sábado, 13 de julho de 2024

Carlos Drummond - Retrato parcial

CartaCapital

Os elogios ocultam um empoderamento sem precedentes do sistema financeiro sobre a política nacional

A foto comemorativa dos 30 anos do Plano Real é reveladora mais pelo que oculta do que por aquilo que mostra. Lá estão, reunidos na Fundação FHC, Pérsio Arida, Pedro Malan e Gustavo Franco, que ocuparam a presidência do BNDES, o Ministério da Fazenda e a presidência do Banco Central quando Fernando Henrique Cardoso, em primeiro plano, foi presidente da República. Um dos principais elaboradores do Plano, o economista André Lara Resende, não aparece no retrato. A entidade não explicou a ausência, tampouco alguém perguntou sobre isso. Sua participação no projeto foi, porém, decisiva. A Proposta Larida, para criação de uma moeda indexada que circularia em paralelo com o cruzeiro, e depois constituiu a base para o Plano Real, foi assim batizada pela junção de sílabas dos sobrenomes Lara e Arida.

Talvez para compensar a distorção da verdade factual, que faz lembrar das famosas supressões de personagens decisivos banidos de fotos oficiais, as comemorações da efeméride estenderam-se por duas semanas nos principais jornais e se limitaram aos elogios, sem qualquer crítica. A louvação do Plano Real pela mídia deixa de lado, entretanto, problemas sérios provocados pela estabilização dos preços, apontados inclusive pelo descartado Lara Resende, que, em debate com o ex-ministro Ciro Gomes, cinco anos atrás, disparou: “Nesses últimos 25 anos pós-plano, tem um erro de política econômica muito sério, que explica grande parte da nossa incapacidade de crescer, que foi essa combinação de uma taxa de juros real extraordinariamente alta – acho que foi um erro, porque essa é uma política totalmente nas mãos do Banco Central –, com a tentativa de pagar essa conta de juros e equilibrar o orçamento fiscal aumentando a carga tributária. Essa combinação asfixiou a economia brasileira”.

Nessa passagem do debate citado, Lara Resende faz uma autocrítica que deixa claro por que ele não foi convidado para a festa das três décadas do Plano Real: “Surpreendentemente, depois de termos sido bem-sucedidos, nós regredimos a uma posição ainda mais ortodoxa, mesmo aqueles que participaram desse evento. E reinterpretaram a estabilização do real, mudaram a narrativa, dizendo, olha, o Plano Real foi um ajuste fiscal, foi a lei de responsabilidade fiscal que fez o real. Isso simplesmente não é verdade”, ressaltou o economista.

Reinterpretaram a estabilização da moeda como se ela fosse fruto de ajuste fiscal. “Isso não é verdade”, diz Lara Resende

Para Rubens Sawaya, professor de Economia da PUC de São Paulo, o poder desmesurado do sistema financeiro começou com a reestruturação dos bancos proporcionada pelo Plano Real. Depois da década de 1980, da ciranda financeira com as privatizações dos bancos esta­duais, ocorreu a centralização dos bancos nacionais. Eles conseguiram fazer com que os bancos estrangeiros deixassem o País e dominaram o mercado.

Desde então, o sistema financeiro vem também dominando a política. O Plano Real naufragou em 1999, com a grande desvalorização ocorrida, mas o sistema financeiro continuou no poder com o sistema de metas de inflação, observa Sawaya. O que amarra as políticas econômicas é o poder que os bancos têm sobre o BC, ancorado, basicamente, na teoria das metas de inflação, segundo a qual o governo não pode fazer política cambial, tem de promover o equilíbrio fiscal, não pode gastar mais do que arrecada e o máximo que se admite é mexer na taxa de juros para um ajuste fino, segundo os interesses do mercado, pautado em confiança e credibilidade. Na prática, o mercado dita o que ele quer que aconteça, por meio do ­Boletim Focus, para pressionar o Banco Central a elevar a taxa de juros ou não. Essa é a questão que amarra o desenvolvimento.

O sistema financeiro, sublinha ­Sawaya, está no poder, no controle do BC. Perderam essa condição, por curto perío­do, apenas no governo Dilma ­Rousseff, quando ocorreu o único caso de presidente do Banco Central proveniente da burocracia estatal, e não egresso de uma instituição financeira privada. “Para os grandes bancos, foi uma afronta ter nesse cargo Alexandre Tombini, um servidor público, alguém que não era da confiança deles. Agora, perceberam que estão perdendo o controle de novo.”

A pressão é cada vez maior. “É um jogo sujíssimo que o mercado financeiro está fazendo, de usar a especulação para levar o dólar a quase 6 reais, para colocar o governo de joelhos e forçá-lo a anunciar 25 bilhões de corte nos gastos públicos. É uma afronta, uma emboscada”, lamenta o professor da PUC de São Paulo. ­Sawaya ressalta que o Plano Real promoveu um desequilíbrio fiscal brutal, a âncora cambial elevou a dívida líquida de 32,3% do PIB, em 1994, para 60,2% em 2002. A dívida bruta também dobrou e chegou a 80%, pela elevação da taxa de juros básica para mais de 40% ao ano.

Ressalvados os méritos do Plano ­Real, que foi eficaz para conter a inflação, é preciso considerar que ele inicialmente foi concebido num formato em que dependia estritamente do câmbio fixo. Para mantê-lo, era preciso uma entrada de dólares substancial, e isso implica atuação do Banco Central que jogue a taxa de juros para patamares estratosféricos, ressalta Rafael Ribeiro, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. Após a implantação do Plano ­Real, acrescenta, o Brasil ficou muito suscetível a choques internacionais e a eventuais incertezas do mercado mundial em relação à economia brasileira.

Essa estratégia do câmbio fixo foi mostrando seu esgotamento na medida em que vieram as crises da Ásia, que geraram muita instabilidade nas economias emergentes, provocando fuga de capitais, que gerou um desequilíbrio estrutural nas contas do País. Para salvar o Plano Real, o governo flexibilizou o câmbio em 1999 e implementou o tripé macroeconômico, composto de um regime de metas de inflação, taxas de câmbio flutuantes e a busca por superávits primários predeterminados.

A hiperinflação foi domada, mas a dívida pública do Brasil dobrou de 1994 a 2002

Esse percurso, focando especificamente na questão do BC, gerou o arranjo do regime de metas de inflação, detalha o professor da UFMG, com a administração da liquidez feita via operações compromissadas lastreadas em títulos do Tesouro. Uma montagem financeira em que se entrega um ativo de altíssima liquidez ao setor financeiro, com rentabilidade diária, que são as operações compromissadas, e que é muito difícil, politicamente, de ser desfeito. Até porque gera esse paraíso para o rentismo e o setor financeiro, que por sua vez ganha cada vez mais poder, o que impede, ou dificulta, a formação de coalizões capazes de desfazer essa estrutura perversa e buscar alternativas menos danosas para a condução das políticas fiscal e monetária.

O Real, assim como todos os planos de estabilização na América Latina, valeu-se de duas condições fundamentais. Primeiro, o retorno dos capitais financeiros internacionais entre o fim dos anos 1980 e os anos 1990, por conta da queda da taxa de juros dos EUA, destaca o economista José Augusto Gaspar ­Ruas, professor da Facamp. No caso brasileiro, teve ainda a URV, mecanismos para conter a indexação, os processos de inércia inflacionária, dispositivos muito interessantes do Plano Real que não houve em outros países. Mas a essência é a questão da taxa de câmbio, um regime de câmbio fixo que permitia que as importações ajudassem a estabilizar os produtos tradeables ou transacionáveis internacionalmente. Todos os produtos nacionais que tivessem concorrente internacional teriam de manter seus preços estáveis, caso contrário, seriam suplantados pelos importados.

“Economistas da Unicamp alertavam para o problema de se utilizar uma taxa de câmbio fixa e sobrevalorizada, que deixava o dólar muito barato e acelerava a desindustrialização. Aquilo era uma armadilha, porque aumentava o poder de compra da população em dólar, controlava a inflação, mas empurrava ladeira abaixo os setores que concorrem com os produtos importados.” O resultado, acrescenta o professor da Facamp, foi uma economia muito mais dependente da importação e isso aumentou enormemente a nossa fragilidade à variação do dólar.

O País fica vulnerável porque o mercado financeiro pode promover inflação simplesmente apostando nos seus ativos em dólar, no exterior ou no País, provocando uma desvalorização cambial que encarece tudo o que é importado. E que, no curto ou médio prazo, leva a inflação para cima e obriga o Banco Central a elevar a taxa de juros como eles gostariam. “Eu acho que esse é o grande legado ruim do Plano Real, essa armadilha econômica e política simultaneamente”, frisa Ruas.

O Plano Real foi sustentado em uma âncora cambial, no período 1994-1999, quando o País possuía poucas reservas internacionais, em um período de grande turbulência financeira internacional, ressalta o economista Felipe Macedo de Holanda, professor de Economia da Universidade Federal do Maranhão. A abertura comercial e financeira realizada a toque de caixa na primeira metade da década contribuiu para o aprofundamento dos déficits em transações correntes e elevando a necessidade de financiamento externo, que impunha a manutenção de taxas de juro elevadas para atrair capitais e financiar o déficit externo.

As taxas de juro elevadas contribuíram para reduzir o crescimento econômico, piorando a situação das contas públicas, e contaminaram a dívida pública, que cresceu exponencialmente até o fim da década de 1990, mesmo se considerando o ingresso de 100 bilhões de dólares decorrente da privatização da Telebrás. A dívida pública elevada ganha aí seu impulso e hoje coloca o governo no corner.

Publicado na edição n° 1319 de CartaCapital, em 17 de julho de 2024.

Um comentário:

Daniel disse...

Muito bom! O autor diverge dos colunistas mercadófilos, que seguidamente apenas aplaudiram os feitos do Plano Real iniciado há 30 anos, como bons papagaios mantidos bem alimentados pelo mercado financeiro e fiéis aos interesses deste, como a manutenção da SEGUNDA MAIOR TAXA DE JUROS REAIS DO MUNDO, além de ter ampliado tremendamente a dívida pública brasileira, como bem argumenta o colunista aqui, além de ter ELEVADO de 25% para 33% a carga tributária do país nos 8 anos do governo FHC, taxa que vem sendo praticamente mantida nos governos que se sucederam até hoje. Aí, os colunistas mercadófilos hoje criticam a ALTA CARGA TRIBUTÁRIA, mas não dizem que ela foi basicamente construída nos 8 anos de FHC pelos quais eles tanto SUSPIRAM e tanto comemoraram nas últimas semanas com o aniversário de 30 anos do Real...