sábado, 21 de dezembro de 2024

O que a mídia pensa | Editoriais / Opiniões

Congresso é sócio do Executivo na piora da economia

O Globo

Ao aliviar pacote de controle de gastos, parlamentares ignoram a gravidade da crise e ampliam seu custo no futuro

Para estabilizar a dívida pública, o Brasil precisaria de um ajuste fiscal da ordem de R$ 300 bilhões no Orçamento. No primeiro ano do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o valor ficou em R$ 30 bilhões e, no segundo, em R$ 40 bilhões. O pacote fiscal enviado ao Congresso em novembro, se tivesse sido aprovado sem modificações, promoveria um corte médio anual da ordem de R$ 35 bilhões. Depois de votações na Câmara e no Senado, o que já era ruim ficou pior. Demonstrando tibieza, os congressistas desidrataram várias medidas propostas. Tiraram força do corte de despesas sem aprovar alternativas. Fingiram desconhecer a gravidade do momento e só adiaram para 2025 o enfrentamento da grave crise fiscal. Se até agora o descaso com as contas públicas poderia ser atribuído sobretudo ao Executivo, ele passa a ter um sócio de peso: o Congresso Nacional.

É certo que ajustes fiscais costumam ser feitos em etapas, mas o gradualismo imposto pelo Parlamento é irreal. No texto enviado ao Congresso, o governo solicitava poder para bloquear ou contingenciar até 15% das emendas parlamentares em caso de necessidade. Nada mais lógico. Por que manter o Parlamento fora do esforço para buscar o equilíbrio? Sem apresentar nenhum argumento convincente, os congressistas enfraqueceram a proposta: somente as emendas de comissão poderão ser bloqueadas.

Poucos temas desfrutam unanimidade na opinião pública como os supersalários da elite do funcionalismo. Infelizmente, a indignação justa com essa distorção não encontrou eco no Parlamento. O pacote do governo previa proibir imediatamente o pagamento de verbas acima do teto que não estivessem previstas por lei complementar, mas o Legislativo adiou a decisão e deixou tudo como está. E adiou a discussão sobre as mudanças nas aposentadorias dos militares.

Os congressistas também negaram mudança no critério de reajuste do Fundo Constitucional do Distrito Federal. Barraram pedido do governo por mais liberdade para fazer bloqueios no Orçamento e reduziram pela metade a economia prevista no Fundeb. O projeto que restringia o acúmulo numa mesma família de concessões do benefício destinado a idosos e deficientes de baixa renda, o BPC, foi rejeitado. Os parlamentares também derrubaram propostas que buscavam aumentar o foco nos mais necessitados. Vetaram a proibição de acesso ao BPC a quem tem bens e direitos acima do limite de isenção do Imposto de Renda e dos capazes de trabalhar. Houve, é verdade, avanços, como a aprovação de regra que restringe o benefício a portadores de deficiências moderadas e graves. Ainda assim, serão incapazes de conter a escalada de pagamentos do BPC.

A mudança com maior impacto fiscal foi o teto de 2,5% para o aumento real do salário mínimo. Como afeta as contas da Previdência e benefícios sociais, a expectativa do governo é economizar R$ 2,2 bilhões em 2025 e R$ 9,7 bilhões em 2026. O Congresso também chancelou mudança no abono pago a quem ganha até dois mínimos. Embora aquém da necessidade, ambas são medidas de caráter estrutural. É de transformações duradouras desse tipo que o país precisa para equilibrar as contas públicas. Elas estavam em falta no pacote original e foram aliviadas. Os parlamentares não terão como se esquivar da responsabilidade pela deterioração na situação econômica.

Novo programa de socorro a estados perpetua o incentivo à gastança

O Globo

Governo federal voltará a facilitar o pagamento de dívidas com contrapartidas frágeis de austeridade

Mais uma vez os estados serão socorridos pela União. Pela quarta vez desde a redemocratização, os governadores têm sucesso ao apelar a Brasília para reduzir seu endividamento com ajuda do Tesouro Nacional. O novo pacote aprovado pelo Congresso joga para o futuro o vencimento de dívidas totais de cerca de R$ 760 bilhões, concentradas em São PauloRio de JaneiroMinas Gerais e Rio Grande do Sul.

Como já ocorreu em 1993, 1997 e 2016, os governadores se comprometem a voltar a pagar em dia os compromisso financeiros. Mas nada garante que, cedo ou tarde, não venham a bater novamente às portas do governo federal para que a União volte a assumir suas dívidas, passe a lhes cobrar juros camaradas ou até zerá-los. O subsídio é sempre coberto pelo Tesouro. A situação seria ainda pior se estados e municípios não tivessem sido proibidos de se endividar lançando títulos.

Na rodada de ajuda anterior, o governo federal tentou controlar o problema por meio do Regime de Recuperação Fiscal (RRF), a que aderiram Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Goiás e, por último, Minas. Em troca de alívio nos encargos financeiros, os governos estaduais comprometeram-se a promover um ajuste fiscal, sempre negligenciado. Anos de idas e vindas mostraram que, a qualquer folga de caixa, eles se apressam a reajustar salários do funcionalismo e a realizar gastos eleitoreiros.

No lugar do RRF, surge agora o Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag), que lhes permitirá reduzir a zero juros hoje em 4%, em troca de certos compromissos: o estado poderá entregar à União ativos que representem de 10% a 20% da dívida; poderá destinar o dinheiro dos juros à educação, às universidades estaduais ou à segurança pública; poderá aplicá-lo num fundo de investimentos a que todos os estados terão acesso. Para atender àqueles com poucas ou nenhuma estatal a oferecer em troca de corte nos juros, o Propag permite que sirva como caução para a redução dos encargos financeiros o novo Fundo de Desenvolvimento Regional (FNDR), criado pela reforma tributária.

Estão criadas, novamente, as condições para que o endividamento deixe de pressionar o caixa dos estados. Agora, cabe aos governadores cumprir sua parte, pautando a administração pela austeridade. Mas as três décadas de rodadas de renegociação de dívidas de estados e municípios são frustrantes. Apesar das intensas negociações em Brasília e das facilidades criadas para o saneamento dos entes federativos, a incúria administrativa sempre imperou.

No ano passado, o Rio de Janeiro alcançou o limite legal de 200% na relação entre dívida e receita líquida. Rio Grande do Sul e Minas estão acima de 150%, e São Paulo em 120%. Confiando que serão socorridos, os governos se sentem livres para gastar como se não houvesse amanhã. Essa cultura precisa ser banida da administração pública. Infelizmente o Propag, ainda que sob a intenção nobre e necessária de assegurar a prestação de serviços públicos, só contribuirá para perpetuá-la.

Fed cria dificuldade extra para a economia brasileira

Folha de S. Paulo

Ritmo menor de queda dos juros nos EUA estimula alta do dólar; aqui, choque de juros contra a inflação deve afetar PIB

A perda de credibilidade da política econômica é a principal razão para a alta do dólar e a disparada dos juros, mas as dificuldades do país são amplificadas pelo contexto global. Em particular, a perspectiva de menor queda dos juros nos Estados Unidos pode complicar ainda mais a situação do Brasil.

Nesta semana, o Federal Reserve, a autoridade monetária americana, decidiu cortar a taxa básica em 0,25 ponto percentual, para o intervalo de 4,25% a 4,5%. Era o esperado, contudo a instituição indicou menor ritmo de afrouxamento daqui para a frente.

As razões são o vigor surpreendente da economia dos EUA, que deve crescer 2,5% neste ano, e a maior pressão inflacionária. O Fed revisou a inflação projetada para 2025 de 2,2% para 2,5% (na medida que exclui preços de comida e energia) e agora somente enxerga convergência para a meta de 2% em 2027.

Daí que o mercado financeiro tem revisado para cima a expectativa para os juros no principal centro financeiro do mundo. Hoje já se antevê que as taxas não devem cair abaixo de 4%.

O resultado é maior valorização global do dólar. Os esperados cortes de impostos, imposição de tarifas de importação e restrições à imigração após a posse de Donald Trump podem adicionar ainda mais lenha na fogueira dos preços, dificultando o trabalho do Fed —e de todos os bancos centrais do mundo.

No Brasil, o quadro já é complexo pela piora nas expectativas em relação à evolução da dívida pública depois do anúncio do pacote frágil de controle de gastos, ainda mais diluído pelo Congresso diante da falta de convicção de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que delegou a seu ministro da Fazenda o desgaste de impulsionar a pauta entre os parlamentares.

Desde a divulgação do plano, os juros no mercado saltaram cerca de 2 pontos percentuais e hoje incorporam a expectativa de que a Selic subirá a 16% anuais.

Pode ser um exagero típico em momentos de insegurança, mas é inescapável que taxas maiores serão necessárias para conter a inflação diante da imprudência do Planalto com as contas públicas.

A inflação segue pressionada e deve terminar o ano perto de 5%, estourando o limite de 4,5%, com sinais de aceleração no fundamental setor de serviços.

Até aqui a economia resistiu, com alta provável do Produto Interno Bruto perto de 3,5% neste ano e desemprego baixo. É ilusão, porém, achar que o aperto das condições financeiras não chegará à atividade e ao emprego.

Já se nota contração nas intenções de investimento e alguma queda nas expectativas do consumidor. As projeções de expansão do PIB para 2025 ainda estão próximas a 2%, mas tal cifra mascara uma desaceleração —boa parte dessa taxa advém apenas de efeitos estatísticos e indica crescimento pouco acima de zero.

E, à diferença do que ocorreu em seus primeiros governos, Lula não conta desta vez com um cenário excepcional no mundo.

257 tiros impunes no Superior Tribunal Militar

Folha de S. Paulo

Absolvições no caso Evaldo põem corporativismo acima da lei; Justiça castrense não deveria julgar crimes contra civis

À diferença do que diz o ditado, a Justiça pode tardar e, mesmo assim, falhar.

No dia 7 de abril de 2019, agentes do Exército dispararam 257 tiros contra o carro em que estava o músico Evaldo Rosa dos Santos e sua família, na zona oeste do Rio de Janeiro. Tratou-se de uma violência brutal, mas o Superior Tribunal Militar decidiu, na quarta (18), absolver os militares pela morte de Evaldo, qualificando a ação como legítima defesa.

À época, o delegado responsável pela perícia no local descreveu o que viu como o "fuzilamento do veículo de uma família de bem indo para um chá de bebê".

A defesa alegou que os acusados confundiram o carro com outro usado em um roubo, como se isso fosse suficiente para autorizar militares a alvejar civis com centenas de tiros em plena vigência do Estado de Direito.

O catador de material reciclável Luciano Macedo também foi atingido, ao tentar ajudar a família, e morreu 11 dias depois do ataque; o sogro de Evaldo, Sérgio de Araújo, que estava no veículo, foi baleado e sobreviveu.

Nesses casos, o STM manteve a condenação, mas reduziu a pena que haviam recebido na primeira instância em 28 anos. Um tenente recebeu 3 anos e 7 meses de reclusão, e os outros militares, 3 anos. Com isso, cumprirão a punição em regime aberto.

Na primeira instância, eles haviam sido condenados em 2021 a penas que variavam de 28 a 31 anos e meio de prisão pelos crimes de homicídio qualificado de duas vítimas e tentativa de homicídio de uma terceira.

O julgamento do caso por corte castrense é, mais uma vez, descabido. A Justiça Militar deveria ficar restrita a apreciar questões específicas das Forças Armadas, e não abarcar crimes contra civis. Na Argentina, por exemplo, ela foi abolida em 2009.

O STM, em particular, nem sequer exige que os seus julgadores tenham a devida formação jurídica —10 dos 15 ministros são militares. Desnecessário dizer que tal composição predispõe a corte a erros técnicos, principalmente quando se trata de crimes contra civis, dado o corporativismo e a imbricação com a rígida hierarquia da caserna.

Algumas das expressões usadas no STM para descrever ou justificar o evento —como "grande confusão" ou tentativa de "conter ação criminosa, ainda que imaginária"— denotam a fundamentação precária que contribuiu para a impunidade vexatória.

Se a Justiça Militar não leva a sério o trabalho de responsabilizar seus agentes por violações à lei, é legitimo que seu alcance seja reavaliado por STF e Congresso.

A aula do professor Galípolo

O Estado de S. Paulo

Futuro presidente do BC explica didaticamente por que o real não está sob ataque especulativo, numa aula aos petistas que acham que a disparada do dólar é fruto de complô contra Lula

Quem entende um mínimo de mercado financeiro sabe que o real não está sob ataque especulativo, como os petistas querem fazer crer. A desvalorização da moeda reflete basicamente a notória falta de compromisso fiscal do governo Lula nas últimas semanas. Mas o nível do debate econômico no País atualmente anda tão baixo que é um verdadeiro alento quando quem diz isso é o futuro presidente do Banco Central (BC), Gabriel Galípolo.

“Não é correto tentar tratar o mercado como um bloco monolítico, vamos dizer assim, como se fosse uma coisa só, que está coordenada, andando em um único sentido. Basta a gente entender que o mercado funciona, geralmente, com posições contrárias. Para existir um mercado, precisa existir alguém comprando e alguém vendendo”, afirmou Galípolo, durante entrevista coletiva após a divulgação do Relatório Trimestral de Inflação, como se estivesse dando aula para os petistas.

E a aula prosseguiu: “Então, toda vez que o preço de algum ativo se mobiliza em alguma direção, você tem vencedores e perdedores. Eu acho que a ideia de ataque especulativo enquanto algo coordenado não representa bem”.

Indicado pelo presidente Lula, Galípolo assumirá o cargo formalmente no ano que vem, mas desde já vem se esforçando para demonstrar que não pensa como o padrinho. Consta que na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), na qual os juros foram elevados em um ponto porcentual, para 12,25% ao ano, Galípolo assumiu o protagonismo da decisão, que foi unânime e que desagradou profundamente ao PT de Lula.

E a sinalização que o comitê deu sobre seus próximos passos, prevendo dois aumentos de um ponto porcentual nos juros nas reuniões de janeiro e março, de certa forma facilitou o trabalho de Galípolo. Havia receio de que ele fosse pressionado pelo governo para afrouxar os juros durante seus primeiros meses à frente da autoridade monetária. Com a orientação dada na última reunião e as declarações dadas nesta semana, essas iniciativas, se ocorrerem, não surtirão efeito.

Desde o desastrado anúncio do pacote de medidas econômicas do governo e a promessa de isentar de Imposto de Renda quem ganha até R$ 5 mil mensais, o dólar disparou e a curva futura de juros embicou para cima. E desde o dia 12 de dezembro, para acalmar os investidores e injetar liquidez no mercado cambial, a autoridade monetária já despejou US$ 27,760 bilhões por meio de 12 leilões no mercado.

Isso prova que a desvalorização do real, infelizmente, não é mera especulação. Se fosse, os investidores desmontariam essas posições na primeira oportunidade que tivessem. Afinal, ninguém está disposto a perder dinheiro à toa e são pouquíssimos os agentes com “bala na agulha” para segurar suas apostas contra o Banco Central e suas reservas.

Na narrativa do governo, porém, o mercado joga contra o Brasil e o presidente Lula da Silva. Que a bancada do PT na Câmara e no Senado repita esse tipo de informação é até compreensível como parte do jogo político, mas é assustador que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, dê a entender que pensa da mesma forma. “Há contatos conosco falando em especulação”, disse Haddad, na última quarta-feira, 18. A frase, evidentemente, pegou mal. Quando é o ministro da Fazenda quem diz isso, ele exime o governo de Lula da Silva de responsabilidade por toda a instabilidade que ele mesmo fabricou nas últimas semanas, razão pela qual a obviedade apontada por Galípolo a respeito do funcionamento do mercado ganha ainda mais valor.

Ao contrário do que o governo quer fazer acreditar, há muitas razões internas a explicar a desvalorização da moeda. De um lado, há um fluxo de saída de dólares acima do esperado para o período de fim de ano, quando há concentração de envio de remessas ao exterior.

De outro, o mercado já acredita que o BC terá de elevar os juros para 15% ou até mais no ano que vem, haja vista que dados do Relatório Trimestral de Inflação indicam que o IPCA acumulado em 12 meses ficará acima do teto da meta ao menos até o terceiro trimestre.

Essa conjuntura exige uma visão realista do Banco Central sobre as causas e consequências dessas turbulências. Espera-se que Galípolo consiga mantê-la nos próximos meses.

O bom senso parcial de Barroso

O Estado de S. Paulo

Seu voto sobre o Marco Civil faz algum progresso em relação aos de seus colegas. Mas, no geral, referenda uma censura draconiana que sufocará a livre manifestação nas redes

Seguramente constrangido com os votos de seus colegas Dias Toffoli e Luiz Fux a respeito do Marco Civil da Internet, ora em debate na Corte, votos esses que já têm lugar garantido na antologia dos atentados à Constituição, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, tomou a decisão incomum de antecipar seu voto. Presume-se que Barroso pretendia temperar a discussão, que caminhava para chancelar a mordaça na internet. A fim de encontrar uma forma de discordar da sanha censória de Toffoli e Fux sem desmoralizá-los, Barroso disse que o artigo 19 do referido Marco Civil, aquele que versa sobre a responsabilidade das redes sociais, é “parcialmente” inconstitucional. Como não liberou a divulgação do voto, só suas “anotações”, não se sabe bem como ele fundamentará essa tese sem ferir a hermenêutica jurídica. Mas pode-se dizer, sem ferir a lógica, que seu voto é só parcialmente sensato.

O artigo 19 estabelece que a responsabilidade pelos danos de alguma publicação é de seu criador, e as plataformas só se tornam corresponsáveis se desobedecerem a uma ordem judicial de remoção. O artigo 21 estabelece uma exceção caso as redes sejam notificadas extrajudicialmente sobre conteúdo contendo cenas de nudez ou sexo não autorizadas.

Assim, cada um é livre para dizer o que bem entender, e responde pelo que disser. As redes podem estabelecer regras definindo o que é ou não aceitável, e cada um é livre para aderir ou não a essas regras. Se um usuário julga que seu conteúdo foi removido em violação a essas regras, pode recorrer à Justiça. Se uma pessoa julga que foi vítima de algum conteúdo ilícito, pode recorrer à Justiça. A Justiça tem a prerrogativa de obrigar as redes a respeitar suas próprias regras e de obrigar os usuários a respeitar a lei. Pelo regime vigente, só a Justiça pode determinar se um conteúdo é ilícito e obrigar as redes a removê-lo. Caso se recusem, passam a ser corresponsáveis. A liberdade de expressão é a regra; a censura, a exceção, a ser aplicada pelo Judiciário após o devido processo legal.

Evocando vagamente a proteção de direitos fundamentais, Toffoli e Fux entenderam que esse regime é inconstitucional. A seu ver, a Constituição exige que as redes censurem conteúdos após a notificação de quem se sente ofendido. Como resumiu Fux, “notificou, tira; quer botar de novo, judicializa”. Toffoli propôs um “decálogo contra a violência digital e desinformação”. Mesmo sem serem notificadas, as redes seriam responsáveis por supostos crimes, como “qualquer espécie de violação contra a mulher”, fatos “descontextualizados” ou “discursos de ódio”. Alexandre de Moraes sugeriu ainda “atos antidemocráticos”.

A Justiça pode levar anos para decidir se alguma manifestação se enquadra num ilícito, mas os ministros exigem ação imediata das redes. A prevalecer essa tese, as pequenas plataformas, sem condições de fazer esse monitoramento ostensivo, sairão do mercado, e as grandes suprimirão qualquer conteúdo minimamente controverso para se furtar à responsabilização – levada às suas últimas consequências, por sinal, quem administra um site ou perfil, por menor que seja, será responsável por qualquer manifestação em suas caixas de comentários.

Barroso ensaiou um freio a essa terceirização da censura. “Não se deve impor às plataformas o controle prévio de todos os conteúdos gerados por terceiros, nem as sujeitar a uma obrigação geral de vigilância.” Para conteúdos relacionados à honra (injúria, calúnia, difamação), deveria se manter a obrigatoriedade de ordem judicial, pois, do contrário, “a próxima vez que alguém disser que o governador é mentiroso ou medíocre, isso estaria sujeito à remoção, o que seria altamente limitador do debate público”.

No entanto, Barroso entende que para todos os demais crimes deveria valer o modelo de notificação e remoção, exceto em caso de “dúvida razoável”. Mas quem define o que é “razoável”? Na prática, em que pese toda a circunspecção de Barroso, o modelo do artigo 19 será a exceção, e a vigilância draconiana, a regra.

O voto de Barroso é um progresso, mas só parcial. No mais importante, referenda o retrocesso proposto por seus colegas.

Corporativismo indecente

O Estado de S. Paulo

STM não faz justiça ao relevar o assassinato de dois inocentes por militares fardados

O Estado brasileiro falhou miseravelmente não uma, mas duas vezes com dois homens inocentes, o músico Evaldo Rosa e o catador Luciano Macedo, e seus familiares.

Em 7 de abril de 2019, Evaldo e Luciano foram fuzilados por oito militares do Exército durante uma patrulha irregular em Guadalupe, zona norte do Rio, a pretexto de impedir o tráfico de drogas no perímetro da Vila Militar – uma ação que só poderia ser realizada sob autorização expressa da Presidência da República, o que jamais houve. No próprio local, foi decretada a morte física de ambos pelos agentes do Estado.

Evaldo e sua família estavam a caminho de um chá de bebê quando o carro que o músico dirigia foi “confundido” pela guarnição liderada pelo tenente Ítalo da Silva Nunes com outro que seria ocupado por supostos criminosos. Os militares não titubearam e abriram fogo. Nada menos que 257 tiros de fuzil foram disparados “por engano” contra o veículo do músico, que morreu na hora. Ao ver a família em desespero sob uma saraivada de balas, Luciano tentou socorrê-la, sendo ele também baleado. Levado a um hospital, morreu dias depois.

Na primeira instância, os réus foram condenados a penas entre 28 e 31 anos de prisão. O caso, porém, chegou ao Superior Tribunal Militar (STM), onde o espírito de corpo, aparentemente, foi mais forte do que o desejo dos ministros da Corte de fazer justiça diante de um crime brutal cometido por militares fardados.

No dia 18 de dezembro, o STM absolveu os oito militares pelo assassinato de Evaldo. Prevaleceu o entendimento do relator, Carlos Augusto Oliveira, segundo o qual não houve intenção de matar – imagine o leitor se houvesse – e, ademais, não se pôde precisar de onde partira o tiro fatal. De fato, a perícia técnica foi inconclusiva, mas isso deveria levar à revisão da dosimetria das penas, não à absolvição. Já em relação à morte de Luciano, o STM reclassificou o crime para homicídio culposo, reduzindo drasticamente a pena aplicada aos réus para pouco mais de 3 anos de detenção, a ser cumprida por todos em regime aberto.

Em Brasília, portanto, decretou-se a segunda morte das vítimas, esta de ordem moral. Evaldo e Luciano foram tratados indignamente pelo STM como dois desafortunados que deram o azar de estarem no lugar errado na hora errada. Trata-se de uma afronta à sociedade, que não espera outra coisa da Justiça senão a punição de qualquer cidadão que cometa crimes, seja civil, seja militar. Afinal, o Brasil é uma República onde todos, supostamente, são iguais perante a lei, de modo que a farda não confere a ninguém o direito de matar impunemente em tempos de paz.

Ademais, o STM vilipendiou a memória das vítimas e feriu os sentimento de seus familiares, que tiveram de assistir à Corte tratar as vidas perdidas por seus entes queridos como bens menos preciosos do que a salvaguarda dos interesses corporativos das Forças Armadas.

Esse terrível caso, além de tudo, é o retrato mais bem acabado do absoluto despreparo das Forças Armadas para atuar como polícias, sobretudo em áreas urbanas.

Congresso cobra pedágio no pacote fiscal

Correio Braziliense

A prerrogativa de elaborar emendas impositivas ao Orçamento da União é um alargamento discutível das atribuições do Congresso, cuja disfuncionalidade vem se tornando cada vez mais flagrante

Não se discute que o Congresso Nacional representa a totalidade dos brasileiros. Para isso, porém, deputados e senadores são muito bem remunerados e têm todas as condições materiais para exercerem suas atribuições, sendo legislar para o bem comum a missão principal. A prerrogativa de elaborar emendas impositivas ao Orçamento da União é um alargamento discutível dessas atribuições, cuja disfuncionalidade vem se tornando cada vez mais flagrante.

Foi o que observamos neste final do ano, durante o processo de aprovação da reforma tributária e do ajuste fiscal, no qual as emendas impositivas se tornaram um instrumento de chantagem do Legislativo em relação ao Executivo. A obstrução deliberada dos trabalhos do Congresso, que costuma ser um instrumento de negociação das minorias, foi protagonizada por governistas e oposicionistas para barganhar o descumprimento de regras de transparência e rastreabilidade das verbas federais, recém-estabelecidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em razão da ocorrência de desvios de recursos públicos na execução dessas emendas.

As emendas parlamentares impositivas permitem aos parlamentares destinarem recursos do Orçamento da União para projetos, obras e ações em seus estados e municípios. São assim chamadas porque sua execução pelo Poder Executivo é obrigatória, desde que estejam de acordo com critérios legais. O montante dessas emendas neste ano chega a R$ 52 bilhões.

Ocorre que vários casos de desvios desses recursos estão sendo investigados, o que levou o STF a estabelecer regras mais rígidas de controle sobre a aplicação dessas verbas, uma parte das quais se tornou uma caixa preta, o chamado "orçamento secreto", como eram chamadas as" emendas do relator" cujos verdadeiros autores permaneciam no anonimato.

Medidas adotadas pelo Supremo proibiram a existência do "orçamento secreto". Porém, deputados e senadores criaram expedientes para burlar a decisão. Um deles é a chamada emenda Pix, cuja destinação não exigia projetos nem programas específicos; o outro, as emendas de comissão, cujos autores não eram identificados. Diante da falta de transparência e rastreabilidade e de casos comprovados de desvio de recursos, o ministro do STF Flávio Dino sustou a execução dessas emendas e, com aprovação dos demais integrantes do STF, estabeleceu regras novas para garantir o respeito às diretrizes constitucionais de execução orçamentária.

Emendas parlamentares no Brasil têm sido, ao longo dos anos, foco de diversos escândalos. Os mais notórios foram Anões do Orçamento (1993-1994), no qual parlamentares manipulavam emendas para beneficiar entidades fantasmas; Sanguessugas (2006), a compra de ambulâncias superfaturadas em conluio com empresas fornecedoras do Ministério da Saúde; Operação João de Barro (2008), desvios de verbas destinadas a estradas e casas populares; e o Orçamento Secreto (2020-2022), a distribuição de recursos sem transparência. Neste ano, houve ainda a Operação Overclean, que desviou R$ 1,4 bilhão de recursos por meio de licitações e contratos fraudulentos.

Diante desse histórico, não se pode concordar com a adoção de mecanismos — como a recém-criada "emenda de lideranças", para realocar emendas parlamentares sem que se saiba a autoria e a destinação dessas verbas — durante as negociações para aprovação da reforma tributária e do pacote fiscal pelo Congresso. Por óbvio, esse expediente contraria as regras constitucionais e é um terreno fértil para novos escândalos.

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