segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Trump e a Europa - Denis Lerrer Rosenfield

O Estado de S. Paulo

A mensagem do presidente dos Estados Unidos é clara. Os europeus devem arcar com suas próprias despesas de defesa

Se as relações humanas, mesmo em momentos de tranquilidade, estão submetidas às mais diversas formas de perversidade e abjeção, isso é ainda mais válido em estados de guerra ou naqueles em que a geopolítica adquire as formas de um conflito aberto. Nelas, a “lei do mais forte” passa a valer – se é que se possa utilizar a palavra lei para caracterizar o que Hobbes denominava de estado de natureza, de combate desregrado e arbitrário.

Estamos entrando numa era em que passam a valer principalmente o poderio militar e o econômico, os Estados Unidos possuindo ambos. A diferença, agora, consiste em que Trump decidiu escancarar o seu projeto de poder, não medindo meios para tal fim. Algo não diferente do que a Rússia faz na Ucrânia ou o Irã no Oriente Médio. Cabe ressaltar, ainda, que o mundo das relações internacionais não é o terreno de anjos. Aqueles que se apegam a um mundo ideal estão destinados a viver na bolha da utopia, alheios à realidade. Parafraseando Nelson Rodrigues, trata-se de ver a realidade tal como ela é, goste-se dela ou não. Ou seja, confrontemo-nos com a geopolítica tal como ela é.

A abordagem trumpista em relação à Europa é multifacetada, confundindo-se, nem sempre com nitidez, aspectos militares, geopolíticos, comerciais e culturais. Num determinado momento, Trump apresenta o seu problema com a Europa em termos comerciais, como quando apregoa uma equiparação tributária de automóveis, visando, na verdade, a uma maior participação europeia no financiamento da Otan. Ou ainda, num lance até mais imprevisto, começa a negociar diretamente com a Rússia o fim da guerra na Ucrânia, passando por cima desse país e de seus aliados europeus.

Não se pode compreender o fenômeno Trump se não atentarmos para o encadeamento da política com suas repercussões econômicas, financeiras e, mesmo, de valores. O mundo da economia e das finanças vive de expectativas, que criam ou não relações de confiança com os dirigentes políticos. E as expectativas são condicionadas pelo que acontece neste mundo. Se Clausewitz já dizia que o conhecimento da guerra não podia ser uma ciência, pois a guerra enquanto tal está constantemente submetida à imprevisibilidade e à incerteza, o mesmo se pode dizer do campo da geopolítica. A imprevisibilidade e a incerteza geram, por sua vez, a insegurança, de profundos efeitos econômicos e financeiros.

A velocidade dos fatos no que diz respeito à Ucrânia chega a ser estonteante. A partir de uma narrativa completamente desvinculada da realidade, ao equiparar o agressor (Rússia) à vítima (Ucrânia) – qualificando, inclusive, Zelenski como ditador, talvez pressupondo ser Putin um “democrata” –, Trump partiu para o ataque. Ele rompe com a política vigente até então de defesa da democracia, abandonando, portanto, os valores ocidentais que diz defender. Os valores ocidentais e os da Grande Rússia não são minimamente convergentes.

Neste cenário, Trump está se entendendo diretamente com Putin, anunciando um encontro com ele; e Marco Rubio, secretário de Estado, se reunindo na Arábia Saudita com seu homólogo russo, Sergey Lavrov. Visa a um acordo direto, deixando de lado os seus parceiros tradicionais. Não mede meios, contanto que seus objetivos sejam alcançados. Reconfigura, assim, o quadro da Europa, fortalecendo o ditador russo, que ganha aura de um interlocutor confiável.

Deixou claro, igualmente, que almeja os minerais (alguns raros) da Ucrânia que deveriam financiar o esforço de guerra por intermédio de empresas americanas, que os explorariam. Busca interesses econômicos com jogadas geopolíticas ousadas. E não hesita em oferecer à Rússia parte do território ucraniano. Em todo caso, deixou evidente que a decisão cabe a ele, pois o fornecimento militar à Ucrânia é, sobretudo, americano. Seus parceiros europeus se tornaram meros espectadores das negociações. A diplomacia tradicional está ultrapassada.

Os seus diferentes objetivos se cruzam e se sobrepõem entre si. Não está mais disposto a financiar a Otan se não houver um aporte equivalente dos países europeus. É uma reivindicação sua de longa data. Os europeus se preocuparam, até agora, com o seu bem-estar material, graças a um generoso sistema de saúde pública, aposentadorias precoces, educação pública e assim por diante. E, no que diz respeito à defesa, passaram a conta para os Estados Unidos. Devem se confrontar com uma nova realidade. Têm diante de si a ameaça real da guerra, sustentada por eles mesmos.

A mensagem de Trump é clara. Os europeus devem arcar com suas próprias despesas de defesa. Segundo dados de 2024, os gastos militares dos países europeus são em torno de um pouco mais de 2% do PIB, com exceção da Polônia, que já ultrapassou 4%. Há dez anos, eram bem menos do que isso. Agora, esses países estão cogitando alcançar rapidamente 4%. Pode-se, nesse sentido, dizer que um dos objetivos de Trump está sendo alcançado.

E Trump o faz confundindo seus parceiros, adversários e inimigos. É um gambler! Sua aparente loucura é nada mais do que estratégica.

 

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