Congresso é sócio do Executivo na piora da economia
O Globo
Ao aliviar pacote de controle de gastos,
parlamentares ignoram a gravidade da crise e ampliam seu custo no futuro
Para estabilizar a dívida pública, o Brasil
precisaria de um ajuste fiscal da ordem de R$ 300 bilhões no Orçamento. No
primeiro ano do governo do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, o valor ficou em R$ 30 bilhões e, no segundo, em R$ 40 bilhões. O pacote
fiscal enviado ao Congresso em novembro, se tivesse sido aprovado sem
modificações, promoveria um corte médio anual da ordem de R$ 35 bilhões. Depois
de votações na Câmara e no Senado, o que já era ruim ficou pior. Demonstrando
tibieza, os congressistas desidrataram várias medidas propostas. Tiraram força
do corte de despesas sem aprovar alternativas. Fingiram desconhecer a gravidade
do momento e só adiaram para 2025 o enfrentamento da grave crise fiscal. Se até
agora o descaso com as contas
públicas poderia ser atribuído sobretudo ao Executivo, ele
passa a ter um sócio de peso: o Congresso Nacional.
É certo que ajustes fiscais costumam ser feitos em etapas, mas o gradualismo imposto pelo Parlamento é irreal. No texto enviado ao Congresso, o governo solicitava poder para bloquear ou contingenciar até 15% das emendas parlamentares em caso de necessidade. Nada mais lógico. Por que manter o Parlamento fora do esforço para buscar o equilíbrio? Sem apresentar nenhum argumento convincente, os congressistas enfraqueceram a proposta: somente as emendas de comissão poderão ser bloqueadas.
Poucos temas desfrutam unanimidade na opinião
pública como os supersalários da elite do funcionalismo. Infelizmente, a
indignação justa com essa distorção não encontrou eco no Parlamento. O pacote
do governo previa proibir imediatamente o pagamento de verbas acima do teto que
não estivessem previstas por lei complementar, mas o Legislativo adiou a
decisão e deixou tudo como está. E adiou a discussão sobre as mudanças nas
aposentadorias dos militares.
Os congressistas também negaram mudança no
critério de reajuste do Fundo Constitucional do Distrito Federal. Barraram
pedido do governo por mais liberdade para fazer bloqueios no Orçamento e
reduziram pela metade a economia prevista no Fundeb. O projeto que restringia o
acúmulo numa mesma família de concessões do benefício destinado a idosos e
deficientes de baixa renda, o BPC, foi rejeitado. Os parlamentares também
derrubaram propostas que buscavam aumentar o foco nos mais necessitados.
Vetaram a proibição de acesso ao BPC a quem tem bens e direitos acima do limite
de isenção do Imposto de Renda e dos capazes de trabalhar. Houve, é verdade,
avanços, como a aprovação de regra que restringe o benefício a portadores de
deficiências moderadas e graves. Ainda assim, serão incapazes de conter a
escalada de pagamentos do BPC.
A mudança com maior impacto fiscal foi o teto
de 2,5% para o aumento real do salário mínimo. Como afeta as contas da
Previdência e benefícios sociais, a expectativa do governo é economizar R$ 2,2
bilhões em 2025 e R$ 9,7 bilhões em 2026. O Congresso também chancelou mudança
no abono pago a quem ganha até dois mínimos. Embora aquém da necessidade, ambas
são medidas de caráter estrutural. É de transformações duradouras desse tipo
que o país precisa para equilibrar as contas públicas. Elas estavam em falta no
pacote original e foram aliviadas. Os parlamentares não terão como se esquivar
da responsabilidade pela deterioração na situação econômica.
Novo programa de socorro a estados perpetua o
incentivo à gastança
O Globo
Governo federal voltará a facilitar o
pagamento de dívidas com contrapartidas frágeis de austeridade
Mais uma vez os estados serão socorridos pela
União. Pela quarta vez desde a redemocratização, os governadores têm sucesso ao
apelar a Brasília para reduzir seu endividamento com ajuda do Tesouro Nacional.
O novo pacote aprovado pelo Congresso joga para o futuro o vencimento de
dívidas totais de cerca de R$ 760 bilhões, concentradas em São Paulo, Rio de
Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do
Sul.
Como já ocorreu em 1993, 1997 e 2016, os
governadores se comprometem a voltar a pagar em dia os compromisso financeiros.
Mas nada garante que, cedo ou tarde, não venham a bater novamente às portas do
governo federal para que a União volte a assumir suas dívidas, passe a lhes
cobrar juros camaradas ou até zerá-los. O subsídio é sempre coberto pelo
Tesouro. A situação seria ainda pior se estados e municípios não tivessem sido
proibidos de se endividar lançando títulos.
Na rodada de ajuda anterior, o governo
federal tentou controlar o problema por meio do Regime de Recuperação Fiscal
(RRF), a que aderiram Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Goiás e, por último,
Minas. Em troca de alívio nos encargos financeiros, os governos estaduais
comprometeram-se a promover um ajuste fiscal, sempre negligenciado. Anos de
idas e vindas mostraram que, a qualquer folga de caixa, eles se apressam a
reajustar salários do funcionalismo e a realizar gastos eleitoreiros.
No lugar do RRF, surge agora o Programa de
Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag), que lhes permitirá reduzir a
zero juros hoje em 4%, em troca de certos compromissos: o estado poderá
entregar à União ativos que representem de 10% a 20% da dívida; poderá destinar
o dinheiro dos juros à educação, às universidades estaduais ou à segurança
pública; poderá aplicá-lo num fundo de investimentos a que todos os estados
terão acesso. Para atender àqueles com poucas ou nenhuma estatal a oferecer em
troca de corte nos juros, o Propag permite que sirva como caução para a redução
dos encargos financeiros o novo Fundo de Desenvolvimento Regional (FNDR),
criado pela reforma tributária.
Estão criadas, novamente, as condições para
que o endividamento deixe de pressionar o caixa dos estados. Agora, cabe aos
governadores cumprir sua parte, pautando a administração pela austeridade. Mas
as três décadas de rodadas de renegociação de dívidas de estados e municípios
são frustrantes. Apesar das intensas negociações em Brasília e das facilidades
criadas para o saneamento dos entes federativos, a incúria administrativa
sempre imperou.
No ano passado, o Rio de Janeiro alcançou o
limite legal de 200% na relação entre dívida e receita líquida. Rio Grande do
Sul e Minas estão acima de 150%, e São Paulo em 120%. Confiando que serão
socorridos, os governos se sentem livres para gastar como se não houvesse
amanhã. Essa cultura precisa ser banida da administração pública. Infelizmente
o Propag, ainda que sob a intenção nobre e necessária de assegurar a prestação
de serviços públicos, só contribuirá para perpetuá-la.
Fed cria dificuldade extra para a economia
brasileira
Folha de S. Paulo
Ritmo menor de queda dos juros nos EUA
estimula alta do dólar; aqui, choque de juros contra a inflação deve afetar PIB
A perda de credibilidade da política
econômica é a principal razão para a alta do dólar e
a disparada dos juros,
mas as dificuldades do país são amplificadas pelo contexto global. Em
particular, a perspectiva de menor queda dos juros nos Estados
Unidos pode complicar ainda mais a situação do Brasil.
Nesta semana, o Federal Reserve, a autoridade
monetária americana, decidiu
cortar a taxa básica em 0,25 ponto percentual, para o intervalo de
4,25% a 4,5%. Era o esperado, contudo a instituição indicou menor ritmo de
afrouxamento daqui para a frente.
As razões são o vigor surpreendente da economia dos
EUA, que deve crescer 2,5% neste ano, e a maior
pressão inflacionária. O Fed revisou
a inflação projetada
para 2025 de 2,2% para 2,5% (na medida que exclui preços de comida e energia) e
agora somente enxerga convergência para a meta de 2% em 2027.
Daí que o mercado financeiro tem revisado
para cima a expectativa para os juros no principal centro financeiro do mundo.
Hoje já se antevê que as taxas não devem cair abaixo de 4%.
O resultado é maior valorização global do
dólar. Os esperados cortes de impostos, imposição de tarifas de importação e
restrições à imigração após a posse de Donald Trump podem
adicionar ainda mais lenha na fogueira dos preços, dificultando o trabalho do
Fed —e de todos os bancos centrais do mundo.
No Brasil, o quadro já é complexo pela piora
nas expectativas em relação à evolução da dívida pública depois do anúncio do
pacote frágil de controle de gastos, ainda mais
diluído pelo Congresso diante da falta de convicção de Luiz
Inácio Lula da
Silva (PT),
que delegou a seu ministro da Fazenda o desgaste de impulsionar a pauta entre
os parlamentares.
Desde a divulgação do plano, os juros no
mercado saltaram cerca de 2 pontos percentuais e hoje incorporam a expectativa
de que a Selic subirá
a 16% anuais.
Pode ser um exagero típico em momentos de
insegurança, mas é inescapável que taxas maiores serão necessárias para conter
a inflação diante da imprudência do Planalto com as contas públicas.
A inflação segue pressionada e deve terminar
o ano perto de 5%, estourando o limite de 4,5%, com sinais de aceleração no
fundamental setor de serviços.
Até aqui a economia resistiu, com alta
provável do Produto Interno Bruto perto de 3,5% neste ano e desemprego baixo. É
ilusão, porém, achar que o aperto das condições financeiras não chegará à
atividade e ao emprego.
Já se nota contração nas intenções de
investimento e alguma queda nas expectativas do consumidor. As projeções de
expansão do PIB para
2025 ainda estão próximas a 2%, mas tal cifra mascara uma desaceleração —boa
parte dessa taxa advém apenas de efeitos estatísticos e indica crescimento
pouco acima de zero.
E, à diferença do que ocorreu em seus
primeiros governos, Lula não conta desta vez com um cenário excepcional no
mundo.
257 tiros impunes no Superior Tribunal
Militar
Folha de S. Paulo
Absolvições no caso Evaldo põem
corporativismo acima da lei; Justiça castrense não deveria julgar crimes contra
civis
À diferença do que diz o ditado, a Justiça
pode tardar e, mesmo assim, falhar.
No dia 7 de abril de 2019, agentes do
Exército dispararam 257 tiros contra o carro em que estava o músico Evaldo Rosa
dos Santos e sua família, na zona oeste do Rio de
Janeiro. Tratou-se de uma violência brutal,
mas o Superior Tribunal Militar decidiu, na quarta (18), absolver os
militares pela morte de Evaldo, qualificando a ação como legítima
defesa.
À época, o delegado responsável pela perícia
no local descreveu o que viu como o "fuzilamento do veículo de uma família
de bem indo para um chá de bebê".
A defesa alegou que os acusados confundiram o
carro com outro usado em um roubo, como se isso fosse suficiente para autorizar
militares a alvejar civis com centenas de tiros em plena vigência do Estado de
Direito.
O catador de material reciclável Luciano
Macedo também foi atingido, ao tentar ajudar a família, e morreu 11 dias depois
do ataque; o sogro de Evaldo, Sérgio de Araújo, que estava no veículo, foi
baleado e sobreviveu.
Nesses casos, o STM manteve a condenação, mas
reduziu a pena que haviam recebido na primeira instância em 28 anos. Um tenente
recebeu 3 anos e 7 meses de reclusão, e os outros militares, 3 anos. Com isso,
cumprirão a punição em regime aberto.
Na primeira instância, eles haviam sido
condenados em 2021 a penas que variavam de 28 a 31 anos e meio de prisão pelos
crimes de homicídio qualificado
de duas vítimas e tentativa de homicídio de uma terceira.
O julgamento do caso por corte castrense é,
mais uma vez, descabido. A Justiça Militar deveria ficar restrita a
apreciar questões específicas das Forças Armadas, e não abarcar
crimes contra civis. Na Argentina,
por exemplo, ela foi abolida em 2009.
O STM, em particular, nem sequer exige que os
seus julgadores tenham a devida formação jurídica —10 dos 15 ministros são
militares. Desnecessário dizer que tal composição predispõe a corte a erros
técnicos, principalmente quando se trata de crimes contra civis, dado o
corporativismo e a imbricação com a rígida hierarquia da caserna.
Algumas das expressões usadas no STM para
descrever ou justificar o evento —como "grande confusão" ou tentativa
de "conter ação criminosa, ainda que imaginária"— denotam a
fundamentação precária que contribuiu para a impunidade vexatória.
Se a Justiça Militar não leva a sério o trabalho de responsabilizar seus agentes por violações à lei, é legitimo que seu alcance seja reavaliado por STF e Congresso.
A aula do professor Galípolo
O Estado de S. Paulo
Futuro presidente do BC explica didaticamente
por que o real não está sob ataque especulativo, numa aula aos petistas que
acham que a disparada do dólar é fruto de complô contra Lula
Quem entende um mínimo de mercado financeiro
sabe que o real não está sob ataque especulativo, como os petistas querem fazer
crer. A desvalorização da moeda reflete basicamente a notória falta de
compromisso fiscal do governo Lula nas últimas semanas. Mas o nível do debate
econômico no País atualmente anda tão baixo que é um verdadeiro alento quando
quem diz isso é o futuro presidente do Banco Central (BC), Gabriel Galípolo.
“Não é correto tentar tratar o mercado como
um bloco monolítico, vamos dizer assim, como se fosse uma coisa só, que está
coordenada, andando em um único sentido. Basta a gente entender que o mercado
funciona, geralmente, com posições contrárias. Para existir um mercado, precisa
existir alguém comprando e alguém vendendo”, afirmou Galípolo, durante
entrevista coletiva após a divulgação do Relatório Trimestral de Inflação,
como se estivesse dando aula para os petistas.
E a aula prosseguiu: “Então, toda vez que o
preço de algum ativo se mobiliza em alguma direção, você tem vencedores e
perdedores. Eu acho que a ideia de ataque especulativo enquanto algo coordenado
não representa bem”.
Indicado pelo presidente Lula, Galípolo
assumirá o cargo formalmente no ano que vem, mas desde já vem se esforçando
para demonstrar que não pensa como o padrinho. Consta que na última reunião do
Comitê de Política Monetária (Copom), na qual os juros foram elevados em um
ponto porcentual, para 12,25% ao ano, Galípolo assumiu o protagonismo da
decisão, que foi unânime e que desagradou profundamente ao PT de Lula.
E a sinalização que o comitê deu sobre seus
próximos passos, prevendo dois aumentos de um ponto porcentual nos juros nas
reuniões de janeiro e março, de certa forma facilitou o trabalho de Galípolo.
Havia receio de que ele fosse pressionado pelo governo para afrouxar os juros
durante seus primeiros meses à frente da autoridade monetária. Com a orientação
dada na última reunião e as declarações dadas nesta semana, essas iniciativas,
se ocorrerem, não surtirão efeito.
Desde o desastrado anúncio do pacote de
medidas econômicas do governo e a promessa de isentar de Imposto de Renda quem
ganha até R$ 5 mil mensais, o dólar disparou e a curva futura de juros embicou
para cima. E desde o dia 12 de dezembro, para acalmar os investidores e injetar
liquidez no mercado cambial, a autoridade monetária já despejou US$ 27,760
bilhões por meio de 12 leilões no mercado.
Isso prova que a desvalorização do real,
infelizmente, não é mera especulação. Se fosse, os investidores desmontariam
essas posições na primeira oportunidade que tivessem. Afinal, ninguém está
disposto a perder dinheiro à toa e são pouquíssimos os agentes com “bala na
agulha” para segurar suas apostas contra o Banco Central e suas reservas.
Na narrativa do governo, porém, o mercado
joga contra o Brasil e o presidente Lula da Silva. Que a bancada do PT na
Câmara e no Senado repita esse tipo de informação é até compreensível como
parte do jogo político, mas é assustador que o ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, dê a entender que pensa da mesma forma. “Há contatos conosco falando em
especulação”, disse Haddad, na última quarta-feira, 18. A frase, evidentemente,
pegou mal. Quando é o ministro da Fazenda quem diz isso, ele exime o governo de
Lula da Silva de responsabilidade por toda a instabilidade que ele mesmo
fabricou nas últimas semanas, razão pela qual a obviedade apontada por Galípolo
a respeito do funcionamento do mercado ganha ainda mais valor.
Ao contrário do que o governo quer fazer
acreditar, há muitas razões internas a explicar a desvalorização da moeda. De
um lado, há um fluxo de saída de dólares acima do esperado para o período de
fim de ano, quando há concentração de envio de remessas ao exterior.
De outro, o mercado já acredita que o BC terá
de elevar os juros para 15% ou até mais no ano que vem, haja vista que dados
do Relatório Trimestral de Inflação indicam que o IPCA acumulado em
12 meses ficará acima do teto da meta ao menos até o terceiro trimestre.
Essa conjuntura exige uma visão realista do
Banco Central sobre as causas e consequências dessas turbulências. Espera-se
que Galípolo consiga mantê-la nos próximos meses.
O bom senso parcial de Barroso
O Estado de S. Paulo
Seu voto sobre o Marco Civil faz algum
progresso em relação aos de seus colegas. Mas, no geral, referenda uma censura
draconiana que sufocará a livre manifestação nas redes
Seguramente constrangido com os votos de seus
colegas Dias Toffoli e Luiz Fux a respeito do Marco Civil da Internet, ora em
debate na Corte, votos esses que já têm lugar garantido na antologia dos
atentados à Constituição, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís
Roberto Barroso, tomou a decisão incomum de antecipar seu voto. Presume-se que
Barroso pretendia temperar a discussão, que caminhava para chancelar a mordaça
na internet. A fim de encontrar uma forma de discordar da sanha censória de Toffoli
e Fux sem desmoralizá-los, Barroso disse que o artigo 19 do referido Marco
Civil, aquele que versa sobre a responsabilidade das redes sociais, é
“parcialmente” inconstitucional. Como não liberou a divulgação do voto, só suas
“anotações”, não se sabe bem como ele fundamentará essa tese sem ferir a
hermenêutica jurídica. Mas pode-se dizer, sem ferir a lógica, que seu voto é só
parcialmente sensato.
O artigo 19 estabelece que a responsabilidade
pelos danos de alguma publicação é de seu criador, e as plataformas só se
tornam corresponsáveis se desobedecerem a uma ordem judicial de remoção. O
artigo 21 estabelece uma exceção caso as redes sejam notificadas
extrajudicialmente sobre conteúdo contendo cenas de nudez ou sexo não
autorizadas.
Assim, cada um é livre para dizer o que bem
entender, e responde pelo que disser. As redes podem estabelecer regras
definindo o que é ou não aceitável, e cada um é livre para aderir ou não a
essas regras. Se um usuário julga que seu conteúdo foi removido em violação a
essas regras, pode recorrer à Justiça. Se uma pessoa julga que foi vítima de
algum conteúdo ilícito, pode recorrer à Justiça. A Justiça tem a prerrogativa
de obrigar as redes a respeitar suas próprias regras e de obrigar os usuários a
respeitar a lei. Pelo regime vigente, só a Justiça pode determinar se um
conteúdo é ilícito e obrigar as redes a removê-lo. Caso se recusem, passam a
ser corresponsáveis. A liberdade de expressão é a regra; a censura, a exceção,
a ser aplicada pelo Judiciário após o devido processo legal.
Evocando vagamente a proteção de direitos
fundamentais, Toffoli e Fux entenderam que esse regime é inconstitucional. A
seu ver, a Constituição exige que as redes censurem conteúdos após a
notificação de quem se sente ofendido. Como resumiu Fux, “notificou, tira; quer
botar de novo, judicializa”. Toffoli propôs um “decálogo contra a violência
digital e desinformação”. Mesmo sem serem notificadas, as redes seriam
responsáveis por supostos crimes, como “qualquer espécie de violação contra a
mulher”, fatos “descontextualizados” ou “discursos de ódio”. Alexandre de
Moraes sugeriu ainda “atos antidemocráticos”.
A Justiça pode levar anos para decidir se
alguma manifestação se enquadra num ilícito, mas os ministros exigem ação
imediata das redes. A prevalecer essa tese, as pequenas plataformas, sem
condições de fazer esse monitoramento ostensivo, sairão do mercado, e as
grandes suprimirão qualquer conteúdo minimamente controverso para se furtar à
responsabilização – levada às suas últimas consequências, por sinal, quem
administra um site ou perfil, por menor que seja, será responsável por qualquer
manifestação em suas caixas de comentários.
Barroso ensaiou um freio a essa terceirização
da censura. “Não se deve impor às plataformas o controle prévio de todos os
conteúdos gerados por terceiros, nem as sujeitar a uma obrigação geral de
vigilância.” Para conteúdos relacionados à honra (injúria, calúnia, difamação),
deveria se manter a obrigatoriedade de ordem judicial, pois, do contrário, “a
próxima vez que alguém disser que o governador é mentiroso ou medíocre, isso
estaria sujeito à remoção, o que seria altamente limitador do debate público”.
No entanto, Barroso entende que para todos os
demais crimes deveria valer o modelo de notificação e remoção, exceto em caso
de “dúvida razoável”. Mas quem define o que é “razoável”? Na prática, em que
pese toda a circunspecção de Barroso, o modelo do artigo 19 será a exceção, e a
vigilância draconiana, a regra.
O voto de Barroso é um progresso, mas só
parcial. No mais importante, referenda o retrocesso proposto por seus colegas.
Corporativismo indecente
O Estado de S. Paulo
STM não faz justiça ao relevar o assassinato
de dois inocentes por militares fardados
O Estado brasileiro falhou miseravelmente não
uma, mas duas vezes com dois homens inocentes, o músico Evaldo Rosa e o catador
Luciano Macedo, e seus familiares.
Em 7 de abril de 2019, Evaldo e Luciano foram
fuzilados por oito militares do Exército durante uma patrulha irregular em
Guadalupe, zona norte do Rio, a pretexto de impedir o tráfico de drogas no
perímetro da Vila Militar – uma ação que só poderia ser realizada sob
autorização expressa da Presidência da República, o que jamais houve. No
próprio local, foi decretada a morte física de ambos pelos agentes do Estado.
Evaldo e sua família estavam a caminho de um
chá de bebê quando o carro que o músico dirigia foi “confundido” pela guarnição
liderada pelo tenente Ítalo da Silva Nunes com outro que seria ocupado por
supostos criminosos. Os militares não titubearam e abriram fogo. Nada menos que
257 tiros de fuzil foram disparados “por engano” contra o veículo do músico,
que morreu na hora. Ao ver a família em desespero sob uma saraivada de balas,
Luciano tentou socorrê-la, sendo ele também baleado. Levado a um hospital, morreu
dias depois.
Na primeira instância, os réus foram
condenados a penas entre 28 e 31 anos de prisão. O caso, porém, chegou ao
Superior Tribunal Militar (STM), onde o espírito de corpo, aparentemente, foi
mais forte do que o desejo dos ministros da Corte de fazer justiça diante de um
crime brutal cometido por militares fardados.
No dia 18 de dezembro, o STM absolveu os oito
militares pelo assassinato de Evaldo. Prevaleceu o entendimento do relator,
Carlos Augusto Oliveira, segundo o qual não houve intenção de matar – imagine o
leitor se houvesse – e, ademais, não se pôde precisar de onde partira o tiro
fatal. De fato, a perícia técnica foi inconclusiva, mas isso deveria levar à
revisão da dosimetria das penas, não à absolvição. Já em relação à morte de
Luciano, o STM reclassificou o crime para homicídio culposo, reduzindo drasticamente
a pena aplicada aos réus para pouco mais de 3 anos de detenção, a ser cumprida
por todos em regime aberto.
Em Brasília, portanto, decretou-se a segunda
morte das vítimas, esta de ordem moral. Evaldo e Luciano foram tratados
indignamente pelo STM como dois desafortunados que deram o azar de estarem no
lugar errado na hora errada. Trata-se de uma afronta à sociedade, que não
espera outra coisa da Justiça senão a punição de qualquer cidadão que cometa
crimes, seja civil, seja militar. Afinal, o Brasil é uma República onde todos,
supostamente, são iguais perante a lei, de modo que a farda não confere a
ninguém o direito de matar impunemente em tempos de paz.
Ademais, o STM vilipendiou a memória das
vítimas e feriu os sentimento de seus familiares, que tiveram de assistir à
Corte tratar as vidas perdidas por seus entes queridos como bens menos
preciosos do que a salvaguarda dos interesses corporativos das Forças Armadas.
Esse terrível caso, além de tudo, é o retrato mais bem acabado do absoluto despreparo das Forças Armadas para atuar como polícias, sobretudo em áreas urbanas.
Congresso cobra pedágio no pacote fiscal
Correio Braziliense
A prerrogativa de elaborar emendas
impositivas ao Orçamento da União é um alargamento discutível das atribuições
do Congresso, cuja disfuncionalidade vem se tornando cada vez mais flagrante
Não se discute que o Congresso Nacional
representa a totalidade dos brasileiros. Para isso, porém, deputados e
senadores são muito bem remunerados e têm todas as condições materiais para
exercerem suas atribuições, sendo legislar para o bem comum a missão principal.
A prerrogativa de elaborar emendas impositivas ao Orçamento da União é um
alargamento discutível dessas atribuições, cuja disfuncionalidade vem se
tornando cada vez mais flagrante.
Foi o que observamos neste final do ano,
durante o processo de aprovação da reforma tributária e do ajuste fiscal, no
qual as emendas impositivas se tornaram um instrumento de chantagem do
Legislativo em relação ao Executivo. A obstrução deliberada dos trabalhos do
Congresso, que costuma ser um instrumento de negociação das minorias, foi
protagonizada por governistas e oposicionistas para barganhar o descumprimento
de regras de transparência e rastreabilidade das verbas federais,
recém-estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em razão da ocorrência
de desvios de recursos públicos na execução dessas emendas.
As emendas parlamentares impositivas permitem
aos parlamentares destinarem recursos do Orçamento da União para projetos,
obras e ações em seus estados e municípios. São assim chamadas porque sua
execução pelo Poder Executivo é obrigatória, desde que estejam de acordo com
critérios legais. O montante dessas emendas neste ano chega a R$ 52 bilhões.
Ocorre que vários casos de desvios desses
recursos estão sendo investigados, o que levou o STF a estabelecer regras mais
rígidas de controle sobre a aplicação dessas verbas, uma parte das quais se
tornou uma caixa preta, o chamado "orçamento secreto", como eram
chamadas as" emendas do relator" cujos verdadeiros autores
permaneciam no anonimato.
Medidas adotadas pelo Supremo proibiram a
existência do "orçamento secreto". Porém, deputados e senadores
criaram expedientes para burlar a decisão. Um deles é a chamada emenda Pix,
cuja destinação não exigia projetos nem programas específicos; o outro, as
emendas de comissão, cujos autores não eram identificados. Diante da falta de
transparência e rastreabilidade e de casos comprovados de desvio de recursos, o
ministro do STF Flávio Dino sustou a execução dessas emendas e, com aprovação
dos demais integrantes do STF, estabeleceu regras novas para garantir o
respeito às diretrizes constitucionais de execução orçamentária.
Emendas parlamentares no Brasil têm sido, ao
longo dos anos, foco de diversos escândalos. Os mais notórios foram Anões do
Orçamento (1993-1994), no qual parlamentares manipulavam emendas para
beneficiar entidades fantasmas; Sanguessugas (2006), a compra de ambulâncias
superfaturadas em conluio com empresas fornecedoras do Ministério da Saúde;
Operação João de Barro (2008), desvios de verbas destinadas a estradas e casas
populares; e o Orçamento Secreto (2020-2022), a distribuição de recursos sem
transparência. Neste ano, houve ainda a Operação Overclean, que desviou R$ 1,4
bilhão de recursos por meio de licitações e contratos fraudulentos.
Diante desse histórico, não se pode concordar com a adoção de mecanismos — como a recém-criada "emenda de lideranças", para realocar emendas parlamentares sem que se saiba a autoria e a destinação dessas verbas — durante as negociações para aprovação da reforma tributária e do pacote fiscal pelo Congresso. Por óbvio, esse expediente contraria as regras constitucionais e é um terreno fértil para novos escândalos.
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