O Globo
A
mão invisível do mercado não soluciona calamidade pública
Mais
uma vez, em quatro anos, a relevância do Estado emerge da catástrofe. A
pandemia de Covid-19 deveria ter sido suficiente para demonstrar que a mão
invisível do mercado não soluciona calamidade pública. Lá atrás, precisamos de
auxílio emergencial para garantir a renda de quem ficou sem condições de
trabalhar. Necessitamos de leitos hospitalares, respiradores, medicamentos,
vacina; e o Sistema Único de Saúde se fez presente. Viva!
O Rio Grande do Sul colapsou com a tempestade bíblica combinada a décadas de desprezo ambiental. Projetos de desenvolvimento movidos por pura ganância devastaram biomas em todo o país, do Cerrado à Amazônia, da Mata Atlântica ao Pampa. Ante o desequilíbrio evidente, sofremos todos — sobretudo, os vulneráveis, crianças e idosos; pretos, pobres e mulheres; indígenas e quilombolas. Agora, até quem se catapultou politicamente demonizando o Estado dele se socorre.
Prefeitos,
governadores, presidentes, bem como deputados e senadores, que ora se apressam
em aprovar receitas de última hora para remediar tragédias, são os mesmos que
passaram anos atuando por leis de degradação ambiental. A tragédia
socioclimática, como o cientista político Sérgio Abranches tem definido o novo
normal de fenômenos tão intensos quanto frequentes, não nasceu de combustão
espontânea, mas do descaso com alertas que a ciência repete há tempos; fora as
doses de enganação do eleitorado. É tudo política. São políticos que escolhem
degradar e, quando a conta chega, nem sequer sabem como agir. Má-fé,
irresponsabilidade e incompetência definem.
O
ano é de eleições e, à luz da catástrofe gaúcha, brasileiras e brasileiros dos
5.568 municípios do país terão de exigir dos candidatos a prefeito propostas de
enfrentamento das mudanças climáticas. Segundo o Centro Nacional de
Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), 1.942 (34,9% do total)
municípios estão suscetíveis a tragédias associadas a movimentos de massa,
alagamentos, enxurradas e inundações. Essas localidades, onde vivem 148,8
milhões de brasileiros, já sofreram 16.241 registros de desastres com 3.890
mortes. Ao todo, 19,2 milhões de pessoas ocupam áreas com risco
geo-hidrológico, geológico e hidrológico.
Não
são aceitáveis a falta de protocolos para responder aos desastres, a ausência
de projetos de prevenção e adaptação à crise climática ou a absoluta
incoerência da agenda legislativa. O mesmo Congresso que abre brechas
orçamentárias para reerguer cidades aprova a flexibilização de regras que as
levam à catástrofe ambiental. Especialistas responsabilizam Eduardo Leite,
governador gaúcho, pelo desmonte do Código Ambiental. Boa parte do desmatamento
do Cerrado tem a ver com flexibilização de regras estaduais. Multiplicam-se na
Câmara dos Deputados e no Senado propostas para liberar exploração de áreas
preservadas. Movem-se pelo interesse do agronegócio exportador. Lucros
privados, prejuízos públicos. O governo federal, se comprometido com a
preservação do meio ambiente, não pode mais se acovardar.
Como
sempre, ante a perplexidade geral com os desastres, a sociedade civil é chamada
a cooperar. São ONGs, ativistas e voluntários que põem de pé, do dia para a
noite, campanhas de arrecadação e distribuição de itens essenciais, que montam
espaços de acolhimento. A cada episódio, avolumam-se as experiências que dão em
tecnologia social, incubadoras de política social. A pandemia foi exemplo. Na
Ação da Cidadania, a tragédia em Petrópolis (RJ),
que deixou mais de 240 mortos em fevereiro de 2022, forjou iniciativas ora em
curso no Rio Grande do Sul, conta o coordenador Kiko Afonso. No primeiro
momento, resgate, acolhimento, comida pronta, água, itens de higiene. A segunda
fase, de volta para casa, demanda por cestas básicas, reposição de
eletrodomésticos invariavelmente perdidos, como fogão e geladeira. Há tarefas
de curto, médio e longo prazos. Muitas vezes, as doações se concentram no
início.
—
É um aprendizado que evita desperdício. As pessoas continuam precisando de
ajuda por meses a fio, mas muitos itens acabam descartados. Em Petrópolis, 60%
das roupas, por estarem em más condições. Alimentos vencidos ou de curta
validade também não servem. Empresas e pessoas físicas precisam saber melhor
como colaborar. Agentes públicos deveriam se sentar antes com as organizações
para elaborar as ações. Infelizmente, a mobilização diminui com o tempo —
desabafa.
A
catástrofe no Rio Grande do Sul deverá consumir R$ 19 bilhões no esforço de
reconstrução, estimou o governador. São recursos para recuperar estradas e
pontes, construir casas, reformar espaços públicos, recompor atividade
produtiva. Mas há que falar em recomposição da cobertura vegetal, incluindo
encostas e matas ciliares; frear a expansão irresponsável da fronteira
agrícola, não só no estado, mas no país; respeitar comunidades indígenas e
povos tradicionais.
No
lado humano, desafios são imensos. Denise Dora, da organização social Themis,
chama a atenção para as necessidades dos diferentes grupos populacionais. Em
abrigos, ao menos cem mulheres com medidas protetivas por violência doméstica
convivem com agressores; elas e filhos precisam de ambientes seguros. Casos de
abuso e até estupro não cessam em situações extremas; a Brigada Militar já
prendeu cinco agressores. Rondas feministas orientam voluntárias a acompanhar
meninas e mulheres em banheiros e acionam o Conselho Tutelar. No RS, 2,2
milhões de pessoas têm 60 anos ou mais; 1,1 milhão, algum tipo de deficiência.
Demandam ações em saúde, mobilidade, comunicação, assistência psicológica.
—
As agendas de cuidado e reconstrução terão de levar em conta todas essas
dimensões de desigualdades. Segurança alimentar, saúde mental, itens de
higiene, como fraldas infantis e geriátricas, absorventes. Olhar a
interseccionalidade será um grande desafio, entre tantos — resume.
* Trinta anos como jornalista no GLOBO, completados ontem. Abraço e agradeço a quem me admitiu, a quem me acolhe, a quem me lê.
Um comentário:
Uau, a mulata GloboNews mudou o título. Às sete era: "a relevância do Estado emerge da catástrofe". Às 8 mudou para o atual, com o subtítulo em epígrafe.
Mudou por quê? Porque apanharia mais que escravo fujão, visto que o Estado falhou totalmente em POA. Aliás, falha lá há 80 anos! Além disso, faz muito bem o mercado em não se meter em nada público...
Texto ridículo, de quem ainda vive nos anos 50. MAM
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