sábado, 21 de dezembro de 2024

Dólar vs. Real - Luiz Gonzaga Belluzzo

O centro do furacão é a estrutura financeira global monetariamente hierarquizada sob o poder do dólar

A continuada desvalorização do real nas últimas semanas deflagrou uma avalanche de opiniões a respeito do fenômeno monetário-financeiro internacional. Peço licença ao eventual leitor para sublinhar monetário-financeiro e internacional.

O pedido ao leitor deita raízes na sobrecarga de opiniões que se derramam em queixas que atribuem à irresponsabilidade fiscal os sucessivos e intensos declínios de valor do nosso real diante do patrono do sistema monetário internacional, Mister Dólar.

Incursões na história:

Começamos com a estagflação dos anos 70 do século passado. Naqueles tempos, a continuada desvalorização do dólar foi enfrentada com a elevação da policy ­rate, deflagrada por Paul Volcker em 1979. A elevação dos juros foi apresentada, então, como uma medida destinada a alcançar o objetivo doméstico de controle da inflação, mas o efeito mais relevante para a economia internacional foi a recuperação do papel do dólar como moeda-reserva.

A forma como ocorreu a recuperação do dólar, como moeda-reserva e de denominação das transações comerciais e financeiras, promoveu profundas alterações na estrutura e na dinâmica da economia mundial. Nas três décadas seguintes, à sombra do fortalecimento do dólar, os Estados Unidos promoveram as políticas de abertura comercial e impuseram a liberalização financeira urbi et orbi.

Assim, suas empresas encontraram o caminho mais rápido e desimpedido para a migração produtiva, enquanto seus bancos foram investidos plenamente na função de gestores universais da finança e da moeda. Nesse período, os deslocamentos tectônicos na geoeconomia mundial – particularmente, a ascensão da China como potência manufatureira – produziram mais um episódio fascinante do processo de “destruição criadora”.

A partir do início dos anos 80, intensificou-se o movimento de migração da indústria manufatureira para as regiões nas quais prevalecia uma relação câmbio/salários mais competitiva e ampliaram-se os desequilíbrios nos balanços de pagamentos entre os EUA, a Ásia e a Europa.

O estudo do Banco de Compensações Internacionais (BIS) – The Transmission­ of Unconventional Monetary Policy to Emerging Markets – admite que há consenso a respeito da predominância dos fatores “externos” sobre os fatores internos na determinação dos fluxos de capitais.

Reza o relatório:

“Os Bancos Centrais das Economias Emergentes têm enfrentado desafios políticos decorrentes tanto da apreciação da taxa de câmbio quanto da depreciação nas últimas duas décadas. Durante a década anterior à crise de 2008 e desde 2009, os diferenciais de taxa de juros e crescimento resultaram em entradas substanciais de capital e pressões de apreciação da taxa de câmbio. Em contraste, grandes saídas de capital durante maio–setembro de 2013 e início de 2014 foram acompanhadas por fortes depreciações cambiais. Globalmente, na maioria das EME, as taxas de câmbio efetivas nominais depreciaram-se significativamente e foram voláteis entre 2007 e 2013”.

O economista Claudio Borio, do Banco de Compensações Internacionais, já desvelou a verdade que a maioria dos analistas se esforça por esconder sob a rica tapeçaria de seus inefáveis saberes fiscalistas. A morfologia dos movimentos de capitais é intrinsecamente pró-cíclica em sua recorrência maníaca que vai da abundância de grana estrangeira às paradas súbitas e daí às crises financeiras e bancárias. Esse “eterno retorno do mesmo” (Nietzsche, tenha piedade) está determinado pela interação entre a liberalização das contas de capital, a emergência das economias “emergentes” como polos de atração da movimentação financeira e o papel dos Estados Unidos como provedores de ativos líquidos de “última instância”, os títulos do Tesouro americano.

A interpenetração financeira suscitou a diversificação dos ativos à escala global, o inchaço dos mercados futuros de câmbio e juros e, assim, impôs a “internacionalização” das carteiras dos administradores da riqueza, o que coloca formidáveis desafios às políticas monetárias. Diante da enxurrada de capitais empenhados na arbitragem com taxas de juro e na especulação desaçaimada com suas moedas, os emergentes levam surras periódicas dos agentes da finança dotados de “expectativas racionais”.

O ambiente internacional de livre movimentação de capitais é turbinado por operações nos mercados futuros de câmbio e juros. Os Bancos Centrais dos países de “moeda fraca” encontram dificuldades em manter, simultaneamente, boas­ condições de crédito doméstico e a estabilidade de suas moedas.

Soterrados pela arbitragem com juros e a especulação, os emergentes levam surras periódicas

O controle da liquidez em moeda forte é, portanto, crucial para a sempre precária combinação entre estabilidade e crescimento nas economias de moeda não conversível. Os países periféricos mais bem-sucedidos, como a China, preferiram manter controles seletivos e pragmáticos de câmbio e de capitais. Acumulam reservas elevadas em moeda forte (dólares ou euros) com o propósito de evitar “choques de desvalorização”, que possam afetar negativamente a taxa de juros doméstica.

Nas pegadas da globalização financeira, o Brasil manteve por 20 anos uma combinação câmbio-juro hostil ao crescimento da indústria manufatureira e amigável à arbitragem sem risco.

Diante de frequentes episódios de aguçamento da instabilidade cambial, as vozes de sempre descarregaram as culpas sobre os ombros das “condições internas”. Proclamam – sempre e sempre – os danos do “risco fiscal”, exibido como um pecado irremissível. Ignoram que os países de moeda não conversível se dilaceram entre o objetivo de manter a inflação sob controle e o propósito de não danar o crescimento ou colocar em risco a estrutura industrial e, consequentemente, o “arcabouço” de geração de renda e emprego. No Brasil, a derrocada exportadora da indústria faz parceria com a invasão das importações de produtos manufaturados, prenhes de incentivos e subsídios oferecidos generosamente pelos competidores espertos.

Seja como for, a sucessão de episódios valorização/desvalorização demonstra que a almejada correção, dos chamados desequilíbrios globais, vai exigir regras não compatíveis com o sistema monetário internacional em sua forma atual. O movimento dos BRICS revela a reação de um conjunto de países diante dos percalços a eles causados por uma estrutura financeira global monetariamente hierarquizada, comandada pelo poder do dólar. •

Publicado na edição n° 1342 de CartaCapital, em 24 de dezembro de 2024.

 

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