de emprego (artigo 114, I).
Como deixa claro o ministro Fachin, não há
que se discutir a licitude da contratação de empresas terceirizadas para a
realização de atividades fim. Essa foi autorizada pelo legislador e ratificada
pelo Supremo. O que não se pode permitir é a utilização fraudulenta dessa
modalidade de contratação para encobrir situações onde a relação é marcada pela
pessoalidade, subordinação, constância e remuneração.
Sob a justificativa de "modernizar"
as relações de trabalho no Brasil, a maioria dos ministros do Supremo não se
têm dado conta das consequências regressivas que estão promovendo nesse mesmo
mercado.
Além da supressão de direitos trabalhistas
previstos na Constituição, que constitui mal em si, pois precariza o trabalho,
o processamento dessas reclamações constitucionais, sem maiores critérios, tem
provocado um forte desequilíbrio no mercado
de trabalho, criando uma competição desleal entre empresas que desrespeitam
a lei e aquelas que contratam corretamente.
O posicionamento da maioria dos ministros
também tem contribuído para um forte processo de evasão fiscal, visto que os
custos tributários são menores em contratos fraudulentos de terceirizados. Da
mesma forma, há redução da arrecadação previdenciária, como tem apontado a
Fazenda Nacional.
Por fim, há que se registrar que ao suprimir
a competência da Justiça do Trabalho para aferir a existência de vínculo de
emprego, a maioria dos ministros do Supremo também está contribuindo para a
redução da capacidade de nosso sistema jurídico de detectar toda sorte de
violações nas relações de trabalho, como condições insalubres de emprego ou
discriminações de gênero e raça.
Afinal, PJs não têm direitos
humanos, muito menos sexo ou cor.
*Professor da FGV Direito SP, mestre em direito pela Universidade Columbia (EUA) e doutor em ciência política pela USP. Autor de "Constituição e sua Reserva de Justiça" (Martins Fontes, 2023)
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