sábado, 23 de março de 2024

Eduardo Affonso - Um cálculo estrutural

O Globo

Bolsonaro seria fruto de uma engrenagem perversa, análoga àquela que gera machistas estruturais, racistas estruturais

Já não há mais qualquer dúvida (se é que algum dia houve) de que Jair Bolsonaro tenha tramado, costurado, alinhavado e arrematado um golpe — não consumado por motivos de incompetência (sem trocadilho) generalizada. Diante dos depoimentos prestados à Polícia Federal por ex-colaboradores e das provas encontradas em gavetas e celulares, não lhe será possível recorrer à tradição milenar de negar até o fim, contra todas as evidências. Nem reabilitar a tática que se popularizou há alguns anos e alegar que o golpe não era seu, mas de um amigo.

Mais que de um bom advogado, ele precisará de uma eficiente assessoria de imagem. Porque só lhe resta uma saída: se apropriar do arcabouço teórico dos adversários e apelar para o golpismo estrutural.

Sim, ele não é golpista: a sociedade é que é. Ele seria fruto de uma engrenagem perversa, análoga àquela que gera machistas estruturais, racistas estruturais, homofóbicos estruturais. Os golpes de Estado — Deodoro em 1889, Vargas em 1930 e 1937, Mourão em 1964 — mais uma penca de revoltas, levantes, intentonas e quarteladas teriam incorporado a seu DNA — e ao de todos os brasileiros — uma vocação atávica para soluções de ruptura. Bem que ele tentou se manter dentro das quatro linhas, mas...

Outro que teria a ganhar com essa argumentação é Lula. Era para o presidente estar surfando nas boas notícias (crescimento da atividade econômica, recuperação do comércio, queda dos juros e da taxa de desemprego). Mas não para de tropeçar na própria língua: culpa do boquirrotismo estrutural, que o leva a dizer o que lhe dá na telha, sem medir o estrago que possa causar. E aí se alista na guerra do companheiro Putin contra a Ucrânia e deixa em segundo plano a luta contra a dengue. Se empenha em salvar o Hamas, não os ianomâmis. Quer porque quer controlar a Vale, e a Petrobras que perca R$ 56 bi em um dia.

Lula pode argumentar que também precisa desconstruir seu antissemitismo estrutural. E seu igualmente estrutural autoritarismo, que o leva a apoiar a democracia fajuta de Nicolás Maduro. Bem como o antipunitivismo estrutural, que o impede de se libertar de alguns anátemas (criminosos são vítimas da sociedade; então esta é que tem de ser punida, convivendo com a violência de bandidos de tornozeleira assaltando transeuntes e assassinos aproveitando saidinhas de ressocialização para se ressocializar com o crime).

Pode, ainda, se escudar no consumismo estrutural da zelite para justificar as compras emergenciais (com dispensa de licitação) que lhe garantem um sono tranquilo numa cama de R$ 42,2 mil, com colchão de R$ 8,9 mil e duas mesinhas de cabeceira de R$ 15 mil cada uma — gasto equivalente a quase um ano de Bolsa Família para dez famílias, considerando o valor médio pago em março de 2024.

O ministro Silvio Almeida bem que tenta explicar que o conceito de “estrutural” não retira as responsabilidades pessoais nem se presta a ser usado como álibi. Mas o feitiço virou contra o feiticeiro, e os teóricos dos preconceitos difusos e coletivos já devem ter se dado conta do monstro que criaram.

Se todos os brancos são, historicamente, racistas — como prega a cartilha identitária — e todo homem é refém da “cultura do estupro”, o ex e o atual presidente têm aí, contra a Justiça e a queda da popularidade, uma boa linha de defesa. Aliás, a única.

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Lula querendo ''salvar o Hamas'' é demais,tem colunista que parece que bebe antes de escrever!