sábado, 21 de dezembro de 2024

É a lucidez, desatino – Eduardo Affonso

O Globo

Que o presidente abandone a ideia de empurrar com a barriga o ajuste e abjure a crença de que uma inflaçãozinha não dói

A melhor notícia do ano, até agora, veio num boletim médico do Hospital Sírio-Libanês, de São Paulo, em 14/12. Nele, dois diretores garantiam que o presidente Lula estava “lúcido e orientado, alimentando-se e caminhando”, depois de passar por uma cirurgia de emergência.

Se Lula estava lúcido, acabariam os ataques ao Banco Central — algo como quebrar o termômetro para baixar a febre. Mas, no dia seguinte, em entrevista ao Fantástico, o presidente declarou que “a única coisa errada neste país é a taxa de juros”. Era uma recaída — a gente sabe que a lucidez não vem assim, de chofre, e podem sobrevir pequenos desatinos.

Lúcido, é de esperar que Lula pare de bater a cabeça — literal e metaforicamente. Que deixe de dizer que não existe problema fiscal — o terraplanismo econômico já deu o que tinha de dar. Que abandone a ideia de empurrar com a barriga o ajuste das contas públicas e abjure a crença de que uma inflaçãozinha não dói. Com a lucidez, perceberá que, além de gastar menos, tem de gastar melhor.

Não apenas lúcido, mas também orientado, Lula há de colocar nossa diplomacia nos eixos. Onde já se viu o país de Zilda Arns, Bertha Lutz, Oswaldo Aranha e Aracy Guimarães Rosa se abster de condenar a deportação ilegal de crianças ou se posicionar sistematicamente contra Israel? Tudo bem que o Brasil já tenha desabilitado o alinhamento automático a algumas ditaduras — mas aí o mérito é todo de Nicolás Maduro e Daniel Ortega, cuja ingratidão Lula talvez demore a superar.

Do início de 2019 até o fim de 2022, a culpa das queimadas era do presidente da República e de seu ministro do Meio Ambiente — aquele que defendia “passar a boiada”. Essa responsabilidade foi revogada, magicamente, em 2023, mas talvez possa ser retomada agora — quando a área destruída pelo fogo foi a maior em seis anos —, antes que seja irremediavelmente afetada a capacidade de regeneração dos biomas da Amazônia, do Cerrado, do Pantanal.

Lúcido, Lula se dará conta de que o adjetivo “democrática”, usado para a frente que lhe garantiu a eleição, não pode ser mera retórica. Que o ativismo narcísico da primeira-dama só atrapalha. Que o problema de seu governo não é de comunicação, mas de ter o que comunicar. Que foram suas declarações desastradas — e desastrosas — que ajudaram a elevar o dólar a estratosféricos R$ 6,30 na quinta-feira.

Ano passado, Lula colocou uma prótese na junção do fêmur com o quadril e fez uma blefaroplastia. Pôde acertar o passo e abrir o olho. Se a trepanação tiver mesmo o condão de, abrindo a cabeça, levar à lucidez, o Sírio-Libanês poderia providenciar uma ala exclusiva para efetuar o procedimento em parlamentares insaciáveis por emendas, ministros de Estado que indicam as digníssimas esposas para cargos nos tribunais de contas dos estados e ministros do STF — em especial os dos inquéritos infindos, os do desmonte das estruturas anticorrupção, os que não resistem a um microfone e a um holofote.

Um Lula “lúcido e orientado, alimentando-se e caminhando” alimenta nossas esperanças de que o país abandone a desorientação, fiscal e ideológica, e caminhe sem novos tropeços rumo ao que foi prometido na campanha de 2022. Esse é o melhor presente que o bom velhinho (e não estou falando do Papai Noel) poderia nos dar neste Natal.

Nenhum comentário: