O Globo
Plano Real hoje é muito maior. Desconfio que
algo semelhante, embora não do mesmo tamanho, ocorra com a reforma tributária
Em seu pequeno e precioso livro “A soma e o
resto”, Fernando
Henrique Cardoso, ao tratar das características da sociedade contemporânea,
cita esta entre as mais relevantes: “A mudança por acumulação, não por
ruptura”.
O Plano Real, que continua em modo
comemoração dos seus 30 anos, é um exemplo. A nova moeda não foi imposta por um
golpe na calada da noite. Resultou de um processo — que começou com a
formulação de uma teoria e seguiu por várias etapas preparatórias nos campos
político e econômico.
Podem-se incluir nessas ondas de acumulação os seguidos fracassos de planos anteriores e a inflação que atormentava os brasileiros por décadas. No primeiro caso, os erros mostraram o que não deveria ser feito. No segundo, a carestia resiliente sugeria que havia ambiente para uma nova tentativa de reforma monetária.
O mesmo ambiente, paradoxalmente, também
sugeria ceticismo e até oposição. Tipo assim: não tem como eliminar a inflação
no Brasil; é endêmica; toda tentativa de derrubar deu ruim e piorou as coisas;
e — quer saber? — o país sabe conviver com inflação.
No mesmo livro, FH observa que o Plano Real
foi implantado com “enormes dificuldades e incompreensões políticas”. A gente
pode não saber como se define revolução ou ruptura, mas reconhece quando topa
com uma. No processo por acumulação, é mais difícil perceber o tamanho da
mudança.
No podcast “Plano Real — histórias não
contadas”, que preparei para a CBN, registramos que
a nova moeda foi recebida com ceticismo por boa parte da imprensa, não raro
perdida em intermináveis discussões sobre detalhes.
Pedro Malan, um dos pais do Real, até hoje
demonstra seu espanto quando se lembra da primeira pergunta na entrevista
coletiva em que explicava a introdução da nova moeda: se todos os planos
anteriores deram errado, por que acham que agora vai dar certo?
Pérsio Arida, um dos autores da teoria de
reforma monetária em que se baseou o plano, até se acostumou com os comentários
que ouvia toda vez que expunha a ideia: “Uma loucura”. Depois de várias
conversas, passou a introduzi-las assim:
— Parece uma coisa maluca, mas pense bem.
No ambiente político, havia incredulidade
entre os aliados. Mário Covas, companheiro de FH, disse a ele:
— Apoio, mas não vai dar certo.
José Roberto Mendonça de Barros, outro
companheiro, disse a Malan:
— Vocês dispararam um foguete; o foguete
subiu, mas ninguém sabe onde e como vai descer.
Na oposição, o PT de Lula atacou:
“estelionato eleitoral”. Erro grave, que lhe custou as duas eleições que perdeu
para FH no primeiro turno.
Na sociedade, o reconhecimento da mudança foi
imediato, para a ampla maioria. Mas mesmo os mais animados ainda tinham dúvida
sobre a longevidade da nova moeda. De fato, FH passou os oito anos de seus dois
mandatos tomando as medidas que consolidavam não apenas o Real, mas instituíam
um regime econômico baseado no hoje clássico tripé: superávit fiscal
(equilíbrio das contas públicas), câmbio flutuante e sistema de metas de
inflação.
Assim como se reconhece uma ruptura no
momento em que ocorre, para o bem ou para o mal, a mudança por acumulação leva
tempo para vingar e ser reconhecida. O Plano Real hoje, passados 30 anos, é
maior, muito maior.
Desconfio que algo semelhante, embora não do
mesmo tamanho, esteja ocorrendo com a reforma tributária. Trata-se certamente
de uma mudança por acumulação. Há décadas o tema vem sendo debatido, no que
sempre pareceu uma demora interminável. Foi uma demora, mas nesse tempo
amadureceram duas conclusões: uma, que o regime tributário vigente é um
empecilho absurdo ao desenvolvimento; duas, que a reforma tinha de ser
paulatina e no sentido da simplificação.
A reforma dos impostos sobre o consumo reúne
cinco tributos em um, um Imposto de Valor Agregado, não cumulativo, cobrado em
duas instâncias, a federal e a estadual/municipal. Com uma só legislação,
nacional. Comparem só isso ao regime atual na cobrança do ICMS: regimes
diferentes nos 26 estados e no Distrito Federal, portanto, 27 códigos
tributários.
A ver. Voltaremos ao assunto.
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