O Globo
Após adoção do equipamento em São Paulo,
mortes decorrentes de intervenção policial caíram
O Ministério da Justiça (MJ), na Portaria sobre as diretrizes para uso de câmeras corporais por órgãos da segurança pública, listou oito valores a nortear as recomendações que condicionarão repasses federais a estados e municípios. A lista vai do respeito aos direitos fundamentais à promoção da cidadania; do reconhecimento aos agentes da lei aos princípios da legalidade e da transparência. Aos bem-intencionados, bastava uma justificativa: manter vivos os jovens negros favelados, vítimas (tragicamente) habituais da letalidade violenta, das abordagens policiais por perfilamento racial, do encarceramento em massa. É sobre isso a política pública que São Paulo, anos atrás, pôs de pé e ora desmonta.
Pesquisa de Unicef e
Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que, após a adoção das câmeras
corporais no estado, as mortes decorrentes de intervenção policial caíram
62,7%: de 697 em 2019 para 260 em 2022. A queda foi maior (76,2%) nos 62
batalhões que incorporaram os equipamentos à rotina; nas 73 unidades que não
aderiram aos dispositivos, o recuo foi de 33,3%. O Instituto Sou da Paz apurou
queda de 46% nos óbitos de jovens de 15 a 24 anos causados por policiais no
biênio 2021-2022, comparados aos dois anos anteriores. Foram 323 vítimas a
menos. Mais que reforçar a produção de provas materiais ou apoiar treinamento e
qualificação de policiais, as câmeras corporais tornaram-se instrumento de
preservação da vida. Por isso, valem muito.
Desde o início do terceiro mandato do
presidente Lula,
havia a promessa de elaborar um protocolo de uso pelas forças de segurança.
Anunciadas por Flávio Dino,
então titular da Justiça, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal, as
diretrizes materializaram-se na Portaria 648/2024, assinada por Ricardo
Lewandowski, ex-STF,
hoje no MJ. O conjunto de recomendações que condicionam o acesso dos entes
federativos aos recursos dos fundos nacionais Penitenciário e de Segurança
Pública é bem-vindo só por existir. Afinal, é medida que sucede à cadeia de
retrocessos empreendida pelo ex-presidente Jair
Bolsonaro — e ainda em curso, tanto no Congresso Nacional quanto na
gestão Tarcísio de Freitas, o governador bolsonarista de São Paulo.
Com a flexibilização do acesso a armas e
munição, bem como o afrouxamento da fiscalização, Bolsonaro permitiu um derrame
que levará tempo — anos, décadas — para ser contido. A quantidade de armas em
acervos particulares no país mais que dobrou entre 2018 e 2022. Saíram de 1,320
milhão para quase 3 milhões (2,965 milhões). Quatro em cada dez armas, no
último ano de Bolsonaro do Planalto, estavam nas mãos dos CACs (caçadores,
atiradores e colecionadores).
Um ano atrás, Lula assinou decreto
estabelecendo novas regras para compra, registro, porte, posse, cadastro e
venda de armas. Na última terça-feira, tarde da noite, a Câmara
dos Deputados aprovou em votação simbólica decreto legislativo que
revoga parte da nova regulamentação, entre as quais o artigo que proíbe
instalação de clubes de tiro a menos de 1 quilômetro de escolas públicas e
particulares. Os parlamentares também alteraram restrições a armas de uso
restrito e compra de munição, ao mesmo tempo que investigações policiais têm
apontado CACs como fornecedores de armamento para facções criminosas em estados
como SP, BA, AL, PE, TO.
Nas diretrizes sobre uso de câmeras
corporais, o MJ lista a série de situações a ser gravadas. Daniel Hirata, do
Grupo de Estudos de Novas Ilegalidades (Geni-UFF), diz que elas cobrem
praticamente toda a rotina de agentes da lei, entre as quais atuação ostensiva,
busca pessoal, de veículos e domicílios, perícias, cumprimento de mandados,
rotinas carcerárias e escoltas, resoluções de crises, controle de distúrbios
civis e manifestações, acidentes de trânsito, patrulhamento e diligências com
atos de violência, lesões corporais ou morte. Embora autorize gravações
automáticas, remotas e por acionamento dos policiais — como propõe o governo
paulista em edital recém-lançado —, a Portaria estabelece o registro
audiovisual nos 16 tipos de ocorrências mencionadas.
As gravações deverão ser mantidas por, no
mínimo, 90 dias; e por um ano se relacionadas a inquéritos e processos, morte e
lesão corporal grave ou sejam do interesse da segurança pública. Deverá ser
garantido o acesso por magistrados, membros de Ministério Público e Defensoria,
advogados de vítimas, acusados ou investigados. Especialistas consideram
importante que a Portaria tenha contemplado regras para armazenamento, descarte
e requisição de imagens. E lamentam que o MJ tenha deixado a critério dos estados
as modalidades de gravação. “A Portaria não traz uma solução definitiva para a
controvérsia a respeito das gravações das câmeras corporais, pois não é
taxativa. Teria mais efetividade, caso vinculasse o recebimento de recursos aos
casos em que a gravação fosse ininterrupta”, defendeu o Sou da Paz em nota.
Oportunidade desperdiçada.
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