sábado, 13 de julho de 2024

Oscar Vilhena Vieira - O grande bazar de direitos

Folha de S. Paulo

Se o STF assumir funções de natureza governativa, quem ficará responsável por garantir a regra da lei?

Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, declarou nesta semana estar "muito entusiasmado com a iniciativa do STF [Supremo Tribunal Federal] de, ao invés de simplesmente decidir pela inconstitucionalidade daquilo que aprovamos no Congresso, poder inaugurar um ambiente de conciliação e composição". Mais entusiasmados ainda devem estar todos aqueles que se apropriaram ou adquiriram ilegitimamente terras indígenas nas últimas décadas.

Constituição de 1988 reconheceu aos povos indígenas "direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam". Essas terras são "inalienáveis e indisponíveis", sendo "nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse dessas terras". Cabendo à União demarcá-las.

Contra a letra e o espírito da Constituição foi formulada a tese do marco temporal. O objetivo dessa tese mais política do que jurídica é restringir os direitos "originários" sobre as terras que os indígenas "tradicionalmente ocupam", conferindo validade a diversas formas de usurpação das terras indígenas, sob o pretexto de que os indígenas não exerciam domínio sobre essas terras em 5 de outubro de 1988.

Depois de mais de uma década de litígio em torno da tese do marco temporal, o STF declarou que a malfadada tese é incompatível com o artigo 231 da Constituição Federal. Logo, que qualquer tentativa de flexibilizar os direitos fundamentais e originários dos indígenas às suas terras configura uma inaceitável afronta à Constituição.

Em clara retaliação a esta decisão do STF, o Congresso Nacional aprovou projeto de lei reestabelecendo a tese do marco temporal. Para reduzir o risco de ver essa lei ser declarada inconstitucional, a bancada anti-indigenista propôs uma PEC inserindo o marco temporal no próprio texto constitucional, em clara violação a uma cláusula pétrea da Constituição, que reconhece os direitos mais fundamentais desse grupo minoritário e vulnerável.

É neste contexto que o decano do Supremo entendeu por bem submeter os conflitos fundiários relacionados a terras indígenas a um processo de "conciliação e composição" de interesses, a ser realizado pelo próprio Supremo.

A inovação é muito preocupante, por dois motivos. Em primeiro lugar, porque amplia ainda mais os poderes do tribunal, que passará a exercer uma função cada vez mais política de coordenar e compor interesses, pertinente aos órgãos de representação, em detrimento de do cumprimento de sua missão institucional que é a garantia da Constituição; em especial a defesa dos direitos de minorias vulneráveis, com o os povos indígenas.

Em segundo lugar, porque, ao permitir a flexibilização dos direitos dos povos indígenas estabelecidos pela Constituição, ratificados pelo plenário do STF, a decisão do decano do Supremo abre um perigosíssimo precedente para a flexibilização de outros direitos previstos na Constituição. Se prevalecer essa lógica, nossos direitos mais fundamentais ficarão vulneráveis aos interesses mais mesquinhos daqueles que detém poder.

A proposta de transformar o STF em uma onipotente e onipresente mesa de conciliação, não apenas rebaixa os direitos fundamentais à condição de meras reivindicações retóricas, como também subtrai dos órgãos representativos a função de coordenar politicamente conflitos de natureza econômica e social. O mais grave, no entanto, é que se o STF assumir funções de natureza governativa, quem ficará responsável por garantir a regra da lei? Quem defenderá os direitos fundamentais daqueles que os ameaçam?

 

2 comentários:

Daniel disse...

Muito bom! Realmente os direitos indígenas e de outras minorias correm cada vez mais perigo, ainda mais se o STF estiver disposto a conchavos, como parece querer o ministro e empresário Gilmar Mendes.

Anônimo disse...

VERDADES DO DECANO

É SEMPRE BOM LEMBRAR QUE, PARA O GILMAR,
VENDES VEM ANTES DE MENDES