sábado, 22 de junho de 2024

Carlos Drummond - Cerco total

CartaCapital

Aumenta o poder dos mais ricos sobre os recursos públicos

Em 12 meses, os gastos com juros da dívida somaram 776 bilhões de reais

A afirmação veemente de Lula, em entrevista na terça-feira 18 à rádio CBN, de que os ricos tomaram conta do orçamento, retrata a situação real, de alto risco para o País, do cerco quase total dos recursos públicos por interesses privados, nem sempre defensáveis. O setor financeiro, a mídia, o Banco Central e parcela do setor produtivo agem como se estivessem todos diante de um balcão, a cobrar da política econômica juros altos sem limite e benefícios fiscais sem-fim, e o governo tivesse a obrigação de atendê-los, documenta o noticiário dia após dia. O preço do atendimento às demandas privadas inclui, entretanto, a ampliação e a perpetuação das iniquidades, além do aprofundamento das disfuncionalidades da economia brasileira.

“Há uma guerra histórica de determinados setores dos meios de comunicação e do mercado sobre a utilização dos recursos do orçamento. O que me deixa preocupado é que as mesmas pessoas que falam que é preciso parar de gastar são as que têm 546 bilhões de reais de desoneração de folha de pagamento e de isenção fiscal sem qualquer contrapartida. Ou seja, são os ricos que se apoderam de uma parte do orçamento do País”, disparou Lula na entrevista. O presidente disse ter ficado “perplexo” diante do montante de benefícios fiscais para os abastados, enquanto o governo se vê forçado a discutir cortes da ordem de 10 bilhões, e mencionou as isenções concedidas à agricultura, de 60 bilhões de ­reais. “Vai jogar isso em cima de quem? Do aposentado, do pescador, da dona de casa, da empregada doméstica? Não. Então eu quero discutir com seriedade.” Dias antes da entrevista à CBN, em conversa com jornalistas na Itália, onde participou de uma reunião do G-7, o grupo dos maiores PIBs do planeta, o petista desautorizou a discussão incipiente no governo sobre a mudança no piso constitucional da saúde e da educação.

O presidente citou números positivos de geração de empregos, aumento da renda e dos investimentos internos e estrangeiros e destacou: “Nós só temos uma coisa desajustada no Brasil neste instante, é o comportamento do Banco Central. Não demonstra nenhuma autonomia, tem lado político e trabalha muito mais para prejudicar o País do que para ajudar, porque não tem explicação a taxa de juros do jeito que está”. Lula mencionou o fato de Roberto Campos Neto insinuar a própria candidatura a um cargo em uma eventual reeleição do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, durante homenagem ao presidente do BC. Uma atitude oposta à chamada liturgia do cargo, semelhante ao passo dado por Campos Neto pouco tempo atrás, quando propôs a antecipação da discussão a respeito da própria sucessão.

Lula perguntou se o presidente do BC iria repetir o papel do juiz Sergio Moro, de “paladino da Justiça com o rabo preso a compromissos políticos”. Após a entrevista do presidente, a Comissão Mista de Orçamento aprovou um requerimento do PT de convocação de Campos Neto para explicar, entre outros aspectos, sua atuação política e possíveis conflitos de interesse.

“O que o mercado fez? colocou o orçamento como um fim, não como um meio. O orçamento é um instrumento de gestão, portanto, é um meio. Tanto que Keynes propôs tirar do orçamento o investimento corrente, porque ele é o regulador da economia. Isso não aparece no debate econômico, muito menos na mídia”, afirma o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, consultor editorial e colunista desta revista.

A construção do orçamento ao longo da história, prossegue Belluzzo, como uma peça de exposição pública do uso dos recursos é importante. É um compromisso que o Estado assume em relação à alocação de recursos que recebe dos contribuintes, para demonstrar como destina o que acumula na forma de impostos. Tornou-se, ao longo do tempo, cada vez mais público, mas aqui no Brasil inventaram o orçamento secreto, uma contradição em termos. Talvez a característica principal do orçamento seja não ser secreto, mas público. “O orçamento secreto deve ter sido ardilosamente construído nas casamatas do Arthur Lira. Até nos países mais conservadores do ponto de vista fiscal não se vê um fenômeno desses. É um retrato da política no País.”

O orçamento existe precisamente para impedir o que acontecia lá atrás, no período do feudalismo, quando João Sem Terra pegava o dinheiro dos impostos e gastava do jeito que queria, sublinha Belluzzo, em referência ao monarca inglês que reinou de 1199 a 1216 e impôs uma tributação altamente onerosa, cobrando impostos cada vez mais elevados, sem benefícios para os súditos. “O que se tenta fazer com a privatização do Orçamento é, de certa forma, uma refeudalização da economia.”

As pressões se intensificaram há uma semana, quando setores produtivos encabeçados pelo agronegócio apertaram o cerco ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e conseguiram derrubar a Medida Provisória que buscava preencher a lacuna de 20 bilhões de reais na receita tributária provocada pela desoneração de 17 setores da economia. A MP, que durou oito dias, visava ainda corrigir uma distorção na sistemática do PIS/Cofins que levava empresas a receber recursos do Estado como se fossem uma subvenção governamental.

O centro da apropriação privada do orçamento é o Congresso, deixaram claro consultores parlamentares, procuradores e economistas reunidos em seminário sobre a função da peça como instrumento das políticas governamentais e o papel do Executivo e do Legislativo, realizado na Câmara dos Deputados. O ­País vive “um parlamentarismo orçamentário sem freios” em que se opera “a revisão das vinculações que amparam os direitos fundamentais sem qualquer reflexão sobre as renúncias fiscais”, criticou Élida Graziane Pinto, do Ministério da Procuradoria de Contas de São Paulo. Segundo a procuradora, o planejamento é protocolar, a execução é abusiva e está sujeita à captura pelos fornecedores interessados em vender o seu produto. “Comprar kit de robótica para escola que não tem água tratada é uma despesa discricionária que tem de ser impugnada na prestação de contas. Comprar material apostilado enquanto tem criança fora das creches tem de ser glosado pelo Tribunal de Contas. Estamos agora repetindo o que em 1993 foi o escândalo dos Anões do Orçamento”, disparou.

Conforme dispositivo da LDO deste ano, que o governo vetou e os deputados derrubaram, empenhos de emendas podem ser feitos sem licença ambiental e sem projeto de engenharia. “Vai-se comprometer o gasto público com uma despesa que provavelmente não terá a menor condição de ser executada, porque não tem os elementos mínimos para tanto”, frisou Vinicius Leopoldino do Amaral, consultor do Senado. Além disso, haverá um prazo mínimo de três anos para que as condições suspensivas, como são chamados esses impedimentos, sejam sanados. Um empenho feito neste ano para uma obra sem licença ambiental e sem licença de engenharia, só a partir de 2027 é que será possível cobrar, e eventualmente desfazer, cancelar este empenho para essa obra, que já não exibiu os mínimos sinais de viabilidade no ano em que foi empenhada”, ressaltou.

Há um conjunto de situações alarmantes. O grande cavalo de batalha da LDO de 2023, só agora concluído, diz Amaral, é o cronograma de emendas. O Congresso tem pleiteado um cronograma antecipado para a execução. “É quase como se a despesa mais importante do orçamento fossem as emendas, porque elas teriam prazo para ser empenhadas, para ser pagas. São prazos estreitos, que farão com que as emendas escapem de um eventual contingenciamento. Ou seja, há um privilégio de execução dessas emendas, em ano eleitoral.” O consultor acrescenta: “É preocupante, pois agora temos um direito orçamentário geral, para as despesas comandadas pelo Executivo, e outro regime, especial, com diversos privilégios, para as emendas parlamentares. Não parece que este seja o modelo preconizado pela Constituição”.

Nas transferências especiais, sublinha Graziane Pinto, com esse modelo sem planejamento, sem plano de trabalho, de o dinheiro chegar direto na ponta, não ser tão rastreável, é muito difícil. “Nos Tribunais de Contas estaduais e municipais, a nossa capacidade de refinar essa informação sem ter um filtro prévio é muito árdua. Ainda mais tendo a indicação direta de CNPJ, sem a previsão de licença ambiental, de um projeto de engenharia”, esclarece. “Já acumulamos mais de 14 mil obras paradas. Parlamentar adora inaugurar placa. Se a gente não tivesse feito aquela recuperação do artigo 45 da LRF de priorizar as obras em andamento e a conservação do patrimônio público, seria uma engrenagem, desculpem, de risco, não estou sugerindo que já seja consumado, de desvio de recursos públicos e lavagem de dinheiro. Por isso o escândalo dos Anões do Orçamento, de 1993, vem à memória.”

O mal da insistência do presidente do BC em manter sem justificativas suficientes o maior juro real do mundo fica claro na síntese apresentada pelo economista José Luiz Pagnussat, professor da Escola Nacional de Administração Pública: neste ano, o BPC vai custar 105 bilhões de reais. A projeção no relatório do segundo bimestre do orçamento com educação é 146 bilhões, com saúde em 199 bilhões, com todos os programas da assistência social 278 bilhões. O grande gasto, contudo, é com juros, despesa financeira. “Só nos últimos 12 meses gastamos 776 bilhões. Somando educação, assistência social, saúde e 80 bilhões das políticas ligadas a trabalho e assistência aos desempregados, temos o gasto financeiro, gasto com juros, superior à soma de todos esses valores. O aumento de 1% na taxa de juros da política monetária gera o gasto equivalente ao Bolsa Família.”

A ideia que persiste nas diversas regras fiscais, aponta o consultor parlamentar Pedro Garrido, é tirar dinheiro de políticas públicas, definidas pelo processo democrático brasileiro, via Congresso e sanção pelo presidente da República, ou até por emendas constitucionais, que criaram esses gastos. “Aponta-se que existe um grande problema fiscal no Brasil, a ser resolvido por meio da diminuição real das despesas. Querem “limar” esses gastos, principalmente os sociais”, ressalta. 

Publicado na edição n° 1316 de CartaCapital, em 26 de junho de 2024.

 

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