O Globo
Democracias só resolvem problemas grandes se
sociedades são capazes de se unir num projeto comum
Duas políticas públicas definem a Nova República, aquilo que a democracia brasileira melhor construiu desde o fim da ditadura. Foram o Plano Real e o Bolsa Família. Passamos as últimas semanas celebrando os 30 anos da primeira, mas pouco falamos de um dos elementos essenciais para seu sucesso: a imprensa. Porque, para além do instante de brilho da ideia dos economistas Persio Arida e André Lara Resende, no coração do Real estava a necessidade de ele ser bem compreendido pela sociedade. O Plano Real deu certo porque foi bem explicado, e isso ocorreu nas páginas de jornais e revistas, no rádio e, principalmente, nas telas de televisão. Compreender esse aspecto da história é importante porque ela nos impõe uma pergunta: será que seria possível hoje? Provavelmente a mesma ideia, hoje, não daria certo.
A inflação brasileira não era um problema
simples de resolver. Entre 1979 e 1983, o governo João Figueiredo tentou três
planos econômicos pra resolver a inflação. José Sarney lançou
cinco planos. As pessoas lembram o Plano Cruzado, mas não Plano Bresser, Plano
Verão. Lembram o Plano Collor, mas não que o governo Collor apresentou quatro
planos em dois anos e meio. Não foi só por incompetência que tantos governos
fracassaram. O problema era difícil mesmo, e não só porque era um monstro que
nos fazia passar cheques na casa do milhão recorrentemente. A economia era
indexada.
Desde os anos 1960, o Brasil foi se
habituando a indexar contratos. Salário, aluguel, contratos diversos já tinham
reajuste mensal previsto por um índice predeterminado. O resultado é que, além
das forças da própria economia, que elevavam os preços, inúmeros valores já
aumentavam automaticamente. Acabar com a inflação exigia resolver os problemas
na base da economia, tirar dos contratos o gatilho de aumento que já estavam na
cultura brasileira e, ao mesmo tempo, acostumar a população psicologicamente a pensar
numa economia sem inflação. Sem os preços mudarem todo dia.
A beleza do Plano Real é a simplicidade da
ideia. Ainda assim, uma ideia tão original, tão fora da caixa, que, mesmo
simples, não tem nada de trivial. Era fazer com que os dois valores convivessem
durante meses. O preço em cruzeiro real mudaria todo dia. O preço em URVs
ficaria igual todo dia. No valor do imóvel, no valor do frango, no da dúzia de
rosas na feira. Em toda parte. Para funcionar, aquilo precisava ser explicado.
Reiterado. Martelado na cabeça de todo mundo. Para que, um dia, a plaquinha em cruzeiro
real desaparecesse e, no lugar da URV, surgisse, elegante, um R$.
A imprensa explicou. Ativamente, durante
meses, todos os dias. Foi um trabalho insistente. O Globo Repórter chegou a
dedicar uma edição inteira ao tema, em que jornalistas colhiam perguntas nas
ruas para ser respondidas pela equipe econômica, gente como o então presidente
do Banco Central, Pedro Malan. Os telejornais iam para supermercados, feiras.
Mostravam as plaquinhas com os preços. Repetiam mais uma vez o que aquilo
queria dizer. Todos os veículos trabalharam intensamente nesse serviço de
informação.
O plano só teria uma chance de dar certo se o
brasileiro compreendesse o que acontecia. Se ele entendesse que, no momento em
que a plaquinha com o preço na moeda antiga saísse dali, a hiperinflação
acabaria. Não porque os preços estivessem congelados. Mas porque a economia
teria entrado em ordem. Se o brasileiro não acreditasse, seguiria aumentando os
preços, os valores de contratos mensais, tudo.
Não era todo mundo que acreditava no Plano
Real. Muito partido de esquerda bateu — e bateu duro. Mas, naquele Brasil, era
possível ainda mobilizar grande parte da sociedade em torno de um projeto
comum, e não havia uma máquina digital de desinformação instalada. A
polarização afetiva, como a chamam Felipe Nunes e Thomas Traumann no livro
“Biografia do abismo”, não era a realidade política.
Democracias só resolvem problemas grandes se
sociedades são capazes, de tempos em tempos, de se unir num projeto comum. Esse
tipo de união dá gás, gera otimismo e, por isso mesmo, fortalece o projeto. Um
sistema de comunicação que tenha anticorpos com força suficiente para eliminar
desinformação é também fundamental. E fazer isso num ambiente onde vozes
dissonantes sigam tendo espaço é justamente a arte de uma democracia vibrante e
saudável.
O Plano Real fundou o Brasil contemporâneo. Ele foi, depois do tropeço de Fernando Collor, a prova de que o país democrático tinha tudo para dar certo. Em grande parte, deu. Vivemos num país muito melhor para mais brasileiros do que aquele de antes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário