CartaCapital
Mercado financeiro e especulação não são
opostos, apenas modos de existência do capitalismo
“O Sr. Hyde é o outro oculto no médico, o
outro que, por obra de um experimento químico inventado e ingerido pelo próprio
Dr. Jekyll, surge como uma figura grotesca, simiesca, um monstro moral,
resultado da transformação que se processa no Dr. Jekyll ao testar em si mesmo
a droga por ele criada.
Esse ‘outro’ nascido da mutação sofrida pelo Dr. Jekyll não é, contudo, um outro externo, um outro que se apresenta diante do Dr. Jekyll como alguém pronto a confrontar o médico ou passível de ser confrontado ou mesmo destruído por ele. Em nenhum momento o Dr. Jekyll e o Sr. Hyde se veem frente a frente; não são duas pessoas, e sim dois modos de ser de uma mesma pessoa.” (Robert Louis Stevenson, O Médico e o Monstro: O Estranho Caso do Dr. Jekyll e Sr. Hyde).
O mercado financeiro, o Doutor Jekyll, e a
especulação, o Senhor Hyde, são dois modos de existência que convivem e se
esbatem nos espaços inexoravelmente monetários do capitalismo. No mundo
positivista dos economistas, o “real” e o monetário estão apartados no modelo
IS-LM — IS (Investimento-poupança) e LM (Demanda e oferta de moeda). O mundo
bonzinho da “economia real” comandaria a vida perversa da economia monetária.
Nesse universo da “objetividade científica”, uma coisa é uma coisa, outra coisa
é outra coisa. Mas no mundo da economia capitalista monetário-financeira “uma
coisa é uma coisa, outra coisa é a mesma coisa”.
Dr. Jekyll, a finança, sem Mr. Hyde, a
especulação, não tomou o experimento químico, a droga da realidade,
consubstanciada na forma geral da riqueza, o dinheiro. Ganhar dinheiro depende
da taxa de retorno – investindo em bens ou recomprando ações – caras-pálidas!
Grita a tigrada: especulação é um problema moral a ser combatido! Mate o
monstro Hyde, sobra o médico Jekyll. Santa ingenuidade!
Na Teoria Geral, Keynes disparou:
“Em minha obra Treatise on Money, observei
que, quando as ações de uma empresa são cotadas muito alto, de modo que essa
mesma empresa possa aumentar seu capital emitindo novas ações em condições
favoráveis, os resultados daí decorrentes são os mesmos que se ela conseguisse
obter empréstimos a uma taxa reduzida de juros”. (Keynes, Teoria Geral,
Capítulo XII.)
Em artigo publicado no Project Syndicate e
reproduzido no jornal Valor, Joseph Stiglitz despertou os leitores para as
proezas mentirosas de Donald Trump:
“Trump não hesitou em reivindicar o mérito
pelo crescimento que se seguiu. Mas, enquanto ele e os republicanos do
Congresso reduziram os impostos para corporações e bilionários, a prometida
onda de investimentos nunca se materializou. Em vez disso, houve uma onda de
recompras de ações, que estão a caminho de ultrapassar 1 trilhão de dólares no
próximo ano”.
Assim como o sistema bancário é capaz de
criar moeda bancária através do crédito, os cursos de Economia são capazes,
endogenamente, de criar visões deturpadas. A capacidade de criar moeda é
proporcional à capacidade de criar miopia econômica! A miopia, as crenças e os
dogmas tecem o véu que obstrui a compreensão das relações umbilicais entre
as dimensões fiscal e monetária do capitalismo, tais como as peripécias do
médico e do monstro.
O sistema bancário cria moeda bancária e os
cursos de Economia criam visões deturpadas
Em 1694, é criado o Banco da Inglaterra, cujo
capital, subscrito pelos fundadores, é imediatamente emprestado ao Estado. A
grande inovação, uma nova forma de financiar a dívida pública, com duas nobres
intenções: a primeira, financiar a guerra e o exército, e a segunda, canalizar
a massa de dinheiro tanto para fins bélicos quanto para desenvolver um mercado
financeiro e de capitais. Incentivar o crédito e criar o mercado secundário de
ações, para financiar as empresas inovadoras. Isso não impediu especulação,
fraudes, manipulações de preços, informações privilegiadas e notícias falsas.
Combater os abusos é importante, porém não inibe a especulação. A droga que faz
o médico e o monstro serem a mesma pessoa é ganhar dinheiro! Todo santo dia, em
qualquer instituição financeira, nas reuniões matinais, é a mesma pauta: qual a
nossa posição? Qual o caixa? E o que vamos fazer hoje?
Vamos relembrar os ensinamentos de
Jean-Jacques Rousseau no Discurso sobre Economia Política:
“Pode-se afirmar que é correta a distinção
proposta no início entre economia pública e economia particular, e que as
mesmas regras de conduta não convêm ao Estado e à família, que em comum têm
apenas a obrigação de ambos os chefes de procurar a felicidade…
“…O comércio, a indústria e a agricultura são
a boca e o estômago, que produzem a subsistência comum; as finanças públicas
são o sangue que uma economia sábia, fazendo as funções do coração, reenvia a
todo o corpo, distribuindo a comida e a vida; os cidadãos são o corpo e os
membros que fazem movimentar, viver e trabalhar a máquina, de modo que qualquer
ferimento que esta sofra em uma de suas partes, imediatamente uma sensação de
dor seria levada ao cérebro por meio de uma impressão dolorosa, se o animal estiver
em perfeito estado de saúde.
“A vida de um e de outro é o eu comum ao
todo, a sensibilidade recíproca e a correspondência interna entre todas as
partes. Se essa comunicação cessa, se a unidade formal é desfeita e as partes
contíguas encontram-se numa simples relação de justaposição? O homem está morto
ou o Estado desfeito”.
A experiência histórica demonstra a articulação estrutural entre o sistema de crédito, a acumulação produtiva e financeira, o consumo privado e a gestão das finanças do Estado, particularmente da dívida pública. Nas crises financeiras, o caráter essencialmente “coletivista” da economia monetária da produção, ou seja, do capitalismo, surge no naufrágio financeiro como a tábua de salvação dos mercados privados. As relações entre as finanças públicas, a gestão monetária e o setor financeiro privado não são “externas”, de mero intervencionismo. São orgânicas e constitutivas.
Publicado na edição n° 1319 de CartaCapital,
em 17 de julho de 2024.
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