Correio Braziliense
O governo Bolsonaro resgatou a turma dos
serviços de inteligência que, na verdade, nunca se dissolveu. Continuou a
existir de maneira mais ou menos clandestina dentro das organizações militares
A prisão do general Braga Netto é o mais visível sinal de que os militares no Brasil se envolveram profundamente na política nacional. A profusão de golpes e contragolpes ocorridos ao longo do século 20 no país é um claro indicativo de que a República, criada por militares, não convive bem com civis. Os paisanos terminam sendo atropelados pelas convicções ideológicas dos fardados. Foi assim em 1964, para ficar em apenas um exemplo, e radicalizado em 1968, quando o regime mostrou sua face autoritária com a decretação do Ato Institucional nº 5, que censurou a imprensa, suspendeu o habeas corpus, acabou com o direito de reunião, fechou o Congresso, cassou parlamentares e abriu as portas da repressão política. Centenas de brasileiros foram presos, torturados e mortos pelas forças de segurança.
A Constituinte de 1988, resultado da grande
mobilização popular iniciada na discussão da emenda Dante de Oliveira (Diretas
já), teve por objetivo redemocratizar o país. Acabar com a prevalência dos
militares nos assuntos políticos. O Brasil não enfrenta guerras desde o
conflito com o Paraguai, ocorrido na metade do século 19, suas forças armadas
são tecnicamente desatualizadas, não possuem equipamentos modernos e carecem de
comunicação de geração mais recente. Utilizam satélites estrangeiros para
estabelecer contatos dentro do vasto território nacional. Resultado dessa
inércia, as Forças Armadas se transformaram em partidos políticos fardados e
perderam eficiência operacional.
Mas um setor se manteve atualizado e
eficiente ao longo dos últimos anos. Os serviços de repressão, de inteligência
e de investigação sigilosa continuaram a funcionar normalmente mesmo depois da
queda dos governos militares. O presidente Fernando Collor acabou com o Serviço
Nacional de Informações (SNI), e todos dados contidos nos seus arquivos foram
entregues a pesquisadores que se interessavam pelo assunto. Porém, os serviços
secretos militares, de cada uma das três armas, continuaram a funcionar, pesquisar
e guardar seus segredos. Seus informantes persistiram ativos. Eles comandaram a
pressão contra a abertura política iniciada pelo presidente Ernesto Geisel e
avançada pelo presidente Figueiredo, que, aliás, assinou o decreto da anistia
política, que é, até hoje, tema de polêmica.
O governo Bolsonaro resgatou essa turma dos
serviços de inteligência que, na verdade, nunca se dissolveu. Continuou a
existir de maneira mais ou menos clandestina dentro das organizações militares.
Os torturadores mantiveram situações excepcionais, como a Casa da Morte, em
Petrópolis, estado do Rio de Janeiro, onde os prisioneiros eram torturados,
mortos e depois esquartejados. Seus corpos aos pedaços, sem as falanges dos
dedos nem as arcadas dentárias, eram jogados em rios, lagos e em alto mar. A
questão da anistia é, portanto, mais profunda, porque perdoou torturadores que,
por sua vez, não admitem que os chamados terroristas tenham sido abrangidos
pela iniciativa.
Quem quiser ter mais e melhores informações
sobre a ação comunista no Brasil e a violenta repressão realizada pelos
militares precisa ler o impressionante relato contido no livro cujo título é
Cachorros, a história do maior espião dos serviços secretos militares e a
repressão aos comunistas até a Nova República, de Marcelo Godoy, editora
Alameda. É um trabalho de fôlego, que consumiu 10 anos de pesquisa para que o
autor chegasse às 548 páginas do livro, que recebeu vários prêmios.
Esse grupo de militares, que envolve as mais
diversas patentes, se inspirou na guerra da Argélia, a guerrilha urbana que foi
violentamente reprimida pelo governo francês. E também aprendeu com as ideias
de Antonio Gramsci (Cadernos do cárcere), que propôs a revolução comunista por
meio de tomada de poder nas universidades, no serviço público, no setor
artístico, na imprensa, com objetivo de dominar a opinião pública. Com base
nessa possibilidade, um grupo de militares brasileiros torturou e matou à farta.
Esse grupo, que foi distinguido pelo
ex-presidente Jair Bolsonaro, proporcionou o vexame de conspirar contra a
democracia brasileira e, no momento mais insano, planejar o assassinato do
presidente da República, do vice-presidente e do então presidente do Tribunal
Superior Eleitoral. Tudo isso de maneira quase ingênua, mal traçada, e, pior,
com o apoio de pessoal especializado do Exército. E com base no velho argumento
anticomunista, quando o comunismo já saiu da vida e entrou para os livros de
história.
É oportuno lembrar Ulysses Guimarães, no seu
histórico discurso ao final da Constituinte: "Nosso desejo é o da Nação:
que este plenário não abrigue outra Assembleia Nacional Constituinte (....) O
Estado autoritário prendeu e exilou, a sociedade, com Teotônio Vilela, pela
anistia, libertou e repatriou. A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras
que o mataram".
Feliz Natal.
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