CartaCapital
Aumenta o poder dos
mais ricos sobre os recursos públicos
Em 12 meses, os
gastos com juros da dívida somaram 776 bilhões de reais
A afirmação veemente de Lula, em entrevista na terça-feira 18 à rádio CBN, de que os ricos tomaram conta do orçamento, retrata a situação real, de alto risco para o País, do cerco quase total dos recursos públicos por interesses privados, nem sempre defensáveis. O setor financeiro, a mídia, o Banco Central e parcela do setor produtivo agem como se estivessem todos diante de um balcão, a cobrar da política econômica juros altos sem limite e benefícios fiscais sem-fim, e o governo tivesse a obrigação de atendê-los, documenta o noticiário dia após dia. O preço do atendimento às demandas privadas inclui, entretanto, a ampliação e a perpetuação das iniquidades, além do aprofundamento das disfuncionalidades da economia brasileira.
“Há uma guerra
histórica de determinados setores dos meios de comunicação e do mercado sobre a
utilização dos recursos do orçamento. O que me deixa preocupado é que as mesmas
pessoas que falam que é preciso parar de gastar são as que têm 546 bilhões de
reais de desoneração de folha de pagamento e de isenção fiscal sem qualquer
contrapartida. Ou seja, são os ricos que se apoderam de uma parte do orçamento
do País”, disparou Lula na entrevista. O presidente disse ter ficado “perplexo”
diante do montante de benefícios fiscais para os abastados, enquanto o governo
se vê forçado a discutir cortes da ordem de 10 bilhões, e mencionou as isenções
concedidas à agricultura, de 60 bilhões de reais. “Vai jogar isso em cima de
quem? Do aposentado, do pescador, da dona de casa, da empregada doméstica? Não.
Então eu quero discutir com seriedade.” Dias antes da entrevista à CBN, em
conversa com jornalistas na Itália, onde participou de uma reunião do G-7, o
grupo dos maiores PIBs do planeta, o petista desautorizou a discussão
incipiente no governo sobre a mudança no piso constitucional da saúde e da
educação.
O presidente citou
números positivos de geração de empregos, aumento da renda e dos investimentos
internos e estrangeiros e destacou: “Nós só temos uma coisa desajustada no
Brasil neste instante, é o comportamento do Banco Central. Não demonstra
nenhuma autonomia, tem lado político e trabalha muito mais para prejudicar o
País do que para ajudar, porque não tem explicação a taxa de juros do jeito que
está”. Lula mencionou o fato de Roberto Campos Neto insinuar a própria
candidatura a um cargo em uma eventual reeleição do governador de São Paulo,
Tarcísio de Freitas, durante homenagem ao presidente do BC. Uma atitude oposta
à chamada liturgia do cargo, semelhante ao passo dado por Campos Neto pouco
tempo atrás, quando propôs a antecipação da discussão a respeito da própria
sucessão.
Lula perguntou se
o presidente do
BC iria repetir o papel do juiz Sergio Moro, de “paladino da
Justiça com o rabo preso a compromissos políticos”. Após a entrevista do
presidente, a Comissão Mista de Orçamento aprovou um requerimento do PT de
convocação de Campos Neto para explicar, entre outros aspectos, sua atuação
política e possíveis conflitos de interesse.
“O que o mercado
fez? colocou o orçamento como um fim, não como um meio. O orçamento é um
instrumento de gestão, portanto, é um meio. Tanto que Keynes propôs tirar do
orçamento o investimento corrente, porque ele é o regulador da economia. Isso
não aparece no debate econômico, muito menos na mídia”, afirma o economista
Luiz Gonzaga Belluzzo, consultor editorial e colunista desta revista.
A construção do
orçamento ao longo da história, prossegue Belluzzo, como uma peça de exposição
pública do uso dos recursos é importante. É um compromisso que o Estado assume
em relação à alocação de recursos que recebe dos contribuintes, para demonstrar
como destina o que acumula na forma de impostos. Tornou-se, ao longo do tempo,
cada vez mais público, mas aqui no Brasil inventaram o orçamento secreto, uma
contradição em termos. Talvez a característica principal do orçamento seja não
ser secreto, mas público. “O orçamento secreto deve ter sido ardilosamente
construído nas casamatas do Arthur Lira. Até nos países mais conservadores do
ponto de vista fiscal não se vê um fenômeno desses. É um retrato da política no
País.”
O orçamento
existe precisamente para impedir o que acontecia lá atrás, no período do
feudalismo, quando João Sem Terra pegava o dinheiro dos impostos e gastava
do jeito que queria, sublinha Belluzzo, em referência ao monarca inglês
que reinou de 1199 a 1216 e impôs uma tributação altamente onerosa, cobrando
impostos cada vez mais elevados, sem benefícios para os súditos. “O que se
tenta fazer com a privatização do Orçamento é, de certa forma, uma
refeudalização da economia.”
As pressões se
intensificaram há uma semana, quando setores produtivos encabeçados pelo
agronegócio apertaram o cerco ao ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e
conseguiram derrubar a Medida Provisória que buscava preencher a lacuna de 20
bilhões de reais na receita tributária provocada pela desoneração de 17 setores
da economia. A MP, que durou oito dias, visava ainda corrigir uma distorção na
sistemática do PIS/Cofins que levava empresas a receber recursos do Estado como
se fossem uma subvenção governamental.
O centro da
apropriação privada do orçamento é o Congresso, deixaram claro consultores
parlamentares, procuradores e economistas reunidos em seminário sobre a função
da peça como instrumento das políticas governamentais e o papel do Executivo e
do Legislativo, realizado na Câmara dos Deputados. O País vive “um
parlamentarismo orçamentário sem freios” em que se opera “a revisão das
vinculações que amparam os direitos fundamentais sem qualquer reflexão sobre as
renúncias fiscais”, criticou Élida Graziane Pinto, do Ministério da
Procuradoria de Contas de São Paulo. Segundo a procuradora, o planejamento é
protocolar, a execução é abusiva e está sujeita à captura pelos fornecedores
interessados em vender o seu produto. “Comprar kit de robótica para escola que
não tem água tratada é uma despesa discricionária que tem de ser impugnada na
prestação de contas. Comprar material apostilado enquanto tem criança fora das
creches tem de ser glosado pelo Tribunal de Contas. Estamos agora repetindo o
que em 1993 foi o escândalo dos Anões do Orçamento”, disparou.
Conforme
dispositivo da LDO deste
ano, que o governo vetou e os deputados derrubaram, empenhos de emendas podem
ser feitos sem licença ambiental e sem projeto de engenharia. “Vai-se
comprometer o gasto público com uma despesa que provavelmente não terá a menor
condição de ser executada, porque não tem os elementos mínimos para tanto”,
frisou Vinicius Leopoldino do Amaral, consultor do Senado. Além disso,
haverá um prazo mínimo de três anos para que as condições suspensivas, como são
chamados esses impedimentos, sejam sanados. Um empenho feito neste ano para uma
obra sem licença ambiental e sem licença de engenharia, só a partir de 2027 é
que será possível cobrar, e eventualmente desfazer, cancelar este empenho para
essa obra, que já não exibiu os mínimos sinais de viabilidade no ano em que foi
empenhada”, ressaltou.
Há um conjunto de
situações alarmantes. O grande cavalo de batalha da LDO de 2023, só agora
concluído, diz Amaral, é o cronograma de emendas. O Congresso tem pleiteado um
cronograma antecipado para a execução. “É quase como se a despesa mais
importante do orçamento fossem as emendas, porque elas teriam prazo para ser
empenhadas, para ser pagas. São prazos estreitos, que farão com que as emendas
escapem de um eventual contingenciamento. Ou seja, há um privilégio de execução
dessas emendas, em ano eleitoral.” O consultor acrescenta: “É preocupante, pois
agora temos um direito orçamentário geral, para as despesas comandadas pelo
Executivo, e outro regime, especial, com diversos privilégios, para as emendas
parlamentares. Não parece que este seja o modelo preconizado pela
Constituição”.
Nas transferências
especiais, sublinha Graziane Pinto, com esse modelo sem planejamento, sem plano
de trabalho, de o dinheiro chegar direto na ponta, não ser tão rastreável, é
muito difícil. “Nos Tribunais de Contas estaduais e municipais, a nossa
capacidade de refinar essa informação sem ter um filtro prévio é muito árdua.
Ainda mais tendo a indicação direta de CNPJ, sem a previsão de licença
ambiental, de um projeto de engenharia”, esclarece. “Já acumulamos mais de 14
mil obras paradas. Parlamentar adora inaugurar placa. Se a gente não tivesse
feito aquela recuperação do artigo 45 da LRF de priorizar as obras em andamento
e a conservação do patrimônio público, seria uma engrenagem, desculpem, de
risco, não estou sugerindo que já seja consumado, de desvio de recursos
públicos e lavagem de dinheiro. Por isso o escândalo dos Anões do
Orçamento, de 1993, vem à memória.”
O mal da
insistência do presidente do BC em manter sem justificativas suficientes o
maior juro real do mundo fica claro na síntese apresentada pelo economista
José Luiz Pagnussat, professor da Escola Nacional de Administração Pública:
neste ano, o BPC vai custar 105 bilhões de reais. A projeção no relatório do
segundo bimestre do orçamento com educação é 146 bilhões, com saúde em 199
bilhões, com todos os programas da assistência social 278 bilhões. O grande
gasto, contudo, é com juros, despesa financeira. “Só nos últimos 12 meses
gastamos 776 bilhões. Somando educação, assistência social, saúde e 80 bilhões
das políticas ligadas a trabalho e assistência aos desempregados, temos o gasto
financeiro, gasto com juros, superior à soma de todos esses valores. O aumento
de 1% na taxa de juros da política monetária gera o gasto equivalente ao
Bolsa Família.”
A ideia que persiste nas diversas regras fiscais, aponta o consultor parlamentar Pedro Garrido, é tirar dinheiro de políticas públicas, definidas pelo processo democrático brasileiro, via Congresso e sanção pelo presidente da República, ou até por emendas constitucionais, que criaram esses gastos. “Aponta-se que existe um grande problema fiscal no Brasil, a ser resolvido por meio da diminuição real das despesas. Querem “limar” esses gastos, principalmente os sociais”, ressalta.
Publicado na edição
n° 1316 de CartaCapital, em 26 de junho de 2024.
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