Valor Econômico
Há quase 19 anos, na última semana de agosto
de 2005, um furacão classe 5 se formou próximo ao litoral das Bahamas,
dirigiu-se para o norte da Flórida e desviou-se à esquerda para atingir a costa
da Louisiana com ventos acima de 200 quilômetros por hora. As ondas levantadas
pelo Katrina venceram sem dificuldades os diques que protegiam a cidade de Nova
Orleans do avanço das águas e 80% da malha urbana ficou submersa.
Perderiam a vida 1.836 pessoas. Os Estados Unidos estavam diante do desastre climático mais mortal da história do País em 77 anos e o que mais danos econômicos provocou, estimados em US$ 146 bilhões em valores da época. Provocou a maior diáspora até então registrada, com 1 milhão de migrantes. Furacões são fenômeno típico do Caribe desde sempre, mas aquele elevou a um outro patamar a discussão na opinião pública sobre a vulnerabilidade em relação a eventos extremos e a capacidade governamental de administrar seus efeitos.
Ao contrário do Katrina, não tem nome o
horror das chuvas que acomete o Rio Grande do Sul desde o dia 29 e seu fim
ainda não está claro- os alagamentos continuam e a previsão para os próximos
dias é de tempo ruim, mas os pontos de contato das duas catástrofes são muitos,
e vão muito além da enorme tragédia humana, que no caso brasileiro já causou
107 mortes. O orçamento de R$ 19 bilhões para reconstrução esboçado pelo
governador Eduardo Leite (PSDB) parece conservador.
O Rio Grande do Sul tem 10,8 milhões de
habitantes e, segundo o balanço da Defesa Civil da tarde dessa quinta-feira,
nada menos que 16% do total, ou 1,74 milhão de pessoas, foram afetadas, e esse
contingente tende a subir. Empresas não funcionam, porque os funcionários não
têm como se deslocar. Estoques estão perdidos. As pessoas estão em cima dos
telhados, embaixo tudo se perdeu. Não é uma conta que se resolve com obras de
engenharia.
“É a pandemia do Lula”, comentou um dirigente
partidário impactado pelo noticiário. Não por acaso, o partido do governador
propôs formalmente a volta do auxílio emergencial pago no tempo da covid-19,
possibilidade que está sendo avaliada pelo governo federal, conforme afirmou
nessa quinta o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. É uma medida que não está
na conta do pacote de R$ 50,9 bilhões entre adiamento de impostos, concessão de
créditos e antecipação de benefícios anunciado nesta quinta.
O esforço é de magnitude similar ao da
pandemia e nesse momento há outro ponto de contato entre o drama brasileiro e o
dos Estados Unidos em 2005: o pano de fundo político. Tanto em um caso como em
outro o desastre se dá e se deu um reduto da oposição ao governo federal.
A falta de articulação entre o governo
comandado da Casa Branca por George W. Bush e o da Louisiana, do Partido
Democrata, tornou o caso do Katrina o símbolo do que não pode acontecer em uma
gestão de desastre. Houve falhas de prevenção e rigidez nos protocolos de
burocracia, o que retardou a assistência aos milhares de desabrigados. A imagem
que ficou daquela época foi a da multidão impotente reunida no “Superdome”, a
arena esportiva local, em sua grande maioria preta, em cenas de desespero. A
popularidade de Bush entrou em uma espiral descendente, da qual não mais se
recuperou.
Os primeiros dez dias da tragédia gaúcha
mostraram que esse não parece ser o espírito nem do presidente Luiz Inácio Lula
da Silva, nem do governador Eduardo Leite. Em um primeiro momento ambos estão
com a atuação aprovada pela opinião pública, conforme registrou pesquisa
Genial/Quaest divulgada entre a noite de quarta-feira e a manhã de quinta: 53%
no primeiro caso e 54% no segundo.
A imagem icônica da catástrofe dessa
quinta-feira foi a do resgate do cavalo Caramelo, retirado depois de cinco dias
de um telhado em Canoas (RS), em um episódio que transmite a ideia de
solidariedade e de não deixar ninguém para trás, o exato oposto da negligência
e da falta de cooperação que marcou o Katrina. A disputa pela capitalização
política do salvamento é grande e vai da primeira-dama Janja da Silva, que
chamou atenção para o tema, ao governo de São Paulo, que mandou a equipe de
resgate do Corpo de Bombeiros.
Mas além das características dos governantes
brasileiros de hoje e dos americanos de 2005, há um diferencial que distorce
tudo e que, no Brasil, está jogando a favor de Lula e Leite. Longe de os
prejudicarem, as redes sociais estão os beneficiando. Bush não contou com essa
cortina de fumaça.
Há uma algaravia de narrativas entre os pólos
direita e esquerda no Brasil que relativiza as informações que circulam, ao
menos por hora.
O grito da torcida abafa o noticiário que aponta como as áreas de Defesa Civil e de preservação do Meio Ambiente perderam espaço em um Orçamento feudalizado pelo Centrão. No universo de R$ 44,1 bilhões de emendas parlamentares, nada em seu conjunto faz sentido: não há uma política estruturada de Saúde, ou Infra-Estrutura, ou Educação, que ganhe prioridade em relação à barganha que o governo faz com o varejo da Câmara para chegar na eleição seguinte. A pancadaria nas redes também permite a Leite se esquivar das cobranças pelas mudanças que fez nos regramentos ambientais do Rio Grande do Sul desde que assumiu.
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