O Globo
O cataclismo no Rio Grande do Sul demanda uma
reação inesperada porque não é ‘político’. Não tem nem lado de ‘direita’ nem de
‘esquerda’
Desastres ensinam o óbvio infalível dos
inesperados que reafirmam nossa ignorância, desmazelo e onipotência. Alertam
sobre o que precisamos aprender e chamam a atenção para os limites de nossas
certezas. Para o fato de não haver rotina, treinamento, regra, programa ou
costume que não tenha a sua contraparte no acidente, no esquecimento, na
mentira, na ausência e na surpresa do que está aquém ou além da plausibilidade
do aqui e agora, garantidores da concretude do real.
São os imprevistos humanos ou naturais que nos obrigam a parar para pensar. O imprevisto força a desconfiar do previsto. Coage a tomar consciência do exagero ou da intrigante falha que promoveu o inesperado. Do inesperado que desmanchou a cena, o roteiro, o plano, esquema ou rotina, obrigando a realizar o grave e difícil exercício de “ouvir, parar e olhar”, como dizem os avisos americanos nas encruzilhadas ferroviárias.
Dos nossos, eu não posso falar, porque
liquidamos estupidamente nossas ferrovias. Ademais, eles jamais seriam lidos
por passantes analfabetos. Essa condição trágica e básica da secular opressão
do nosso “povão”. Povo ou gente que, como clama nossa habitual hipocrisia
populista, tudo merece! Não há como duvidar de que enriquecemos à sua custa e
por meio dele! Temos, portanto, que manter esse amado “povão” como “massa”.
Massa ignara sem a qual não exerceríamos nossa indiscutível ascendência
bacharelesca, jurídico-legal, militar, acadêmica, ideológica, religiosa,
artística e moral. Ascendência confirmadora desse papel de professores e
salvadores do povo, usando os mesmos chavões e leis que dependem dos indiciados
para ser cumpridos. Leis que confirmam que o crime compensa.
Sem esquecer, é claro, as clássicas receitas
ideológicas mal entendidas (algumas, lembro, escritas em alemão...) que nós,
bacharéis e burros-doutores, palpitamos com o intuito de destruir, enervar ou
simplesmente chatear nossos adversários. Esses “outros” que a igualdade torna
antagonistas para a infelicidade do nosso coração aristocrático, que
imediatamente invoca as hierarquias não politizadas assegurando supremacia
social. A nostalgia da gradação social mantém vivo o “você sabe com quem está
falando?”. Essa advertência incompatível com a isonomia democrática, cuja
função é impedir a impessoalidade exigida pela difícil igualdade democrática.
Igualdade que, como aprendi com Millôr
Fernandes, meu mestre em ciências ocultas e letras apagadas, desmantela o “sabe
com quem está falando?” e previne a presença da velha ordem social ordenada em
múltiplas polaridades: senhores/escravos, pretos/brancos,
superiores/inferiores, pobres/ricos, santos/pecadores, progressistas/fascistas.
Nessa estrutura dualista, os inesperados sociais são tragédias ou escândalos
salvacionistas.
O cataclismo gaúcho demanda uma reação
inesperada porque não é “político”. Não tem nem um lado de “direita” nem de
“esquerda”. Sendo natural e não tendo intenções, atinge a totalidade humana a
seu redor de modo igualmente indiferenciado.
Então, como reagir, se nossa administração
pública é relacional e politizada? Como agir com presteza e eficiência com um
sistema administrativo amarrado em si mesmo? Um sistema pateticamente
burocratizado, porque não pensa em eficácia, mas em autoproteção e em manter o
poder. Em salvaguardas, porque nossa índole política é assaltar o que é de
todos. A “coisa pública” de que os administradores eleitos pelas nossas
esperanças se apoderam, porque o que é público não é de ninguém, logo é de quem
abocanha o poder.
A catástrofe natural mostra os limites de um
sistema político alérgico a sacrifícios e altruísmos, orientado que está pela
mesquinhez e pelo sectarismo dos “governos” que, no fundo e, com o perdão pela
ofensa, não merecem a democracia.
A enchente grita que é preciso governar para
o Brasil, e não para partidos, grupos, segmentos, burocracias e corporações.
Todos têm direito a influenciar o país e, no governo, a propor suas diretrizes,
mas o Brasil tem de ser guiado por meio de projetos comuns. Fala-se muito em
“Estado” e “governo”, mas os governos sempre vencem as eventuais disputas. A
tragédia gaúcha apresenta claramente a necessidade de um Estado mais
harmonioso: impessoal, eficiente e equilibrado.
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