O Estado de S. Paulo
Sem Plano Marshall, com imprestáveis partidos e nenhuma liderança comparável à de De Gaulle ou Mário Soares, entre nós o semipresidencialismo resultaria numa sesquipedal anarquia
Não expressarei desânimo, porque não é de meu
feitio, mas cautelas e advertências sempre se fazem necessárias. Uma breve
vista d’olhos sobre o atual cenário brasileiro permite discernir ao menos cinco
riscos e entraves a meu juízo incontrovertíveis:
1) a chance de retomarmos o crescimento
econômico com rapidez e em bases sustentáveis é muito menor que a acelerada
subida do nível de conflitos na sociedade, perceptível, desde logo, pelo
aumento da criminalidade e por aberrações como o recorde do feminicídio
atingido em 2023;
2) incapaz de enxergar um palmo adiante do
nariz, o Brasil não percebe que poderá despencar num buraco profundo dentro de
15 ou 20 anos; refiro-me, aqui, à “armadilha do baixo crescimento”;
3) para superar a mencionada armadilha, não
basta aumentar o investimento e, além do mais, não conseguiremos fazê-lo na
escala necessária;
4) isso posto, além de aumentar o
investimento e a produtividade do trabalho, teremos de fazer, gostando ou não,
reformas enérgicas na máquina do Estado, fortalecer o setor privado e aumentar,
sem vacilação, o nível de abertura da economia ao exterior (comprar mais e
vender mais);
5) além das reformas acima referidas, de caráter estrutural, teremos de reformar o sistema político, embora saibamos que a Constituição de 1988 bloqueou quase tudo o que poderíamos imaginar a esse respeito.
No que concerne à reforma política, eu havia
me prometido a não voltar ao tema do semipresidencialismo (o chamado “modelo
francês”), mas vejome forçado a fazê-lo porque o último a mencioná-lo foi um
dos maiores políticos de nossa história, o ex-deputado federal, ex-presidente
da Câmara e ex-presidente da República Michel Temer. Antes dele, pelo menos uma
dezena de estudiosos cogitou o transplante da fórmula francesa para o Brasil,
sem levar na devida conta as dificuldades que isso envolveria. A começar pela
própria França. Seu artífice, o marechal De Gaulle, declarou-se parlamentarista
até a última hora, concebendo a mencionada fórmula como uma ponte até que os
graves problemas que o país vivia estivessem equacionados. As décadas de
1950-1960 caracterizaram-se, na França, como todos se lembram, por sérios
conflitos internos, inclusive atentados contra o próprio De Gaulle; pela luta
da Argélia por sua independência nacional; e pelo que poderia ter sido uma
enorme crise econômica não fosse a ajuda norte-americana através do Plano
Marshall. Em 1968, uma grande arruaça estudantil, que se alastrou para o meio
sindical. Circunstâncias semelhantes também explicam, diga-se de passagem, o
abandono, anos depois, por Portugal de sua hilária Constituição socialista e a adoção
do modelo francês, que se consolidou porque nossos parentes ibéricos não iriam
querer ficar fora da zona do euro.
Sem Plano Marshall, com partidos imprestáveis
e nenhuma liderança comparável à de De Gaulle ou Mário Soares, já se vê que,
entre nós, o semipresidencialismo traria como resultado uma sesquipedal
anarquia.
Até aqui, entretanto, o assunto pode ter
ficado um tanto etéreo. É mister voltarmos à origem do referido modelo, a
República de Weimar, que sucedeu ao desastre sofrido pela Alemanha nos
estertores da monarquia guilhermina. Ao acoplar o modelo “semi” à representação
eleitoral proporcional, os alemães não perceberam o beco sem saída em que
estavam se metendo. Não só por causa do modelo político e eleitoral,
entenda-se, mas por todo o conjunto de circunstâncias que se configurou após a
Primeira Guerra Mundial. Numa das mais destrambelhadas operações de que há
registro nas relações internacionais, a França impôs à Alemanha reparações de
guerra que esta obviamente não poderia pagar, tanto no plano industrial como no
dos armamentos, mas, de forma ainda mais contundente, no plano
econômico-financeiro.
Em 1925, ao assumir a presidência (a chefia
do Estado), o marechal von Hindenburg ainda gozava de boa saúde; em 1932,
estava claramente senil, empurrado de um lado para outro por empresários
interessados em instrumentalizar a força de Hitler contra os comunistas. Estes,
por vez, obedientes a Moscou, não combatiam Hitler, e sim os social-democratas,
cada um empenhado em preservar seu espaço junto do movimento sindical. Com dez
partidos atingindo a marca de 1 (hum) milhão de votos, Hindenburg viu-se forçado
a dissolver várias vezes a Câmara, convocando eleições a prazos curtíssimos,
cada uma levando mais água ao moinho do hitlerismo.
Deixarei de lado as imprudências do nosso Dom
Pedro II, que abortou a evolução normal do parlamentarismo em nosso país.
Lembrarei apenas que, em 1961, perpetramos o disparatado Ato Institucional,
pomposamente intitulado Instituição do Parlamentarismo, que permitiu a posse do
vice (legitimamente eleito) João Goulart na Presidência. Íntimo amigo de
Getúlio e do próprio Jango, o primeiro primeiro-ministro, Tancredo Neves,
confidenciou a Olavo Setúbal que não se submeteria ao disparate de aceitar o
veto de Jango sobre toda a legislação que ele, Tancredo, negociasse com a
Câmara dos Deputados.
*Sócio-diretor da Augurium Consultoria, é membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências
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