sábado, 23 de março de 2024

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Calamidade no saneamento perdura no Brasil

O Globo

Ao enfraquecer legislação, governo contribuiu para manter população em condição insalubre por mais tempo

É desolador o quadro traçado no último ranking sobre o saneamento nas cem maiores cidades brasileiras do Instituto Trata Brasil. No ritmo verificado pelo estudo — alta de 55,8% para 56% na coleta de esgoto e de 51,2% para 52,2% no tratamento —, a universalização levará décadas, com consequências nefastas para a população e para o meio ambiente. Diariamente, o equivalente a mais de 5,2 mil piscinas olímpicas de eflúvios sem tratamento é despejado na natureza. Das 20 cidades com pior classificação, 11 estão nesse grupo há dez anos.

Os 20 municípios mais bem colocados estão espalhados pelo Brasil. Maringá (PR) está em primeiro lugar. São Paulo, em sétimo, é a capital na melhor situação. Uberlândia, em quinto, é a melhor cidade em Minas Gerais, e Niterói, em sexto, no Rio. Em comum, essas cidades investiram e investem altos valores per capita em saneamento. Não existe outra alternativa para a insalubridade.

O exemplo de Niterói é ilustrativo. Uma empresa privada assumiu o serviço de saneamento em 1999 e precisou de apenas cinco anos para elevar a população com água tratada de 72% para 100%. O problema são os municípios com índices baixos de atendimento, ainda presos às mesmas empresas estatais que nunca fizeram o suficiente para mudar o quadro vexatório.

Acabar com essa situação é o objetivo do Marco do Saneamento aprovado em 2020. Ele abriu a competição no mercado brasileiro. O objetivo não é um embate estéril entre empresas públicas e privadas, mas entre as ineficientes e as eficientes. “As novas leis previam que concessionárias privadas sem capacidade de atingir as metas também perdessem a concessão”, diz Diogo Mac Cord, líder de Infraestrutura e Mercados Regulados da consultoria EY e um dos formuladores da lei no governo passado.

O Marco procurou atacar o problema do saneamento em duas frentes. Empresas com contratos vigentes passaram a ter de comprovar capacidade econômica e financeira para universalizar os serviços. Aquelas que, depois de uma auditoria, não demonstrassem condições estariam fora. Para promover a competição, todos os novos contratos começaram a ser licitados.

Num equívoco de grandes proporções, o governo do PT, por convicção ideológica e pressão de governadores, trabalhou para enfraquecer o Marco do Saneamento. Graças à ação de parte do Congresso, a regra da licitação foi mantida. É certo que alguns estados têm prorrogado contratos sem novas concorrências, mas isso acontece de forma irregular. A mudança mais grave aconteceu na avaliação independente da capacidade econômica e financeira. Para beneficiar empresas estatais ineficientes, ela foi enfraquecida, a ponto de quase não fazer mais sentido.

Essas mudanças não eximem a responsabilidade dos prefeitos. Há caminhos para melhorar os serviços de tratamento de água e coleta de esgoto. Mesmo os municípios presos a contratos insatisfatórios podem usar a lista do Trata Brasil para provar na Justiça a falta de atendimento adequado. É uma vergonha a situação do saneamento no Brasil. Mais de 33 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada e 93 milhões vivem sem coleta de esgoto. Isso precisa mudar rápido. A poucos meses das eleições para prefeitos e vereadores, essa é uma questão que deve ser avaliada por todo eleitor.

Anistia a áreas ‘não florestais’ aprovada na Câmara incentiva desmatamento

O Globo

Senadores deveriam rejeitar projeto que relaxa proteção a campos nativos espalhados por todos os biomas

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou nesta semana um novo Projeto de Lei relaxando a proteção em áreas consideradas “não florestais”, conhecido como PL dos Campos. O termo vago abrange campos nativos na Mata Atlântica, no Pantanal, no Cerrado, na Caatinga etc. Na prática, ameaça quase todos os biomas brasileiros, inclusive áreas extensas da Amazônia. Estima-se que abranja uma extensão de 48 milhões de hectares, área maior que o Paraguai. Como o texto foi aprovado de forma terminativa pela CCJ, não precisa ser submetido ao plenário. Isso significa que seguirá diretamente ao Senado. Espera-se que os senadores o rejeitem ou que, na pior hipótese, seja vetado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A proposta, em sua versão inicial, tratava apenas dos campos da Mata Atlântica. Já seria um absurdo. Antes da última votação na CCJ, porém, o deputado Lucas Redecker (PSDB-RS), relator do projeto, expandiu seu alcance com alterações em todo o Código Florestal de 2012. Redecker e o autor do projeto original, deputado Alceu Moreira (MDB-RS), alegam que o objetivo é regularizar imóveis rurais nas áreas contempladas, para livrar seus proprietários de multas e embargos ambientais. É como se fosse uma ampla anistia.

Mas o projeto considera “áreas rurais consolidadas” todas as liberadas para exploração, mesmo aquelas cuja vegetação não foi derrubada até 2008, marco temporal estabelecido pelo Código Florestal para a preservação. O risco de mais devastação vai além, porque também perdem proteção Áreas de Preservação Permanente (APPs). Livram-se apenas terras indígenas e Unidades de Conservação, criadas por lei para salvaguardar fauna e flora.

Pressionada, a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, terá de se desdobrar para enfrentar o que virá por aí caso o projeto passe no Senado e o presidente Lula seja convencido a não vetá-lo, para não dificultar o já difícil relacionamento do governo com o Congresso. Diante do avanço da devastação na Amazônia, Marina relançou o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), criado há 20 anos em sua primeira passagem pela pasta. A iniciativa fez cair o desmatamento pela metade logo no primeiro ano. Agora, o ministério se esforça para tratar também do Cerrado, fronteira onde grande parte da devastação é legal, com o beneplácito de governos estaduais.

Se o PL dos Campos for aprovado pelo Congresso, o Ministério do Meio Ambiente enfrentará ainda mais dificuldade para combater os desmatadores. Infelizmente os congressistas parecem acreditar que há conflito entre o avanço da produção agropecuária e a defesa do meio ambiente. O agronegócio brasileiro já deu repetidas demonstrações de como aumentar a produtividade sem desmatar. É esse tipo de atitude que os parlamentares deveriam se preocupar em valorizar, e não em aprovar uma anistia que apenas cria mais incentivos para a devastação.

Novo ensino médio dá um passo adiante

Folha de S. Paulo

Acordo entre MEC e Câmara leva à aprovação de projeto que mira problemas surgidos na implantação; Senado deve ser célere

Finalmente a Câmara aprovou o projeto que altera a reforma do ensino médio, sancionada em 2017. Desde lá, a medida foi alvo de ataques de cunho partidário e corporativista que pediam sua revogação.

Contudo os problemas estruturais que de fato surgiram na implantação não eram motivo para a interrupção da reforma, que busca minimizar gargalos dessa etapa do ensino como a evasão escolar.

Nesse sentido, o projeto aprovado pelos deputados é bem-vindo, já que mantém o cerne da versão original —flexibilização do currículo e integração da educação profissional à regular— e aponta soluções para os desafios verificados na prática ao longo dos anos.

Uma das mudanças que mais geraram transtornos foi a instauração dos itinerários formativos. Não havia critérios técnicos específicos para a estipulação dessas disciplinas, que têm como objetivo o aprofundamento de temas de interesse dos alunos, e a maioria das escolas não conta com professores especializados ou infraestrutura para suprir a contento essa exigência.

Já o projeto de lei ora aprovado delimitou os itinerários a apenas cinco áreas: quatro formadas a partir de conteúdos do currículo regular, como "linguagens, matemática e ciências humanas e sociais", e a outra reservada aos cursos profissionalizantes.

Tal organização também é importante porque facilita a criação de diretrizes nacionais claras, uma demanda das redes de ensino locais. Em relação à carga horária, contempla-se uma necessidade verificada no ensino técnico.

Na reforma original, o currículo comum a todos os estudantes era de 1.800 horas em três anos, e os itinerários tinham 1.200. A proposta do MEC da atual gestão mudou para 2.400 e 600, respectivamente. No entanto os alunos que cursam o modelo profissionalizante precisam de mais tempo para a formação específica.

Assim, MEC e deputados da base governista acataram diminuir a carga do currículo regular daqueles que optarem pela educação profissionalizante para 2.100 horas, aumentando para 900 a parte flexível —ademais, 300 dessas 2.100 horas podem ser usadas para complementar o ensino técnico.

Essa alteração é crucial, dado o interesse do alunado pela formação profissionalizante e da importância desse modelo para a rápida inserção no mercado de trabalho.

Agora, o Senado deve agir com celeridade para concluir a aprovação. Já o governo deve monitorar a implementação, auxiliando as redes regionais, e focar em outros problemas crônicos da educação brasileira, como a aprendizagem precária, a baixa oferta do ensino integral e a distorção entre série e idade no ensino fundamental.

Os corpos dos porcos

Folha de S. Paulo

Transplante de rim suíno cria alternativa tecnológica à escassez de órgãos

Os caminhos da biomedicina não cessam de surpreender. Quem diria, décadas atrás, que partes dos animais mais identificados com sujidades viriam a salvar milhares de pessoas? Pois começou a era dos transplantes com órgãos de porcos, com notável avanço anunciado na quinta-feira (21).

O Hospital Geral de Massachusetts em Boston divulgou operação bem-sucedida, comandada por um médico brasileiro, em que um homem de 62 anos com insuficiência renal grave recebeu um rim suíno geneticamente modificado. O paciente se recuperava bem.

Dá-se o nome de xenotransplante ao procedimento em que o doente recebe órgão de outra espécie, para contornar a escassez de doações humanas. A fila de brasileiros à espera de um rim, por exemplo, conta cerca de 39 mil pessoas.

Embora pouco se pareçam com humanos, suínos têm a parte central do corpo e os órgãos vitais nela contidos de tamanhos comparáveis. A desvantagem está no potencial aumentado para rejeição, dado o parentesco distante com a espécie Sus scrofa domesticus.

Recorreu-se a dezenas de manipulações de DNA para diminuir a rejeição, com a retirada de genes porcinos e inserção de genes humanos. Também foram inativadas sequências genéticas correspondentes a vírus adormecidos, por assim dizer, no genoma de porcos.

A modificação genética empregou a técnica batizada Crispr, que deu a Emmanuelle Charpentier e Jennifer Doudna o Prêmio Nobel de Química em 2020. Ela confere maiores precisão e eficiência na edição de DNA de seres vivos do que processos anteriores.

A façanha poderá causar desconforto moral em algumas pessoas sensíveis à sem-cerimônia com que a biotecnologia cruza fronteiras antes vistas como imutáveis. Foi assim, nos anos 1970, com os primeiros transplantes de coração entre humanos e os pioneiros bebês de proveta —hoje corriqueiros.

Vida longa aos xenostransplantes. De uma perspectiva pragmática, é finalidade nobre destinar corpos de animais para salvar pessoas condenadas pela relutância de parentes, esta sim injustificável, a doar órgãos de entes queridos.

Poder público não pode ser oculto

O Estado de S. Paulo

Lula, que prometeu máxima transparência em seu governo, igualou o grau de opacidade de Bolsonaro, valendo-se de justificativa espúria para recusar 1.339 pedidos de acesso à informação

Segundo apurou o Estadão, o governo do presidente Lula da Silva negou no ano passado 1.339 pedidos de informações sob a justificativa de conter dados pessoais, impondo 100 anos de sigilo sobre documentos como a agenda da primeira-dama, comunicações diplomáticas sobre o julgamento do ex-jogador Robinho ou a lista dos militares da Guarda Presidencial de plantão no infame 8 de Janeiro.

Transparência e publicidade são pilares do Estado Democrático de Direito. Não se trata só de coibir ilicitudes, mas de garantir um ambiente institucional, administrativo, político e econômico capaz de otimizar recursos públicos, atrair investimentos e promover uma cidadania vibrante e participativa. A Constituição estabelece uma única exceção, caso o sigilo seja “imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.

A aversão à transparência não é apanágio deste governo ou de Brasília. Todo poder emana do povo. Governantes, parlamentares, magistrados e servidores públicos são seus mandatários. Mas, na prática, se comportam como mandantes, tratando os cidadãos como súditos e compartilhando informações como se fossem concessões, não um dever cuja recusa caracteriza ilicitude.

Segundo apuração do Estadão, 23 das 27 Assembleias Legislativas do Brasil foram reprovadas no teste de transparência, integridade e governança, mostrando-se incapazes de oferecer dados que deveriam estar facilmente disponíveis. Há anos a Suprema Corte mantém os inquéritos das fake news e das milícias digitais sob sigilo, impedindo o povo de escrutinar a legalidade de medidas excepcionais, como quebras de sigilo, bloqueios de contas, multas exorbitantes e a censura ou prisão de representantes eleitos, jornalistas e empresários. É difícil imaginar uma questão de maior interesse público que a verificação dos fatos ocorridos no maior atentado à democracia desde o fim da ditadura. Apesar disso, mais de um ano após o 8 de Janeiro, os Três Poderes mantêm a sete chaves a íntegra das imagens das câmeras de vigilância.

Na gestão Bolsonaro a opacidade se tornou política de governo. São inúmeros exemplos: recusas abusivas a solicitações de informações por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), campanhas de desinformação, estruturas paralelas nos ministérios, interferências em órgãos de controle e até a ocultação de dados epidemiológicos na pandemia. O paroxismo foi a maquinação, junto com o Legislativo, de um “orçamento secreto”.

O caso de Lula, no entanto, é mais grave, porque se diz paladino da democracia e fez do ataque à cultura do sigilo parte de sua batalha contra Bolsonaro na eleição. “É uma coisa que vamos ter de fazer: um decreto, um ‘revogaço’ desse sigilo que Bolsonaro está criando para defender os amigos”, disse à época. “Qualquer pessoa podia saber o que acontecia no nosso governo.” A hipocrisia é, de fato, a homenagem que o vício presta à virtude.

Os primeiros mandatos de Lula antecederam à LAI, de 2011. Mas em 2013 o governo de sua criatura Dilma Rousseff bateu o recorde de negativas: 3.732. No último ano de Bolsonaro, foram 1.332. O governo Lula retirou o sigilo de muitos desses documentos. Mas o apreço de Lula à publicidade é seletivo. Já em seu primeiro ano, ele superou a marca de Bolsonaro, com 1.339 negativas. Mesmo se admitindo que uma parcela mínima desses documentos se enquadre nas exceções previstas na LAI para preservar a segurança ou a intimidade, o próprio governo baixou um decreto determinando que eles devem ser disponibilizados, ocultando-se somente os trechos sensíveis. O sinal ideológico é trocado, mas o recurso às sombras é só mais uma das muitas táticas que Lula e Bolsonaro utilizam de maneira idêntica.

“A publicidade é com justiça recomendada como um remédio para doenças sociais e industriais”, disse o jurista americano Louis Brandeis. “Diz-se que a luz do sol é o melhor dos desinfetantes; a iluminação pública é o mais eficiente dos policiais.” Muito antes de Brandeis, da Constituição ou da LAI, a sabedoria popular já havia consagrado esse princípio universal de maneira mais singela e intuitiva: quem não deve não teme. Ante tamanho esforço para manter sua administração nas sombras, é de perguntar ao presidente Lula: por que tanto medo?

O parto do Novo Ensino Médio

O Estado de S. Paulo

Aprovação na Câmara mostra que a discussão sobre a reformulação do ensino médio atingiu seu grau de maturação; agora é torcer para que não haja interrupções no Senado

A aprovação do projeto que reformula o Novo Ensino Médio pela Câmara dos Deputados foi um passo importante para dar prosseguimento à urgente e necessária reestruturação da etapa mais complexa e relevante da vida escolar, definidora do futuro de gerações. O consenso em torno de temas nevrálgicos, que teve na carga horária da base curricular seu ponto de maior embate, mostrou que o grau de maturação aparentemente foi alcançado, o que tende a facilitar as discussões no Senado, de onde sairá a versão final do projeto.

É imprescindível que o trâmite ocorra sem novas interrupções, como a que emperrou o projeto na Câmara, atrasando ainda mais a implantação das mudanças. Pelo calendário original, o novo modelo já deveria estar regulamentado, orientando as escolhas de milhões de adolescentes durante os três anos do ensino médio. O ponto positivo é que, após intensos debates, se chegou a uma fórmula que afastou de vez a possibilidade absurda de revisão completa da reforma aprovada em 2017 – algo que chegou a ser cogitado pela esquerda irresponsável no início da gestão de Lula da Silva.

De forma geral, a reforma de 2017, comandada pelo então ministro da Educação Mendonça Filho, adotava princípios corretos de formação geral básica, organizada por áreas do conhecimento, com a parte optativa, na qual os estudantes definem disciplinas de acordo com suas áreas de interesse, abrindo caminho para a educação profissional. O currículo mais flexível e a disponibilidade de um ensino profissional e técnico arejaram o modelo para lá de atrasado do ensino médio. Lamentavelmente, houve hiato e confusão na implementação, em razão da pandemia de covid-19 e da inexistência de um Ministério da Educação (MEC) funcional nos tenebrosos anos de Jair Bolsonaro na Presidência.

De volta ao centro dos debates, agora como deputado relator do projeto, Mendonça Filho fez um bom trabalho na construção do novo texto, que estabeleceu com o Ministério da Educação um padrão nacional para a base curricular e a ampliação da carga horária, abrindo espaço para o incremento da formação técnica.

Os pontos essenciais a serem perseguidos para que os estudantes tenham autonomia suficiente para se sentirem atraídos pelas disciplinas do currículo escolhido foram resguardados no projeto. É preciso compreender que a evasão escolar – que tem no ensino médio sua mais alta taxa, de 5,9%, de acordo com o censo do MEC de 2023 – não é motivada somente pela necessidade de os alunos ingressarem prematuramente no mercado de trabalho. Fosse apenas isso, o País não estaria assistindo ao dramático aumento da geração “nem-nem”, de jovens que não estudam nem trabalham e que já beiram os 11 milhões, de acordo com dados do IBGE.

Pesa também, e muito, o desinteresse e isso pode ser explicado pelo alto índice de repetência nessa fase da vida escolar (3,9%, também de acordo com o MEC) e a falta de identificação com a base curricular. Dito isso, a instituição de um programa de transferência de renda como o Pé de Meia, que paga para que o aluno permaneça na escola durante o ensino médio, não é uma garantia definitiva de frequência escolar, apesar de seus méritos. Medidas pensadas para tornar os currículos mais convergentes com os interesses dos estudantes terão, por certo, efeito mais eficaz e perene.

E é sob esse aspecto prioritário que agora o projeto deve ser examinado pelos senadores. Tão importante quanto a definição de quantas mil horas são necessárias para o aprendizado desta ou daquela disciplina – questão pertinente e que já foi exaustivamente pautada nas discussões técnicas na Câmara – será a adequação às novas normas que pretendem desengessar a matriz curricular. Após a avaliação pelo Senado, para que as mudanças possam ser implementadas a partir de 2025 serão necessários ajustes operacionais, regulamentações estaduais e definição de metas para ampliação de matrículas. Um trabalho que requer não só técnica, mas também celeridade.

Déficit zero é um propósito

O Estado de S. Paulo

Arrecadação recorde é insuficiente para evitar déficit; União precisa cortar despesas

Diz muito o fato de, apesar da arrecadação federal recorde de R$ 467,185 bilhões nos dois primeiros meses do ano, o primeiro relatório bimestral de receitas e despesas de 2024 ter reconhecido um déficit de R$ 9,3 bilhões para este ano, o equivalente a 0,1% do Produto Interno Bruto. A coleta excepcional – tanto por ser vultosa quanto atípica – de impostos e tributos também foi insuficiente para evitar o bloqueio orçamentário que, como já era esperado, ficou em R$ 2,9 bilhões.

Não significa que o saldo das contas públicas tenha sido ruim, muito pelo contrário. Como planejado pela equipe econômica, o bloqueio foi reduzido ao mínimo e o déficit projetado está dentro dos limites do marco fiscal. A questão é que a máquina arrecadatória do governo girou em alta rotação em janeiro e fevereiro sob o efeito de novas medidas, em especial a taxação de investimentos dos super-ricos.

A lei dos fundos exclusivos (alguns exclusivíssimos, desenhados para um só investidor) e das offshores (aplicações financeiras mantidas em paraísos fiscais) cortou quase à metade a alíquota para quem antecipasse o pagamento do Imposto de Renda sobre o estoque de rendimentos até o fim do ano passado. As parcelas pagas no início deste ano engrossaram a arrecadação, mas esse efeito não será recorrente no restante do ano.

A conclusão é óbvia e vem sendo insistentemente repetida em advertências sobre a política fiscal do governo: não basta apostar apenas na arrecadação; o equilíbrio das contas públicas é claramente dependente do fechamento das torneiras das despesas. A ampliação de receitas foi muito forte, como atestam os dados do Ministério da Fazenda. Os R$ 186,5 bilhões recolhidos em fevereiro, por exemplo, foram recorde histórico para o mês desde o início da série histórica, há quase 30 anos.

O esforço para controlar a situação fiscal precisa passar pelo corte de despesas. E não apenas em medidas de combate aos desvios de recursos, como ocorreu, também no primeiro bimestre, em consequência da repressão às fraudes na Previdência Social. Esse cuidado rigoroso com o dinheiro público é o mínimo esperado da União. Mas é difícil esperar redução de gastos efetiva de um governo que trata a liberação de recursos como investimento e, pior, parece incluir nesse conceito também o capital político.

Noves fora, o resultado fiscal deste início de ano dá fôlego ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em sua campanha quase quixotesca pelo déficit zero. É bom frisar que o déficit fiscal zero é um propósito a ser perseguido de fato, não importa o horizonte. É nessa premissa que as expectativas do governo precisam estar ancoradas para colher frutos pelo caminho.

Infelizmente, o presidente Lula da Silva já deixou claro que não compartilha dessa lógica. Em fevereiro, quando o salto na receita era tido como certo, saiu-se com mais uma declaração desarrazoada sobre o seu raciocínio. “Você gasta o quanto você arrecada. Se aumentar a arrecadação, a gente tem mais dinheiro para gastar.” Essa é a aritmética do desastre.

Crescimento e responsabilidade

Correio Braziliense

Em maio, como antecipou o Comitê de Política Monetária (Copom), o alívio no custo do dinheiro será de 0,5 ponto

O Banco Central avisou que vai reduzir o ritmo de corte da taxa básica de juros (Selic) a partir de junho, muito provavelmente para 0,25 ponto percentual. Em maio, como antecipou o Comitê de Política Monetária (Copom), o alívio no custo do dinheiro será de 0,5 ponto. A Selic está em 10,75% ao ano, bem longe dos 9% projetados para dezembro próximo pela maioria dos especialistas. A cautela do BC tem a ver com as incertezas sobre a inflação, que subiu 0,83% em fevereiro, e com o ambiente nada animador no exterior.

É compreensível a preocupação da autoridade monetária. Até agora, desde que começou a baixar os juros, tem conseguido manter as expectativas de inflação entre os agentes econômicos muito próximas da meta de 3% ao ano sem comprometer o crescimento econômico. Os principais indicadores apontam que a atividade está caminhando num ritmo acima do estimado inicialmente, com o mercado de trabalho aquecido e a massa salarial avançando.

Esse quadro benigno ainda não contempla a totalidade do impacto da queda da taxa Selic, de três pontos percentuais, nas seis últimas reuniões do Copom. Ou seja, tanto a produção quanto o consumo vão se beneficiar, mais à frente, do alívio monetário, o que tenderá a dar um novo fôlego ao Produto Interno Bruto (PIB). É por isso que parte dos analistas estima crescimento de até 2,6% neste ano, que, se confirmado, será uma vitória para o governo. No início de 2024, todas as previsões apontavam para um salto de, no máximo, 1,5%.

Na avaliação do BC, a política monetária mais restritiva, neste momento, é fundamental para que se mantenha o equilíbrio entre inflação nas metas e crescimento mais forte da economia. Nada impede que, mais à frente, se as boas notícias se confirmarem, o Copom volte a acelerar o passo. Já se antevê para os próximos meses, por exemplo, a queda dos preços dos alimentos com a entrada da safra de verão. Vale lembrar que, na última semana, o arroz ficou 14% mais barato no atacado e o feijão teve baixa de 5,4%.

Há outro ponto importante a ser ressaltado e que está sendo observado com lupa pelo Banco Central e pelos especialistas: o comportamento das contas públicas. Como janeiro e fevereiro registraram arrecadação recorde de impostos, devido ao ritmo mais forte da economia, começa a ficar mais provável o cumprimento da meta fiscal de deficit zero neste ano. Pelos cálculos do Tesouro Nacional, no primeiro bimestre do ano, houve um rombo de R$ 9,3 bilhões, o equivalente a 0,1% do PIB.

Mais: um mapeamento feito pelo Bradesco identificou que, nas últimas semanas, foram anunciados investimentos de quase R$ 70 bilhões no país, reforçando a volta da confiança no empresariado. Já os índices que medem a percepção dos consumidores sinalizam que eles estão mais propensos a satisfazerem as suas necessidades de compras. É tudo o que a economia precisa para deslanchar.

No exterior, os bancos centrais das principais economias ainda estão reticentes quanto ao início do processo de redução dos juros, diante da persistência da inflação. O Federal Reserve (Fed), o BC norte-americano, já se comprometeu em promover pelo menos três cortes na taxa básica neste ano, sem indicar o início desse movimento. Mas, tão logo o afrouxo monetário comece, o Brasil poderá se beneficiar. É questão de paciência para não se pôr a perder todas as conquistas obtidas até agora.

Os ventos, ainda que fracos, são favoráveis. Portanto, nem o governo nem o Congresso devem desafinar o coro para que a população seja a grande beneficiada em um ambiente econômico mais favorável. Manter os dois pés bem fincados no chão, além de prudência, significa responsabilidade. O Banco Central segue à risca essa cartilha. E não por excesso de conservadorismo, pois ninguém aguenta mais o Brasil convivendo, a todo momento, com solavancos e incertezas. Os que prezam pelo bom senso agradecem.

 

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