Aposta de Macron contra extrema direita fracassou
O Globo
Com desempenho sem precedente em eleição
legislativa, partido de Marine Le Pen pode chegar ao poder
Apenas daqui a uma semana ficará claro o
tamanho do avanço do Reunião Nacional (RN), de extrema direita, nas eleições
legislativas francesas. Mas desde já é possível afirmar que não será pequeno.
Na França,
a disputa pelas 577 cadeiras da Assembleia Nacional ocorre em dois turnos. No
domingo, 37 candidatos do RN obtiveram mais de 50% dos votos e foram eleitos. A
Nova Frente Popular, coalizão dominada pela extrema esquerda, elegeu 32, e a
aliança centrista do presidente Emmanuel
Macron só dois.
Embora haja um movimento nacional pela união de forças republicanas — um conceito elástico que pode abranger da centro-direita à extrema esquerda — contra o RN na derradeira votação de domingo pelas cinco centenas de vagas que seguem em disputa, é praticamente inevitável seu crescimento inédito. Projeções sugerem que o partido poderá ficar com uma fatia entre 230 e 280 cadeiras (hoje tem 88). Para assumir o cargo de primeiro-ministro, o presidente do partido, Jordan Bardella, impôs como condição a conquista da maioria absoluta (289 cadeiras), uma meta tangível. Mas, ainda que fique aquém dela, é certo que o RN criará todo tipo de problema aos projetos de Macron.
O desempenho do RN no primeiro turno não tem
precedentes. Desde 1972, quando foi fundado como Frente Nacional, o melhor
resultado nas legislativas ocorrera em 2022, com 4,2 milhões de votos (18,7%).
No domingo, 11 milhões de franceses escolheram candidatos da legenda. Os 33%
dos votos se aproximam ao desempenho também recorde nas recentes eleições para
o Parlamento Europeu.
Foi justamente esse resultado que motivou
Macron a antecipar o pleito para a Assembleia. A aposta era mostrar mais uma
vez que o RN ainda tinha um teto nas disputas nacionais. Ela fracassou. A
coalizão centrista de Macron foi humilhada nas urnas. Ficou em terceiro lugar,
com 20,8% dos votos. Na melhor das hipóteses, ele terá de compor com forças da
esquerda e da extrema esquerda (28%) para manter viva ao menos parte de seus
projetos.
A força do RN nas urnas reflete o êxito de
uma estratégia adotada há mais de dez anos por Marine Le Pen. Desde que assumiu
a legenda, em 2011, tem procurado afastar integrantes mais radicais, disfarçar
a xenofobia, o antissemitismo e a islamofobia que sempre constituíram a
essência do ideário do partido. Marine tem procurado adotar um discurso menos
hostil à União Europeia e um tom menos deferente ao russo Vladimir
Putin. Deu ênfase ao populismo nacionalista, conquistando fatias
cada vez maiores da centro-direita. Ao mesmo tempo, prometeu rever medidas
impopulares de Macron, como a reforma das aposentadorias.
Depois de chegar ao segundo turno nas duas
últimas eleições presidenciais e perder, ela deverá entrar com novo vigor no
próximo pleito. Eleito duas vezes, Macron não pode disputar o terceiro mandato.
Mesmo que pudesse, sua impopularidade seria um empecilho. Ele governou como um
estadista. Mas suas reformas cobraram um preço. Nas urnas, os franceses
buscaram refúgio nas promessas irrealistas dos extremos. No paraíso prometido
pelo RN, é possível baixar drasticamente o imposto sobre as contas de energia ou
rebaixar a idade mínima de aposentadoria num país com déficit fiscal acima de
5%. No próximo domingo, os franceses deixarão mais claro quão inclinados estão
a crer nesse tipo de fantasia.
Combate a roubo de carga exige inteligência e
integração policial
O Globo
Apesar da queda nas ocorrências, números
ainda são preocupantes, sobretudo no Rio e em Minas Gerais
A evolução do comércio eletrônico trouxe
conforto para o consumidor e, ao mesmo tempo, desafios para as empresas. Entre
as dificuldades logísticas está a segurança no transporte das mercadorias.
Apenas no primeiro trimestre deste ano houve 3.639 roubos de cargas no Brasil,
cerca de 40 por dia, segundo dados da empresa de gerenciamento de riscos
Overhaul baseados em relatórios das secretarias de Segurança e da Polícia
Rodoviária dos estados.
É verdade que houve recuo de 20,6% nas
ocorrências, em relação ao mesmo período de 2023, mas o número alto continua a
preocupar empresas de transporte, fornecedores e seus clientes. E, apesar da
queda no primeiro trimestre, os roubos vinham crescendo no período pelo menos
desde 2021, quando houve 4.104 ocorrências (foram 4.177 em 2022 e 4.585 no ano
passado).
Ao aumentar o negócio das transportadoras, as
vendas on-line atraíram a cobiça de criminosos. Dos roubos de carga registrados
no primeiro trimestre, 23% envolveram mercadorias compradas em lojas virtuais.
É provável que haja quadrilhas especializadas em obter informações sobre o
deslocamento das cargas, depois desviadas. Também de posse dessas informações,
não deveria ser difícil para a polícia agir previamente.
São Paulo, Rio de
Janeiro e Minas Gerais respondem
por 86% dos registros de carga roubada no Brasil. Entre 2023 e os primeiros
meses de 2024, o peso de São Paulo se manteve estável, com 44% das ocorrências.
Mas a participação do Rio subiu de 27% para 35%, e a de Minas de 4% para 7%. No
Rio, no entorno do Arco Metropolitano, criado justamente para facilitar o
transporte e o deslocamento, o roubo de cargas cresceu 4%, enquanto caiu no
resto do estado, segundo levantamento da Federação das Indústrias do Rio de
Janeiro (Firjan). Autoridades de segurança deveriam concentrar esforços na
região.
A carga não está a salvo nem quando chega às
cidades. Pelas últimas estatísticas, 59% dos roubos ocorreram nos centros
urbanos, 38% nas estradas e 3% em armazéns e centros de distribuição.
Alimentos, bebidas, tabaco, peças de veículos, sementes e defensivos agrícolas
são produtos sempre visados. A escolha da carga pelas quadrilhas depende da
facilidade de venda aos receptadores. Parece haver, nos grandes centros, uma
máquina azeitada para vender o produto dos roubos.
Como o transporte é uma atividade nacional, o
roubo de carga expõe mais uma vez a limitação de deixar a segurança pública
exclusivamente a cargo dos governos estaduais. Os números preocupantes
justificam uma análise integrada das polícias, para que providências sejam
tomadas em conjunto. Para desbaratar as quadrilhas, também é necessário um
trabalho bem feito de investigação. Do contrário, o custo dos seguros e das
perdas continuará a recair sobre toda a cadeia de negócios. A insegurança no
transporte é um ônus que afeta todos — produtores, comerciantes e consumidores.
É preciso não botar a perder as conquistas do
Real
Valor Econômico
Ao incentivar a gastança, o estatismo e a
leniência monetária, Lula pode pôr a perder boa parte das conquistas de três
décadas de estabilização, cuja obra deveria ser completada com mais reformas
A inflação brasileira nunca mais foi a mesma
depois de 1º de julho de 1994, com o lançamento do Plano Real. Com a introdução
de uma moeda de transição, a Unidade Real de Valor, que durou seis meses até
ser convertida em real, a hiperinflação foi debelada. De 4.005% acumulados em
12 meses até junho de 1994, o IPCA desabou para 22,41% no fim de 1995. A
inflação mensal, que chegara a 47,4% na véspera do plano, nos 30 anos seguintes
jamais ultrapassou 3,02% (novembro de 2002). Depois de seis planos de estabilização
fracassados após a redemocratização do país, em 1985, a equipe econômica
liderada pelo ministro da Fazenda, e depois presidente Fernando Henrique
Cardoso, conseguiu vencer a batalha dos preços sem segredos ou surpresas das
tentativas anteriores, sem congelamentos ou confisco.
O plano surgiu de uma crise que caminhava
para o caos da hiperinflação. Os preços subiam sem controle e ameaçavam
arruinar a coesão social da recém-reconquistada democracia. O primeiro
presidente eleito diretamente após duas décadas de regime militar, Fernando
Collor, fez a mais radical tentativa de domesticar a inflação, com a “bala de
prata” de um confisco generalizado das contas bancárias e poupança de empresas
e pessoas físicas. Os planos de Collor deram errado e ele, atolado em denúncias
de corrupção, renunciou em 29 de dezembro de 1992, pouco antes de o Senado
aprovar seu impeachment. Era um péssimo augúrio que o país tivesse de esperar
26 anos para eleger um mandatário acusado de corrupção que sequer terminaria
seu governo. Foi substituído pelo vice, Itamar Franco.
A história das crises política e econômica
mudou com a nomeação do quarto ministro da Fazenda de Itamar em pouco mais de 6
meses, Fernando Henrique, em maio de 1993. Ele trouxera para sua equipe um
grupo de economistas talentosos, boa parte deles egressa da PUC-RJ e que havia
aprendido com o fracasso do Plano Cruzado, do qual vários deles participaram.
Dois, Persio Arida e André Lara Resende, haviam escrito um trabalho que daria
origem à URV, lançada em janeiro de 1994 pela MP 424 e extinta em 1º de julho de
1994 pela lei 8.880. Era atrelada ao dólar, e os preços galopantes em cruzeiros
reais eram expressos em URVs. Em seis meses de existência da URV, a inflação
foi de 757,2% - nos 30 anos seguintes, somados, o IPCA foi menor do que um
semestre de 1994, 708%. Em 1º de julho, a URV passou a valer R$ 1, com a
conversão de todos os preços e obrigações na nova moeda.
A tentativa não teria durado muito - opinião
então corrente entre economistas de fora do governo - se a equipe de Fernando
Henrique não se cercasse de todos os cuidados e minuciosa análise dos fiascos
anteriores. Hábil negociador, FHC obteve o apoio imprescindível e inestimável
do presidente Itamar, não sem escaramuças, e do Congresso. O plano tinha uma
sequência de passos para apoiá-lo que foram executados. A valorização cambial
foi essencial em seu início. Consertar o orçamento com desvinculação de receitas
(menos de 40% na época, mais de 90% hoje), com o Fundo Social de Emergência,
deu margem de manobra ao governo para tocar suas prioridades. Outros passos
exigiram quase tanta ousadia política quanto o lançamento da nova moeda.
Uma das fontes de expansão monetária
descontrolada eram os bancos estaduais, que tinham o poder de criar dinheiro
lançando títulos da dívida. Foram quase todos colocados sob intervenção e
depois privatizados ou extintos, em um lance que desafiou os governadores. Sem
fonte de financiamento a seus gastos, foi a vez de atacar a dívida dos Estados,
o que foi feito em 1998, com renegociação dos débitos e com a aprovação da Lei
de Responsabilidade Fiscal, uma cartilha com tudo que poderia e não poderia ser
feito com os orçamentos públicos. As políticas monetária e fiscal foram
executadas em grande harmonia.
Ao prolongar em demasia a valorização do
real, o Brasil ficou sem reservas e enfrentou crise cambial em 1999, da qual
saiu com um pacote de ajuda do FMI e mais modernizações da gestão econômica. Em
2000 foi criado o sistema de metas de inflação, o câmbio passou a flutuar
livremente e as contas públicas foram submetidas a novos controles. Esse
“tripé” funcionou até perto do fim do segundo mandato do presidente Lula, a
partir do qual a perna fiscal desse arranjo passou a caminhar em outra direção.
Com o fim do imposto inflacionário, o ganho
de renda dos pobres cresceu 11% nos 12 meses seguintes à criação do real
(Marcelo Neri, O Globo, ontem). A inflação baixa preservou os pagamentos dos
programas sociais. Apesar de seguir a política de FHC, os petistas combateram o
Real e se opuseram a todos os ajustes subsequentes.
O crescimento não era o objetivo do plano, que se preocupou em lançar as bases para que ele pudesse ocorrer sem as distorções da praga inflacionária. Ele se apoiou em meios de obter recursos para projetos prioritários, com as desvinculações de receitas, na melhoria da produtividade e do ambiente de negócios via privatizações e reformas. O presidente Lula, em seu terceiro mandato, rejeita essas premissas que foram bem-sucedidas e deveriam continuar, como ele próprio pode constatar em seu primeiro mandato. Ao incentivar a gastança, o estatismo e a leniência monetária, pode pôr a perder boa parte das conquistas de três décadas de estabilização, cuja obra deveria ser completada com mais reformas.
Entre desastres, 97% percebem crise do clima
Folha de S. Paulo
Maioria diz notar aquecimento global, mostra
Datafolha; governos devem aproveitar opinião para criar planos de adaptação
Faz décadas que cientistas apontam o
aquecimento global como consequência da poluição emitida por seres humanos. Mas
parcela da opinião pública em países como o Brasil alimentava dúvidas sobre a
confiabilidade de evidências e predições quanto aos impactos da mudança —não
mais, parece.
Pesquisa Datafolha aponta
haver quase unanimidade na convicção de que a alteração climática é uma
realidade: 97% dos
entrevistados afirmam perceber no dia a dia a transformação na
atmosfera do planeta. Meros 2% negam a existência da crise no clima,
e 1% não soube responder.
Para efeito de comparação, apenas 61% dos
norte-americanos dizem ver suas comunidades afetadas pela mudança do clima,
segundo pesquisa Pew de 2023.
Podem-se aventar algumas explicações para os
números no Brasil. O consenso entre pesquisadores, com acúmulo de medições e o
descrédito dos discordantes, poderia ter contribuído para conduzir o público ao
entendimento.
Mostra-se plausível, contudo, que essa
vitória da objetividade sobre os semeadores de dúvidas tenha recebido impulso
de eventos climáticos extremos, como a tragédia recente que se abateu sobre a
população gaúcha. As inundações, que causaram 179 mortes, repetiram desastres
ocorridos ainda em 2023 naquela região.
No Carnaval do ano passado, 64 pessoas
perderam a vida nos deslizamentos de morros em São Sebastião (SP).
A chuva que
desabou em 24 horas na praia Barra do Sahy é comparável à registrada em trechos
da caatinga num
ano inteiro.
A frequência de fenômenos atmosféricos que
escapam das médias aferidas ao longo de décadas e séculos vem corroborar o
acerto dos modelos climatológicos ao projetar efeitos do aquecimento global.
Mais energia injetada na atmosfera impulsiona tempestades e estiagens bem mais
severas.
Outro exemplo lúgubre é a seca recordista que
ora aflige o pantanal, a
insuflar incêndios que arriscam ultrapassar os danos de 2020. Também
há temor de que a temporada de queimadas na Amazônia,
no segundo semestre, venha a revelar-se especialmente intensa.
Compete aos governos federal, estaduais e
municipais tomar partido da sensibilidade pública para a crise e lançar
campanhas de conscientização, reforçar a fiscalização em áreas de risco,
combater queimadas ilegais e elaborar planos
de adaptação ao aquecimento global e de prevenção contra os eventos extremos
dele derivados.
Macron esvaziado
Folha de S. Paulo
Com ascensão vigorosa da direita radical,
França caminha para governo dividido
Em menos de um mês, houve reviravolta
dramática na política francesa. A derrota de
Emmanuel Macron na
eleição para o Parlamento Europeu foi maior do que a imaginada.
Em seguida, o presidente tomou a decisão chocante de dissolver a Assembleia
Nacional, eleita havia apenas dois anos, em que detinha ao menos maioria
precária.
A expectativa macronista de reunir em torno
de si partidos moderados dissolveu-se com a rápida formação de uma coligação de
esquerda e a adesão
de parte da direita tradicional à Reunião Nacional (RN), de Marine Le Pen.
O resultado preciso da eleição legislativa
ainda é incerto. Dependerá da anuência do eleitorado à ideia de "frente
republicana" —o voto destinado a derrotar candidatos da ultradireita no
segundo turno.
É improvável, porém, que Macron possa ou
queira evitar a formação de um governo comandado por adversários. É grande a
possibilidade de que a RN eleja mais deputados, ainda que não forme uma maioria
absoluta.
No entanto, em vez das diferenças entre
presidentes e primeiros-ministros de direita e esquerda moderadas das
coabitações passadas, essa seria uma aguda e amarga contraposição de programas
e lideranças. Um governo minoritário de Jordan Bardella, da RN, estaria sujeito
a votos de desconfiança, além do mais.
O confronto entre o macronismo e o partido
majoritário da coalizão Nova Frente Popular (NFP), o França Insubmissa,
torna improvável uma aliança entre centro e esquerda, ainda que viessem a ter
maioria na Assembleia. Apenas daqui a um ano Macron poderia convocar nova
eleição legislativa. O mandato do presidente vai até 2027.
O programa declarado da RN é de populismo
econômico, endurecimento
radical com imigrantes, protecionismo e enfraquecimento da União
Europeia. Tais ideias tendem a piorar a situação fiscal francesa e a
criar incertezas na zona do euro e na geopolítica europeia, como no caso
da Ucrânia.
Arma-se desse modo um cenário de divisão
parlamentar paralisante e confronto de plataformas políticas, decorrente das
ideias muito diversas que o eleitorado tem a respeito do futuro do país.
Por ora, trata-se de tripartição, mas a França pode também estar a caminho da polarização, marcada pela ascensão da direita mais radical e as derrotas do centro.
Briga de foice
O Estado de S. Paulo
Tentativas de ampliar a cesta básica e o alcance do imposto do pecado podem atingir a espinha dorsal da reforma tributária e remetem a práticas que conduziram o atual sistema ao colapso
A reta final da tramitação dos projetos de
lei para regulamentar a reforma tributária avança por um caminho bastante
previsível. A alíquota padrão do futuro Imposto sobre Valor Agregado (IVA)
dificilmente será mantida em 26,5%, como o governo havia estimado ao enviar as
propostas ao Legislativo. Os pareceres ainda não estão fechados e, até lá, os
principais setores da economia farão de tudo para tentar garantir alíquotas
mais baixas para si mesmos.
Trata-se de um movimento legítimo, mas que
tem como consequência a elevação da alíquota padrão dos demais setores. De
forma geral, essa tem sido a resposta do Ministério da Fazenda ao analisar os
pleitos, principalmente em se tratando de temas sensíveis como a cesta básica,
cuja lista de itens totalmente desonerados é bastante restrita.
Essa escolha não é nenhuma maldade. Nos
últimos anos, a título de beneficiar os mais vulneráveis, a cesta básica foi
ampliada até chegar a 745 alimentos, de acordo com um relatório elaborado pelo
Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas e divulgado pelo
antigo Ministério da Economia em 2021.
Com uma lista tão ampla, o governo deixou de
arrecadar R$ 34,7 bilhões no ano passado, valor que equivalia a um quinto do
orçamento do Bolsa Família, de R$ 175,7 bilhões. A diferença é que a
desoneração da cesta básica não beneficia apenas os mais pobres, mas alcança,
sobretudo, famílias de renda mais elevada, que consomem mais produtos e em
maior quantidade.
O tema já havia sido debatido pelo Congresso
na votação da emenda constitucional que aprovou a reforma tributária sobre bens
e serviços. A ideia inicial do governo era reonerar todos os itens da cesta
básica e devolver os impostos apenas aos mais pobres, na forma de cashback.
A proposta, no entanto, não avançou, e o
governo optou por criar duas listas – uma, de 18 itens, com impostos zerados e
outra, um pouco maior, com desconto de 60% sobre o IVA cheio. Carnes e outras
proteínas de origem animal fazem parte dessa segunda, o que já bastou para
criar uma celeuma com o agronegócio e representantes de supermercados.
Ainda assim, o governo mantinha um discurso
único, ainda que o secretário extraordinário da Reforma Tributária, Bernard
Appy, não escondesse sua preferência pelo cashback – visão que é
compartilhada pelo Banco Mundial. Para Appy, a desoneração generalizada tem
caráter regressivo, tende a se perder ao longo da cadeia e pode ser capturada
por agentes econômicos para ampliar sua margem de lucro.
O discurso unificado, no entanto, sofreu um
grande revés na semana passada, quando o presidente Lula da Silva defendeu a
inclusão do frango entre os itens da cesta básica que serão isentos da cobrança
de impostos. “Não vamos taxar frango, é o que o povo come todo dia”, afirmou,
em entrevista ao UOL.
Era tudo que os setores econômicos queriam
ouvir. Agora que o presidente abriu a porteira das exceções, parlamentares
querem acrescentar não apenas o frango, mas todos os tipos de pescado e carne
bovina na lista desonerada, inclusive os tipos mais nobres. Como mostrou
o Estadão, se a investida der certo, a alíquota padrão do futuro IVA
subirá para 27,1%, segundo uma ferramenta elaborada pelo Banco Mundial.
Fingindo não compreender o princípio da
neutralidade da reforma, os deputados querem distribuir essas bondades sem
elevar a alíquota padrão. Como não há formas de operar esse milagre, alguns já
defendem sobretaxar jogos de azar eletrônicos e os carros elétricos com o
Imposto Seletivo. O imposto do pecado, ao menos em tese, visa a desestimular o
consumo de produtos que fazem mal à saúde e ao meio ambiente, mas cada vez mais
parece assumir um caráter arrecadatório.
O que Lula da Silva e os parlamentares se
recusam a entender é que cada item que garante um tratamento especial na
reforma sobrecarrega os demais. Esses movimentos não apenas podem comprometer a
espinha dorsal da proposta, como remetem a práticas que conduziram o atual
sistema tributário ao colapso. Foi de exceção em exceção que chegamos a um dos
modelos mais confusos, regressivos e injustos do mundo.
‘Emenda Pix’ retrata nossa miséria
democrática
O Estado de S. Paulo
‘Emendas Pix’ servem para qualquer coisa, não
raro coisa ruim para o interesse público. Neste ano, têm servido como espécie
de Fundo Eleitoral paralelo, adicionando insulto à injúria
O Brasil é um país peculiar no que concerne a
seu arcabouço de expedientes à disposição daqueles que não enxergam o mandato
eletivo senão como um meio de perpetuação do patrimonialismo e do clientelismo
que marcam a ferro quente a história nacional. As chamadas “emendas Pix” são
dos mais notáveis desses instrumentos que mantêm o País preso ao atraso. O
esquema é a materialização da esculhambação em que se tornou o manejo do
Orçamento por estas bandas – retrato fiel do estado da democracia no País.
Como se sabe, as “emendas Pix” são
transferências descomplicadas de dinheiro público, daí o apelido, ordenadas por
um parlamentar para a conta de um Estado ou município. Não há critério
objetivo, controle técnico ou vinculação a políticas públicas que orientem
essas operações obscuras. Quando muito, sabe-se o nome do deputado ou senador
que patrocina o envio da dinheirama e o ente federativo de destino. E só. O que
é feito dos recursos dos contribuintes despendidos à margem de fiscalização só
Deus e as consciências de parlamentares, governadores e prefeitos podem dizer.
Precisamente por essa esbórnia financeira, as
“emendas Pix” servem para qualquer coisa – em geral, coisa ruim para o
interesse público. Como o Estadão revelou, neste ano eleitoral, as
“emendas Pix” passaram a ser usadas como uma espécie de Fundo Eleitoral
paralelo, adicionando insulto à injúria. Num ardil para driblar a legislação
eleitoral e uma decisão do Tribunal de Contas da União (TCU), o governo Lula da
Silva, decerto pressionado pela cúpula do Congresso, decidiu liberar R$ 4,25
bilhões em “emendas Pix” – mais da metade dos R$ 7,7 bilhões previstos para
esse tipo de emenda em 2024 – a tempo de serem usados antes das eleições
municipais. Para dar a dimensão do descalabro, o Fundo Eleitoral oficial soma
R$ 4,9 bilhões este ano.
Sem o devido escrutínio, nada tem impedido
que esse dinheiro seja usado para favorecer candidaturas de prefeitos que
concorrem à reeleição ou para turbinar as de aliados, nos casos em que o
incumbente já esteja no segundo mandato. Trata-se, portanto, da violação do
princípio da paridade de armas nas eleições. Ademais, é uma dupla corrupção,
tanto do processo orçamentário, que há de ser absolutamente transparente, como
da própria democracia representativa, que deve consagrar pelo voto direto os
candidatos da preferência dos eleitores entre aqueles que puderam competir em
igualdade de condições. Como se isso não bastasse, as “emendas Pix” ainda
servem para enriquecimento ilícito.
O problema, é claro, não está na participação
do Congresso no processo decisório que vai definir como o Orçamento será
disposto. Há meios apropriados, legais e republicanos de os parlamentares
destinarem recursos públicos para cidades e projetos de seu interesse, o que é
rigorosamente legítimo numa democracia. O problema é a falta de transparência
que está no cerne das “emendas Pix”. Se o interesse primordial dos deputados e
senadores fosse destinar verbas orçamentárias para financiar políticas públicas
em seus redutos eleitorais, não haveria necessidade de conceber um novo
mecanismo para isso, pois aí estão as emendas individuais, de bancada e de
comissão. A gênese das “emendas Pix”, portanto, mal esconde a sua finalidade
pervertida a priori.
Não foi por outra razão que, em janeiro
passado, o TCU determinou que Estados e municípios agraciados com “emendas
Pix”, enfim, prestassem contas da disposição desses recursos públicos. Até
então, as “emendas Pix”, reveladas em 2020 por este jornal, já somavam
impressionantes R$ 11,3 bilhões gastos sem transparência ou fiscalização, como
se o Tesouro fosse uma espécie de caixa eletrônico a serviço exclusivo dos
parlamentares.
Se o orçamento secreto, também revelado
pelo Estadão, já é uma aberração por si só, as “emendas Pix” conseguem ser
ainda mais obscenas, num país onde há tantos cidadãos carentes de tudo. Porém,
mais do que lamentar esse longevo festim à custa dos contribuintes, é o caso de
perguntar: afinal, onde está o Ministério Público Federal?
A França abraça os populistas
O Estado de S. Paulo
O centro derrete e radicais de esquerda e,
sobretudo, de direita avançam propostas temerárias
O presidente francês, Emmanuel Macron,
apostou alto e perdeu feio. Após o triunfo nas eleições para o Parlamento
Europeu, no início de junho, de seu maior adversário, o partido de extrema
direita Reagrupamento Nacional (RN), ele decidiu, sem sequer consultar os
partidos de sua base, dissolver o Parlamento e convocar eleições. O desastre no
primeiro turno, anteontem, foi completo.
“Macron tinha tudo, ou quase: o Eliseu e três
anos à frente; uma maioria – relativa, é certo, mas uma maioria de todo modo;
um partido disciplinado; um alicerce eleitoral estreito, mas surpreendentemente
sólido; uma imagem pessoal maculada, mas uma autoridade indiscutível”, resumiu
o editorial do Le Figaro. “Ele perdeu tudo, menos o Eliseu. Queria unir o
bloco central, dividir a esquerda, isolar o RN: todos os seus cálculos se
provaram errados.”
Sua aliança centrista foi esmagada. Com 20%
dos votos, deve perder mais da metade de suas 250 cadeiras (num total de 577),
ficando com algo entre 70 e 100. O bloco esquerdista Novo Fronte Popular (NFP),
que reúne de comunistas a verdes, e é liderado pelo partido de extrema esquerda
França Insubmissa, levou 28%. O grande vencedor foi o RN, com 33% dos votos: de
88 cadeiras hoje, deve levar entre 230 a 280, e eventualmente as 289 de que
precisa para uma maioria absoluta. Foi o reverso do que aconteceu em 2017,
quando Macron atraiu votos da centro-direita e centro-esquerda tradicionais
para seu partido de “centro radical” (En Marche, hoje Renaissance) prometendo
afastar a ameaça dos extremos.
A revanche custará caro às ambições
multilateralistas de Macron. O RN tem um histórico de desconfiança da União
Europeia e da Otan e promete reduzir o envio de recursos à Ucrânia. O NFP é
hostil a Israel e quer o reconhecimento imediato do Estado Palestino. Também
poderá custar caro à França, literalmente: as forças à esquerda e à direita são
avessas às reformas que melhoraram modestamente o desempenho do país, a começar
pelas reformas previdenciária e trabalhista. Ambos favorecem mais gastos
sociais num país cujo déficit ficou em 5,5% do PIB em 2023 e cuja dívida está
em 110%. O NFP quer aumentar agressivamente uma das cargas tributárias mais
altas entre os países desenvolvidos. O RN que reduzir contribuições para a
União Europeia e aumentar tarifas. Os mercados reagiram mal e as empresas estão
apreensivas.
Os eleitores moderados serão obrigados a
optar entre um dos polos no segundo turno no domingo, quando disputarão só os
partidos que superaram a linha de corte de 12,5% dos votos. Muitos candidatos
centristas precisarão optar entre se manter no pleito, correndo o risco de ver
os candidatos do RN conquistarem a maioria absoluta e, logo, o governo, ou
abandoná-lo para apoiar o movimento de contenção do NFP, correndo o risco de
empoderar radicais de esquerda.
No domingo, o mundo saberá se o governo francês será entregue à aventura da direita populista ou à semiparalisia. Por incrível que pareça, a última é agora o mal menor para seu presidente. O certo é que o fracasso do centro foi consumado.
Descuido com o mar ameaça a Terra
Correio Braziliense
Os oceanos são um dos maiores captadores de
CO2 do planeta e têm tido essa capacidade vital sabotada pelo comportamento
humano, principalmente pelos que insistem em negar que o planeta esteja
enfrentando mudanças prejudiciais à vida de todos os seres
Seca extrema nos rios da Amazônia.
Desmatamento recorde no Cerrado. Queimadas crescentes no Pantanal
Mato-grossense. A maioria dos municípios gaúchos, inclusive a capital, Porto
Alegre, foi destruída por temporais e enchentes de rios e lagos. Essas e outras
catástrofes que arrasam várias regiões do país e ocorrem também em outros
países são lamentáveis demonstrações de que o planeta está doente devido às
mudanças climáticas. A recente série Esperança azul, publicada pelo Correio
Braziliense nos três últimos domingos, mostrou que os oceanos não são poupados
do aquecimento global decorrente da emissão de gases de efeito estufa e da
relação agressiva da humanidade com a natureza.
Os estudos científicos abordados ao longo da
série de reportagens mostram que os oceanos são um dos maiores captadores de
CO2 do planeta e têm tido essa capacidade vital sabotada pelo
comportamento humano, principalmente pelos que insistem em negar que o planeta
esteja enfrentando mudanças prejudiciais à vida de todos os seres. A flora e os
micro-organismos dos mares, por meio de processos geoquímicos, têm muito a
contribuir para mitigar os efeitos do aquecimento global capturando
naturalmente o carbono. "Precisamos compreender que as comunidades
microbianas estabelecidas nos oceanos e em outros locais, como solos, rios,
fontes termais, são produtos de milhões de anos de evolução", adverte Igor
Taveira, professor substituto de microbiologia no Instituto de Microbiologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
No Brasil, as mais de 2 mil praias, ao longo
dos 8,5 mil quilômetros da faixa costeira, abrangendo 17 estados e mais de 400
municípios, não recebem os cuidados necessários para impedir a poluição dessa
bainha do Oceano Atlântico. Não surpreendem a identificação de redes de esgoto,
clandestinas ou não, desembocando no mar e a ausência de coletores de lixo nas
praias, com orientação educativa aos frequentadores.
A situação é mais crítica nas praias em áreas
urbanas, em que há maior densidade de detritos, como plástico, isopor, filme,
filtro de cigarro, filamentos, espumas, borracha, silicone e tecidos, segundo
identificou a pesquisadora Tamyris Pegado, do Laboratório de Biologia Pesqueira
e Manejo de Recursos Aquáticos da Universidade Federal do Pará. Entre as praias
que atraem grande fluxo de banhistas e turistas e, hoje, têm áreas impróprias
para banho, estão Barra da Tijuca (RJ), Ilhabela e Santos (SP), Boa Viagem
(PE), Ondina (BA), Maragogi (AL).
O descuido na implantação e na manutenção de
equipamentos urbanos afeta tanto a saúde humana e ambiental quanto a economia
das cidades. Pontos turísticos e de entretenimento acabam rejeitados pela
população e pelos visitantes, além dos impactos nas atividades pesqueiras. Os
impactos da desenfreada ação humana não se restringem às áreas povoadas. Os
microplásticos — um dos maiores poluentes da atualidade — já são encontrados
até na Antártida.
Embora sejam recorrentes os alertas de
pesquisadores, cientistas, climatologistas e tantos outros especialistas, boa
parte da sociedade, alimentada por falsos e controversos dados, acredita que
não há meios de evitar o aquecimento do planeta e todos os dados dele
derivados. Para isso, é preciso mudar a relação humana com o meio ambiente.
Essa transformação poderia ter avançado a partir da aplicação da Lei nº
9.7905/1999, que dispõe sobre a educação ambiental em toda a sua
transversalidade e interdisciplinaridade — ou seja, desde o ensino básico
até o superior.
Para a pesquisadora Tamyris Pegado, ainda é possível virar a chave com medidas individuais baseadas nos três Rs — reduzir, reutilizar e reciclar —, que levam à sustentabilidade. Isso, porém, não elimina a responsabilidade do poder público de investir em políticas ambientais que tornem o país exemplo de redução das emissões de gases de efeito estufa e de preservação do patrimônio ambiental, seja na terra, seja no mar.
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