sexta-feira, 31 de maio de 2024

Luiz Gonzaga Belluzzo e Nathan Caixeta - Financeirização, confusões, história

CartaCapital

No irreconhecível capitalismo de sempre, a forma financeira é onipresente

A palavra “Financeirização” passou a circular com ares de grã-fina elegante nos bailes em que se exibem as celebridades do nosso tempo. A dama Financeirização está sempre acompanhada de seu fiel companheiro, senhor Neoliberalismo, e da comadre inquieta, Dona Globalização.

Estimulados pelos demais convivas, a trinca dança ao som dos acordes e batuques da orquestra “Capitalismo Contemporâneo”. Os críticos se dividem entre simpáticos e detratores, uns e outros exibindo laivos de moralismo que turbam a avaliação do desempenho dos dançarinos.

É mister reconhecer que muitos observadores dos rodopios um tanto abruptos da senhora Financeirização tiveram a ventura de viver ou estudar os passos suaves e elegantes das dançarinas do Bem-Estar que por 30 anos ofereceram seus talentos à fruição de mulheres e homens de seu tempo.

Até o final dos 1970, dizem, a ­Orchestra Capitalismo tocava os acordes do desenvolvimento econômico e a turma deslizava nas pistas do bem-estar social e do pleno emprego, este último abrigado, sobretudo, nas casamatas do fordismo industrial. Nas beiradas da pista estavam os vigilantes da Repressão Financeira, dispostos a impedir escorregões provocados por passos abusivos.

Ao acompanhar os passos de ­Madame Financeirização e do Senhor Neoliberalismo, Dona Globalização encurralou as alternativas de desenvolvimento nacional, obrigando governos a orientar ­suas políticas econômicas em resposta aos agouros e trepidações dos fluxos de capitais. O crescente poder de Madame Financeirização sobre as decisões de investimento e alocação da riqueza alterou radicalmente o comportamento da Grande Empresa, que ficou refém das expectativas de valorização patrimonial sob o comando de bancos, fundos de pensão, fundos de investimento e tutti quanti. Finalmente, o Senhor Neoliberalismo capturou os Estados Nacionais, condenando as sociedades e seus cidadãos às penas e obrigações da austeridade perpétua.

Os jeitos, trejeitos e mal jeitos da senhora Financeirização nos incitam a investigar sua genética e assim evitar considerações apressadas a seu modo de ser.

Roberto Fineschi, no artigo Marx’s Class Theory 2.0, se ocupa do ­significado da história na obra de Marx. Diz ele: “O ‘histórico’ tem um significado ontológico: não é a descrição ou inclusão de fatos que ocorreram em um determinado momento, mas uma estrutura teórica em que ocorre um desenvolvimento dialético, ‘formal’; a reprodução humana implica passagens e transformações estruturais; fases internas, lógicas. Essa é sua ‘história’, uma totalidade articulada em fases que se sucedem umas às outras. Momentos temporais logicamente determinados de uma totalidade”.

A tentativa de apreender o sentido histórico da dita “financeirização” sugere uma investigação da natureza ontológica da finança capitalista. Seguimos, neste sentido, a recomendação de Fernand Braudel: “A relação de forças, na base do capitalismo, pode esboçar-se e ser reencontrada em todas as etapas da vida social. Mas, enfim, é no topo da sociedade que o primeiro capitalismo se desenvolve, afirma a sua força e se revela aos nossos olhos. E é à altura dos Bardi, dos Jacques Coeur, dos Jakob Fugger, dos John Law ou dos Necker que se deve ir procurá-lo, que se tem uma chance de descobri-lo”.

Karl Marx, em sua investigação sobre o funcionamento do modo de produção capitalista, procurou reconstituir as categorias que estruturam o movimento desse modo de produção. Nos ­Grundrisse, Marx discute a interpenetrabilidade das formas. As formas gerais – mercadoria, dinheiro, subordinação do trabalho pelo capital-forças produtivas – de acumulação e reprodução se acoplam às formas concretas da concorrência, do capital a juros e do capital fictício para ensejar a constituição da estrutura e mover a dinâmica do Regime do Capital.

O Regime do Capital só é apreensível na medida em que tomamos como objeto – ponto de partida – o todo desenvolvido para, em seguida, reconstituir as conexões entre as formas dominantes (concretas), e as formas elementares (abstratas).

Ao tratar das formas financeiras, das categorias do capital a juros e do capital fictício, Marx as descreve como formas concretas que sobredeterminam as formas elementares, aquelas que habitam os reinos da produção e intercâmbio de mercadorias.

Essa subordinação necessária da produção e da troca às formas financeiras se realiza na “natureza peculiar do dinheiro”, como Marx explica, para turbação dos neurônios positivistas: “…evidencia-se de novo na separação do negócio de dinheiro do comércio propriamente dito. Vemos, portanto, como é imanente ao dinheiro realizar suas finalidades à medida que simultaneamente as nega; se autonomizar em relação às mercadorias; de meio, devir fim; realizar o valor de troca das mercadorias ao se separar dele; facilitar a troca ao ­cindi-la; superar as dificuldades da troca imediata de mercadorias ao generalizá-las; autonomizar a troca em relação aos produtores na mesma medida em que os produtores devêm dependentes da troca”.

“Afirmar” e “negar”, “separar” e “unir”, os atos e façanhas do dinheiro não induzem a separação entre produtivo e financeiro, mas manifestam as contradições imanentes da dinâmica do capital em sua saga realizadora.

Braudel, em seu clássico Civilização Material, Economia e Capitalismo, comenta a respeito do papel desempenhado pelos “fornecedores de dinheiro”: “Acumulai! Acumulai! É o que manda a lei para uma economia capitalista. Também se poderia dizer: Emprestai! Emprestai! É o que manda a lei e todas as sociedades acumulam, dispõe de um capital que se divide entre uma poupança entesourada e então inútil, mantida à espera, e um capital cujas águas benéficas passam pelos canais da economia ativa, outrora sobretudo a economia mercantil. Se esta não for suficiente para abrir ao mesmo tempo todas as comportas possíveis, haverá quase forçosamente um capital imobilizado, desnaturado, poder-se-ia dizer. O capitalismo só estará plenamente instalado quando o capital acumulado for utilizado ao máximo, sem nunca se atingir, evidentemente, os 100%”.

Como forma necessária que realiza os propósitos da acumulação de riqueza abstrata – isto é, de dinheiro –, o crédito funda e designa os destinos do capital posto em funcionamento na produção e na circulação.

Na reprodução ampliada do capital, na qual o dinheiro vira mais dinheiro através da exploração do trabalho na produção e circulação de mercadorias, o crédito é o agente fundante do processo ao adiantar riqueza potencial na forma capital-dinheiro. Trata-se do valor antecipado para fazer girar o circuito produtivo-mercantil. Em sua ânsia de valorização, o dinheiro de crédito se afasta das contingências da produção e da troca, para ser acolhido nas trepidações do circuito monetário-financeiro.

É na forma financeira que o capitalismo revela sua natureza, seu modo de ser. A criação de nova riqueza é a manifestação peculiar do caráter geral do capital.

As transformações ocorridas nos sistemas financeiros, o aperfeiçoamento dos métodos de gestão, a multiplicação dos meios de compartilhamento de riscos e a crescente interpenetração comercial, produtiva e financeira dos mercados não alteraram a forma de ser do capitalismo. Ao contrário, tais transformações estenderam e aprofundaram a manifestação de seu caráter autorreferente, antes e agora. Ensina Braudel: “… o capitalismo sempre foi monopolista, e mercadorias e capitais nunca deixaram de viajar simultaneamente, tendo os capitais e o crédito sido sempre o meio mais seguro de alcançar e forçar um mercado exterior. Muito antes do século XX, a exportação de capitais foi uma realidade cotidiana, para Florença desde o século XIII, para Augsburgo, Antuérpia e Gênova no século XVI. No século XVIII, os capitais correm a Europa e o mundo. Todos os meios, procedimentos e estratagemas do dinheiro não nasceram em 1900 ou em 1914, precisaria dizê-lo? O capitalismo conhece-os todos e, ontem como hoje, a sua característica e a sua força são de poder passar de um estratagema para outro, de uma forma de ação para outra, de mudar dez vezes suas baterias segundo as circunstâncias da conjuntura e, assim fazendo, permanecer bastante fiel, bastante semelhante a si mesmo”.

Esse instinto transformador, pronto a inovar os meios de produção e extração de valor, aperfeiçoa e potencializa o caráter autorreferente do capital. Eis o sentido geral da (mal)dita financeirização como fenômeno constitutivo do capitalismo, que se transforma para “realizar sua natureza”.

No capitalismo plenamente investido em todas as suas formas, a contradição está abrigada nas próprias relações entre as formas de posse da riqueza. No movimento da acumulação, ao longo do processo de expansão do valor, ampliam-se os estoques de ativos reais e financeiros, ao mesmo tempo que o progresso tecnológico “desvaloriza” continuadamente a força de trabalho e o estoque de capital produtivo existente.

Esse movimento realiza a dinâmica contraditória (dialética) que afirma a natureza Dinheirista e Financeira do Regime do Capital, que subordina as formas elementares do trabalho e da troca. 

Publicado na edição n° 1313 de CartaCapital, em 05 de junho de 2024.

Um comentário:

Mais um amador disse...

Luiz Gonzaga Belluzzo é de esquerda. O Partido Comunista Chinês, suponho, também é de esquerda.

Luiz Gonzaga Belluzzo é um crítico ( contumaz? 🤔 ) da globalização, do neoliberalismo e afins. Yu Peng é cônsul-geral da China em São Paulo, portanto um representante do Partido Comunista Chinês em terras tupiniquins.

Yu Peng faz uma publicação no Poder 360, " Chega do falso discurso de excesso de capacidade da China ", no qual faz uma notória defesa da globalização, das economias de mercado, da concorrência e dos efeitos positivos decorrentes do processo de adequação de seu país às novas exigências que a chamada agenda climática aponta, em uma contundente crítica ao atual discurso protecionista dos Estados Unidos.

Agora fiquei em dúvida: " adotar " qual dos dois discursos ?

😏😏😏