Valor Econômico
Muita coisa ruim ou complicada está se
espalhando, e a humanidade não está conseguindo sair desse buraco, mas o
desfecho não está definido de antemão
Uma ideia não me saiu da cabeça desde que, na semana passada, ouvi uma mãe em situação de rua chamar sua filha. Andava pela avenida Paulista e via o cenário de crescimento da pobreza urbana que ganhou uma enorme magnitude a partir da pandemia - e da forma desastrosa que o Brasil lidou com ela. Não consegui compreender bem qual era o nome da menina, mas sonhei com a cena e no meu devaneio noturno ela se chamava Esperança. Daí em diante senti a necessidade de lhe falar sobre o presente nebuloso que gera um futuro incerto, quase um não futuro. Na minha impotência, o que me sobrou foi escrever uma carta:
“Querida Esperança,
Não tive tempo ou coragem para te conhecer
direito. Mas a cena em que vi você com sua mãe nas ruas de São Paulo me fez
pensar sobre o mundo que nos rodeia. Sei que sua vida é muito mais complicada
do que a minha ou do que a de outras crianças, como a minha filha de 15 anos,
que tem as oportunidades retiradas de um conjunto enorme de meninos e meninas
brasileiras. Não conheço sua trajetória, nem posso avaliar em detalhes suas
carências. O que tenho condições de falar é sobre o momento que passamos, tentando
abrir alguma janela de esperança a quem tem esse nome e talvez tenha
dificuldades de usufruir desse sentimento.
Há períodos na história em que o futuro se
torna muito incerto e nebuloso. Até nos contos de fadas, a que nem sei se teve
acesso, príncipes e princesas passam por maus bocados. E parece que o mundo
está entrando num desses momentos, com a emergência de vários fatores que
tornaram a vida mais perigosa e complexa no planeta. Gera-se um clima de
triunfo dos pesadelos sobre os sonhos. Alguns chamam isso de distopia, que é o
contrário do mundo ideal. Muita coisa ruim ou complicada está se espalhando, e
a humanidade não está conseguindo sair desse buraco.
Os problemas atuais são imensos, mas não são
incontornáveis, nem o desfecho está definido de antemão. Existe um espaço para
alterar o rumo da história, e para fazermos isso é preciso conhecer quais são
as principais barreiras e soluções para se construir um futuro melhor para
todos. É preciso frisar esta expressão: um futuro melhor para todos. Porque o
que está acontecendo hoje são duas coisas que dificultam esse ideal coletivo.
A primeira é o crescimento das desigualdades
- de renda, racial, de escolaridade, de gênero e territorial. Sabe, Esperança,
o mundo teve muitas melhoras para muita gente entre o fim do século XX e o
começo do século XXI. Isso também ocorreu no Brasil a partir da
redemocratização, com uma nova Constituição, que, pela primeira vez em nossa
história, disse que todos somos iguais, e especialmente no período em que dois
presidentes, Fernando Henrique e Lula, conseguiram ser muito bem-sucedidos num
projeto de mudanças.
Claro que as diferenças sociais não deixaram
de existir, mas elas se reduziram em muitos lugares, e em São Paulo havia menos
população que vivia na rua do que há hoje. Se tivesse nascido um pouco antes,
talvez você não tivesse que pedir junto com a sua mãe a sobra dos outros. Mais
do que isso: havia a sensação de que poderíamos criar um país no século XXI que
paulatinamente aumentaria as oportunidades para todo mundo. Esse sentimento se
enfraqueceu nos últimos anos. De todo modo, não me sinto confortável nem feliz
com o fato de que o futuro de muitos esteja cada vez mais distante das
condições futuras de poucos.
Só que o século XXI trouxe um problema maior
do que as desigualdades que marcam nossa história, porque agora todos podem
entrar no mesmo barco da desesperança. O que está em jogo é o futuro do
planeta, da humanidade como espécie. Tratamos muito mal a natureza nas últimas
décadas. O relógio do descaso humano acelerou-se e o castigo vem na forma de
desastres naturais cada vez mais frequentes. A tragédia inominável no Rio
Grande do Sul é um exemplo do que pode vir pela frente. Lá, muita gente que
tinha casa, comida e roupa lavada está em condições similares às que você e sua
mãe conhecem muito bem: a tristeza das carências cotidianas e a
imprevisibilidade sobre o dia de amanhã.
Não há mais tempo para brincarmos de deuses
inconsequentes em relação ao meio ambiente. Tudo o que construímos durante
séculos, usando nossa criatividade e suor, pode ser colocado em jogo. Grupos
poderosos e líderes mentirosos têm evitado que comecemos um processo de defesa
do planeta. Eles continuam dizendo que os desastres naturais sempre
aconteceram. São os mesmos que culpam os pobres pela pobreza e gostariam que
voltássemos ao tempo da escravidão, quando havia senhores e escravizados, e não
direitos iguais para todos.
Talvez essas grandes questões estejam muito
longe da sua dura realidade cotidiana, Esperança. Porém, os grandes problemas
são a fonte das injustiças. Não sei se frequenta a escola, mas lá seria o lugar
ideal para você aprender como superar nossas mazelas, tendo um olhar crítico
sobre os erros dos seres humanos, como também sobre as possibilidades de
correção. A educação é o melhor caminho para termos menos gente morando na rua,
menos presídios, mais diálogo entre as pessoas que pensam diferente e mais chances
de termos uma sociedade solidária.
Como um adulto que teve a sorte de ter tido
oportunidades educacionais, mesmo que em escolas públicas da periferia de São
Paulo, me sinto no dever de lhe contar quais são as incertezas do século XXI
que tornam mais incerto o futuro para todos. Em primeiro lugar, no topo das
preocupações, está a questão ambiental. Se não fizermos imediatamente a lição
de casa para desacelerarmos a mudança climática, se não cuidarmos melhor das
nossas florestas, rios e oceanos, e se, em suma, não tomarmos consciência de que
nossos atos importam na regulação do planeta, há grandes chances de muita gente
passar pela experiência de viver em escombros, e não nos lindos prédios que
você, Esperança, admira ao viver nas ruas e não poder usufruir do conforto do
lar.
Tal cenário pode parecer um exagero, como
muitos poderiam retrucar. Mas, quem, honestamente, teria previsto há alguns
meses que o Rio Grande do Sul viveria a situação em que está hoje? Na verdade,
não temos ideia do que a natureza rebelada por nossas atitudes irresponsáveis
pode fazer nos próximos anos. O futuro se tornou mais incerto do que em
qualquer outra época da história.
O mundo também se tornou mais perigoso com a
disputa das grandes potências e com os recentes conflitos na Ucrânia e nos
territórios de Israel e Faixa de Gaza. A Europa, como berço da civilização
ocidental, está em risco com o projeto expansionista russo. O conflito no
Oriente Médio tem sido recorrente, mas ganhou um ar de crueldade recíproca que
coloca em jogo a estabilidade da região e a crença de que tenhamos aprendido
com os massacres do passado. Para piorar, as duas mais poderosas nações,
Estados Unidos e China, entraram numa rota de colisão que pode nos levar a um
conflito mundial, com proporções ainda desconhecidas.
A tecnologia é sempre admirada por todos nós,
e você deve sonhar com os celulares dos que passam por ti em meio à carência
material de sua situação de rua. Não se envergonhe disso, Esperança, porque
quase todas as crianças e jovens são aficionadas por máquinas novas de
comunicação e entretenimento. Entretanto, aquilo que deveria ter apenas um uso
positivo tem gerado muitas preocupações e angústias. Duas são as principais.
Uma é o uso cada vez mais frequente das redes sociais para produzir ódio e
divisão entre as pessoas. Veja que triste: em meio a uma tragédia como a do Rio
Grande do Sul, a internet foi utilizada para espalhar mentiras que atrapalham o
auxílio dos que necessitam de ajuda. Alguns chamam isso de liberdade de
expressão. Eu chamo isso de crueldade criminosa, um atentado contra a
humanidade.
Outro temor trazido pela tecnologia no século
XXI é a possibilidade, cada vez maior, de ela se tornar incontrolável pelos
seres que a criaram. A veracidade das informações e a substituição dos homens
pelas máquinas são duas enormes preocupações. Mentiras podem se tornar mais
difíceis de serem combatidas e a autoria das ideias ficar mais obscura,
atingindo a nossa grande liberdade que é a criatividade. Pior: milhões de
empregos podem ser destruídos e, assim, talvez você tenha mais vizinhos de rua
no futuro, tornando ainda mais selvagem a vida de quem não tem onde morar e o
que comer.
Meu temor maior sobre o século XXI é o
crescimento das desigualdades. Me assusta como meu círculo social aceita que
uma menina como você, Esperança, possa viver com sua mãe numa condição indigna
para um ser humano. E me amedronta ainda mais saber que, em vez de estarmos
caminhando para resolver esse problema, talvez estejamos indo na rota
contrária.
Não sei se a encontrarei ou se terei coragem
de entregar essa carta. No fundo, espero que os que leiam lembrem de você como
a expressão de muita gente que não tem um futuro pela frente. Se não posso
resolver sozinho as suas carências, querida Esperança, continuarei lutando para
melhorar, no que me cabe, o mundo que nos circunda. E não vou me esquecer de
seu nome porque é ele que me guia mesmo nos piores dias”.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas
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