quarta-feira, 22 de maio de 2024

Fernando Exman - Uma fábula sobre a relação Lula-Centrão

Valor Econômico

Autoridades do governo Lula não confiam no Centrão e acreditam que em 2026 as legendas que integram o grupo terão uma candidatura de oposição

A fábula “O homem e a raposa”, de Esopo, poderia ter sido escrita sob a inspiração da relação do governo Lula com o Centrão. Diz que um homem estava possesso com uma raposa. Ele então pegou esse animal que vinha prejudicando-o e, como queria “infligir-lhe um bom castigo”, amarrou à sua cauda uma estopa embebida de óleo e ateou fogo. Depois o homem a soltou em pleno campo, mas a esperteza da raposa a fez correr para a lavoura de seu carrasco.

Ao acompanhar os seus passos, o homem ia se lamentando diante da colheita perdida. A moral da história está no desfecho do pequeno texto, seguindo o padrão do célebre autor grego: “Calma! Não te deixes levar pela desmedida: tua raiva poderá te causar um grande mal”.

Autoridades do governo Lula não confiam no Centrão. Acreditam que lá na frente, em 2026, as legendas que integram o grupo se aglomerarão em torno de uma candidatura de oposição. Acham que poderiam ter mais ajuda desses partidos no Congresso, uma vez que eles mantêm representantes na Esplanada dos Ministérios, e veem seu apetite pelos recursos do Orçamento como algo a ser combatido.

Do lado do Centrão, por seu turno, não é desprezível o incômodo com o que se considera uma espécie de “exumação” da análise do chamado “orçamento secreto” pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

A ação era relatada pela ministra aposentada Rosa Weber. Em dezembro de 2022, a Corte declarou a prática, até então alicerçada nas emendas de relator, incompatível com a ordem constitucional. Um acordo durante a tramitação da PEC da Transição remanejou essas verbas para outras rubricas, como emendas individuais impositivas e mais verbas para os ministérios.

Desde então, observa-se um crescimento do volume das emendas de comissão e das “emendas Pix” - transferências especiais feitas diretamente pelos ministérios para prefeituras a pedido de parlamentares, as quais são consideradas pouco transparentes e menos conectadas com o planejamento do governo central para as políticas públicas.

Antes mesmo da aposentadoria de Rosa Weber, em setembro do ano passado, já havia um sentimento dentro do STF de que, na prática, o orçamento secreto acabara sobrevivendo, mas sob outros formatos. Porém, o assunto não havia sido recolocado sobre a mesa, até que o ministro Flávio Dino, que substituiu Rosa na Corte após deixar o cargo de titular da Justiça e Segurança Pública do atual governo, pediu explicações da Presidência da República e do Congresso sobre o cumprimento da decisão de 2022. Ele sempre foi um crítico do orçamento secreto.

Até agora, Lula não enviou comentários. As duas Casas do Legislativo já juntaram aos autos suas respostas. Ambas negam haver descumprimento da decisão. A Câmara, deve-se registrar conforme já detalhou o Valor há alguns dias, disse que cabe aos ministros de Estado dar publicidade aos critérios de distribuição que orientaram a execução desses recursos.

O acompanhamento da aplicação dessas verbas é, de fato, uma preocupação. Primeiro, o Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu que, de acordo com a Constituição, a fiscalização do uso das “emendas Pix” enviadas para Estados, municípios e Distrito Federal cabe aos tribunais de contas locais. E na sequência aprovou uma instrução normativa para regulamentar os procedimentos de fiscalização das transferências especiais.

Os órgãos estaduais e municipais passaram a ter prazo de 60 dias para fornecer informações e documentos sobre a execução do dinheiro. Eles precisarão, por exemplo, apresentar descrição do objeto a ser executado, com as metas a serem alcançadas; estimativa dos recursos financeiros necessários à consecução do objeto; classificação orçamentária da despesa; e previsão de prazo para conclusão do projeto.

A norma também prevê a elaboração de relatório de gestão dos recursos, que deverá ser inserido em uma plataforma federal até o dia 30 de junho do ano subsequente ao recebimento da transferência especial. Mas a avaliação no TCU é que só uma mudança na Constituição seria capaz de fazê-lo ampliar sua atuação no controle desses mecanismos orçamentários. Ou uma mudança na interpretação da Carta Magna, a partir de alguma decisão do STF.

Ainda há dúvidas se o prosseguimento da ação relatada pelo ministro Flávio Dino, no STF, pode ter algum desses desfechos. Nos demais Poderes, a percepção é que ele está “tateando” o terreno para ver eventuais reações de seus pares no Supremo.

No Congresso, a iniciativa já gerou desconfianças entre aqueles que consideram a emenda parlamentar uma ferramenta fundamental para fazer política e reduzir a dependência do Legislativo em relação ao Executivo quanto ao envio de recursos para redutos eleitorais.

Essas raposas não estão dispostas a abrir mão da influência conquistada na gestão do Orçamento Geral da União, algo que Lula precisará considerar antes de se posicionar oficialmente a respeito. Até porque o presidente tem dito em seus discursos públicos que pretende transformar 2024 em um ano de colheita.

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