O Estado de S. Paulo
A mensagem do presidente dos Estados Unidos é clara. Os europeus devem arcar com suas próprias despesas de defesa
Se as relações humanas, mesmo em momentos de
tranquilidade, estão submetidas às mais diversas formas de perversidade e
abjeção, isso é ainda mais válido em estados de guerra ou naqueles em que a
geopolítica adquire as formas de um conflito aberto. Nelas, a “lei do mais
forte” passa a valer – se é que se possa utilizar a palavra lei para
caracterizar o que Hobbes denominava de estado de natureza, de combate
desregrado e arbitrário.
Estamos entrando numa era em que passam a valer principalmente o poderio militar e o econômico, os Estados Unidos possuindo ambos. A diferença, agora, consiste em que Trump decidiu escancarar o seu projeto de poder, não medindo meios para tal fim. Algo não diferente do que a Rússia faz na Ucrânia ou o Irã no Oriente Médio. Cabe ressaltar, ainda, que o mundo das relações internacionais não é o terreno de anjos. Aqueles que se apegam a um mundo ideal estão destinados a viver na bolha da utopia, alheios à realidade. Parafraseando Nelson Rodrigues, trata-se de ver a realidade tal como ela é, goste-se dela ou não. Ou seja, confrontemo-nos com a geopolítica tal como ela é.
A abordagem trumpista em relação à Europa é
multifacetada, confundindo-se, nem sempre com nitidez, aspectos militares,
geopolíticos, comerciais e culturais. Num determinado momento, Trump apresenta
o seu problema com a Europa em termos comerciais, como quando apregoa uma
equiparação tributária de automóveis, visando, na verdade, a uma maior
participação europeia no financiamento da Otan. Ou ainda, num lance até mais
imprevisto, começa a negociar diretamente com a Rússia o fim da guerra na
Ucrânia, passando por cima desse país e de seus aliados europeus.
Não se pode compreender o fenômeno Trump se
não atentarmos para o encadeamento da política com suas repercussões
econômicas, financeiras e, mesmo, de valores. O mundo da economia e das
finanças vive de expectativas, que criam ou não relações de confiança com os
dirigentes políticos. E as expectativas são condicionadas pelo que acontece
neste mundo. Se Clausewitz já dizia que o conhecimento da guerra não podia ser
uma ciência, pois a guerra enquanto tal está constantemente submetida à
imprevisibilidade e à incerteza, o mesmo se pode dizer do campo da geopolítica.
A imprevisibilidade e a incerteza geram, por sua vez, a insegurança, de
profundos efeitos econômicos e financeiros.
A velocidade dos fatos no que diz respeito à
Ucrânia chega a ser estonteante. A partir de uma narrativa completamente
desvinculada da realidade, ao equiparar o agressor (Rússia) à vítima (Ucrânia)
– qualificando, inclusive, Zelenski como ditador, talvez pressupondo ser Putin
um “democrata” –, Trump partiu para o ataque. Ele rompe com a política vigente
até então de defesa da democracia, abandonando, portanto, os valores ocidentais
que diz defender. Os valores ocidentais e os da Grande Rússia não são minimamente
convergentes.
Neste cenário, Trump está se entendendo
diretamente com Putin, anunciando um encontro com ele; e Marco Rubio,
secretário de Estado, se reunindo na Arábia Saudita com seu homólogo russo,
Sergey Lavrov. Visa a um acordo direto, deixando de lado os seus parceiros
tradicionais. Não mede meios, contanto que seus objetivos sejam alcançados.
Reconfigura, assim, o quadro da Europa, fortalecendo o ditador russo, que ganha
aura de um interlocutor confiável.
Deixou claro, igualmente, que almeja os
minerais (alguns raros) da Ucrânia que deveriam financiar o esforço de guerra
por intermédio de empresas americanas, que os explorariam. Busca interesses
econômicos com jogadas geopolíticas ousadas. E não hesita em oferecer à Rússia
parte do território ucraniano. Em todo caso, deixou evidente que a decisão cabe
a ele, pois o fornecimento militar à Ucrânia é, sobretudo, americano. Seus
parceiros europeus se tornaram meros espectadores das negociações. A diplomacia
tradicional está ultrapassada.
Os seus diferentes objetivos se cruzam e se
sobrepõem entre si. Não está mais disposto a financiar a Otan se não houver um
aporte equivalente dos países europeus. É uma reivindicação sua de longa data.
Os europeus se preocuparam, até agora, com o seu bem-estar material, graças a
um generoso sistema de saúde pública, aposentadorias precoces, educação pública
e assim por diante. E, no que diz respeito à defesa, passaram a conta para os
Estados Unidos. Devem se confrontar com uma nova realidade. Têm diante de si a
ameaça real da guerra, sustentada por eles mesmos.
A mensagem de Trump é clara. Os europeus
devem arcar com suas próprias despesas de defesa. Segundo dados de 2024, os
gastos militares dos países europeus são em torno de um pouco mais de 2% do
PIB, com exceção da Polônia, que já ultrapassou 4%. Há dez anos, eram bem menos
do que isso. Agora, esses países estão cogitando alcançar rapidamente 4%.
Pode-se, nesse sentido, dizer que um dos objetivos de Trump está sendo
alcançado.
E Trump o faz confundindo seus parceiros,
adversários e inimigos. É um gambler! Sua aparente loucura é nada mais do que
estratégica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário