Folha de S. Paulo
Crise da ordem liberal, apontada pela revista
'The Economist', pode se aprofundar e expandir conflitos militares
A ordem global das últimas décadas está sob
estresse. A grande máquina do mundo, que parecia ter engatado uma nova marcha
no arranjo liberal que se desenhou após a queda da União Soviética, vê-se
ameaçada por fricções que podem levá-la até mesmo ao colapso.
O termo é forte, mas quem o utiliza como uma possibilidade no horizonte é a revista The Economist, em seu assunto de capa desta semana. A publicação britânica enfatiza uma progressiva deterioração do sistema econômico ocidental, mas não esquece as conexões políticas e institucionais, num quadro de inoperância de organismos como o Conselho de Segurança da ONU ou o FMI, e eclosão de conflitos que levantam o fantasma da guerra.
Os alertas sobre essas turbulências não são
novidade.
A reação à invasão da Ucrânia pela Rússia, em
alegada resposta de Putin às pressões
expansionistas da Otan após o fim do Pacto de Varsóvia, demonstrou que
medidas de restrição econômica, como as
sanções lideradas pelos EUA, não atingem seus objetivos.
O recurso à China, à Índia ou outras
"potências médias" que não se alinham à política externa americana
–ou a ela se opõem– permitiu que a economia russa se virasse bastante bem, de
modo surpreendente para muitos. O avanço do governo Biden nas chamadas sanções
secundárias, voltadas para o sistema que oferece válvulas de escape para os
russos, é já uma tentativa extremada, que poderá gerar mais atritos sem que se
obtenham os resultados esperados.
Parece evidente que a negociação de uma perda
territorial da Ucrânia, a essa altura da guerra, será inevitável –salvo medidas
temerárias para uma eventual tentativa de emparedar Putin militarmente. E o
líder russo já disse que está pronto para isso.
No outro foco de tensões, a ofensiva brutal
de Israel em
Gaza, após o ataque terrorista do Hamas, vê-se que
as fraturas em escala internacional atingiram patamares inesperados. A cegueira
do fundamentalista de Binyamin
Netanyahu, com seu séquito de supremacistas, já encontra no governo
norte-americano, veja
só, um opositor.
A tentativa de eliminar o Hamas com custos
humanitários inaceitáveis e a destruição física de Gaza é um erro que prenuncia
consequências nefastas. Israel já perdeu grande parte do apoio de potências
ocidentais, tornou-se alvo de protestos mundo afora e está a um fio de arruinar
a possibilidade de um acordo envolvendo os EUA e a Arábia Saudita para tentar
estabilizar a região.
Biden não sofre apenas pressões de setores
liberais, estudantes e membros de seu partido em ano eleitoral. Também move-se
–e principalmente– para evitar o risco de que uma ofensiva sobre Rafah acabe de
vez com as chances de costurar esse entendimento regional com os sauditas, que
já haviam demonstrado interesse na normalização das relações com Israel, e
outros países árabes. A ideia seria consolidar um sistema de cooperação com
vantagens econômicas e de segurança, em especial a contenção do Irã.
Thomas
Friedman, em coluna nesta Folha,
explicou muito bem o dilema entre o mapa que leva a Riad e o que leva ao
isolamento, com terreno fértil para novos radicalismos, repetindo-se o que foi
o Iraque para os americanos.
Infelizmente, neste cenário de estresse e
mudanças globais, a força bruta é sempre um impulso sombrio da humanidade.
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